Assunto
O objecto de desejo chamado fama
António Guerreiro

«Fama» é o tema de que nos ocupamos no «Assunto» deste número 11 da Electra. Comecemos por apresentá-lo com um brevíssimo apontamento metalinguístico: a palavra ganhou num tempo ainda recente uma leve tonalidade anacrónica, parecendo referir-se a uma forma de irradiação própria de um espaço público com características que já não são as que dominam sob a condição integral dos media. Por isso, dos «famosos» dizemos hoje que são «mediáticos», e à margem dos mais recentes mecanismos de visibilidade não há verdadeiramente nada a que se possa chamar «fama». Existe, quando muito, quem beneficie de um prestígio de curto alcance, outorgado e reconhecido por um público restrito e pelos pares. Mediático é o nome que se dá a quem aparece com frequência nos media: aparecer, não pontualmente, mas constantemente aparecer, nos meios onde toda a aparição profana é a forma quase exclusiva que a fama adquiriu.

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Julia Wachtel, Champagne Life [Vida em champagne], 2014
Cortesia da artista e Super Dakota, Bruxelas.

Esta circunstância torna a fama uma coisa efémera e com zonas de implantação que não se cruzam e se ignoram, já que o espaço mediático se encontra atomizado. As «redes» tiraram à televisão privilégios que ela deteve durante muito tempo, os ecrãs começaram a multiplicar-se. E muito embora esta mantenha um lugar importante, hoje é possível granjear fama por outros meios. Mas todos eles asseguram a lógica da ultravisibilidade e da hiperexposição. Vemos assim totalmente realizada aquela ideia que Deleuze foi buscar a Serge Daney e à qual dá (em Pourparlers) uma formulação mais categórica: a ideia de um «estádio» ou de um «estado» da imagem que, sob o nome de televisão, transforma o mundo inteiro em cinema. O mundo cobre-se de ecrãs e torna-se um cinema — um cinema qualquer. Quando Deleuze diz, na sua «Carta a Serge Daney», de 1986, que o mundo se pôs a fazer cinema, um cinema qualquer, e é isso que constitui a televisão, faz-nos lembrar — com alguma evidência — a ideia da sociedade do espectáculo, muito embora para Debord a imagem seja uma mediação do espectáculo e não o espectáculo em si.

Mas a questão da fama, hoje, não pode ser entendida sem a referência às imagens, à condição actual do mundo saturado de imagens. As consequências começam por ser de ordem estética: há uma estetização generalizada da sociedade (ou, como lhe chamou Lukács, uma «cultura estética», responsável, aliás, por uma des-artização). Mas é no interior desta ordem da visibilidade hiperbólica que se dão hoje os fenómenos da fama. Gerir o regime de visibilidade tendencialmente totalitário: eis a tarefa dos famosos. É tão importante, neste complexo, a circulação das imagens, que a fama acaba por se confundir com um espaço icónico. Por isso é que chamamos ícones aos mais famosos entre os famosos, àqueles que ocupam um lugar exemplar no supermercado da fama e se tornam figuras de representação da época, dos seus fenómenos de superfície (sim, já que o ícone, neste caso, tem uma dimensão completamente profana). Um filósofo e musicólogo francês, com um nome que denuncia a sua origem húngara, Peter Szendy, criou o neologismo «iconomia», onde percebemos não só a palavra «ícone», que vem de um dos nomes gregos para «imagem», mas também a palavra «economia». Trata-se assim de analisar a maneira como a nossa percepção das imagens é modelada pelo sistema económico contemporâneo. A «iconomia» inscreve-se então no que Szendy descreve como um «supermercado estético». Transposta para o plano de engendramento da fama, a questão da iconomia ajuda-nos a perceber que esse fenómeno precisa de ser visto na sua dimensão estética, na medida em que ganha forma através de imagens, e simultaneamente na sua dimensão económica, pois a fama funciona como uma mercadoria. É mesmo a mais preciosa mercadoria, numa época como a nossa, em que se dá um completo domínio da mercadoria sobre todos os aspectos da vida social.

Em nenhuma época esta mercadoria chamada fama foi produzida de maneira tão intensiva. O mesmo é dizer: nunca houve tanta gente famosa. É certo que a fama é hoje distribuída por muito mais gente porque o seu trânsito é muito mais rápido, cada vez mais breve é o tempo a que cada um dos seus fruidores tem direito. Ela passa de uns para outros como uma amante frívola e infiel. Mas também nunca foram tantos os meios que a produzem e lhe garantem a recepção alargada sem a qual nem poderia chamar-se fama. As tecnologias digitais, o mundo virtual das redes, a proliferação dos meios de comunicação: mais vasto do que nunca é o leque de veículos ao nosso dispor para tentar conquistar um espaço público muito concorrido e organizado para promover as lutas pela fama (haverá espaço mais agónico do que este?). Neste mundo imaterial, a fama não precisa de ser o corolário de um processo substancial, de ter uma base sólida de onde emerge. Chegou ao seu fim o tempo em que os famosos eram exclusivamente os que se distinguiam pelo heroísmo, por actos exemplares, por obras que se tornavam património comum ou pelo papel que desempenhavam na socialização da cultura e na difusão do saber e da opinião, que só tinham direito a chegar ao espaço público quando traziam da sua origem um certificado de autoridade. No campo da arte, a fama era até um capital negativo, de acordo com aquele preceito ético formulado por Flaubert: «Les honneurs déshonorent.» Era uma iconomia às avessas: quanto mais longe das honrarias públicas e, portanto, do espaço onde se constrói a fama, maior o prestígio. Foi assim desde o Romantismo até ao triunfo da indústria cultural. No campo artístico e literário, prestígio era uma coisa, fama era outra. E entravam em contradição uma com a outra. Na época do modernismo tardio e do capitalismo avançado, assistimos em todos os domínios, mesmo nos das artes e da literatura, a uma tendencial coincidência entre o prestígio e a fama. Guy Debord enunciou a lei dessa coincidência, tal como ela se dá na sociedade do espectáculo: «Tudo o que é bom aparece e tudo o que aparece é bom.»

Imagens, simulacros, fetiches: estes são os conceitos fundamentais que regem as fantasmagorias do mercado da fama. Eles remetem para a ideia de des-realização do mundo e para uma visibilidade integral: tudo deve ser visto, tudo deve ser visível, e a imagem em que toda a realidade se converte é por excelência o lugar desta visibilidade. A palavra «fantasmagoria» é atraente, mas indica uma ideia de transfiguração da realidade que admite e até exige que tracemos uma oposição entre o verdadeiro e o falso, entre a realidade e a alienação. Ora, a regra da fama a que assistimos hoje, essa fama vazia proporcionada pela lógica do regime mediático (que torna famosos escritores, artistas, jornalistas, entertainers, youtubers, influencers, sem hierarquias), está para além do verdadeiro e do falso, não permite o uso de tais categorias. O que há de falso ou de verdadeiro em quem se notabilizou por aparecer com frequência na televisão? E como se decide que uma fama é legítima e outra não o é se a legitimidade está toda no medium que torna alguém famoso e não no indivíduo detentor da fama? Há, isso sim, uma deslocação constante dos investimentos que decidem o direito à fama. Famosas eram as estrelas do cinema. E o corpo dessas estrelas era conforme a uma estética, uma retórica e uma gramática que tinha um nome: glamour. Hoje, o fascínio não reside nessa qualidade chamada glamour que, de resto, já não é cultivada. O glamour vinha a par do sex-appeal, que se deslocou para outras paragens. No nosso tempo, já assistimos à fama das top-models a sobrepor-se à dos actores e actrizes de cinema e depois a extinguir-se; já assistimos à fama dos chefs de culinária que também está em vias de desaparecer; já assistimos à fama, também efémera, de bloggers que se reciclaram em actividades menos famosas. E até as pop-stars começam a ser um resquício do passado.

Mas voltemos a essa noção designada pelo neologismo «iconomia» para esclarecermos a relação entre fama e mercadoria. Na verdade, a lógica que comanda as formas de apropriação espectacular que confere a alguém a qualidade de famoso é a mesma que dita o carácter de fetiche da mercadoria. Na quarta parte do capítulo I de O Capital, Marx explicou como é que a mercadoria adquiria essa dimensão de fetiche e qual o seu segredo. Expondo-se num valor de troca que abole o valor de uso, a mercadoria torna-se objecto de um investimento fetichista que lhe confere uma qualidade abstracta e a faz surgir «cheia de subtilezas metafísicas e argúcias teológicas». O segredo da mercadoria é o apelo que ela faz enquanto fetiche, é o aspecto de fantasmagoria e de objecto de encantamento e de desejo que ela adquire.

A fama não existe sem a força e o arrebatamento fetichista em acção. E requer a existência de regras tácitas e inconscientes que o capitalismo estético, nas suas formas espectaculares, promove e cultiva. Os mecanismos pelos quais se constrói a fama alimentam-se em grande medida do desejo de fama dos anónimos que querem deixar de ser anónimos, que aspiram, no seu narcisismo, a aceder ao palco para se tornarem protagonistas do maior espectáculo do mundo.

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Julia Wachtel, Grasp, 2014
Cortesia da artista e Super Dakota, Bruxelas