Editorial
Primeira página
José Manuel dos Santos e António Soares

Pensar hoje os media e o jornalismo é pensar um mundo que todos os dias muda ainda mais do que o Mundo. E é pensá-lo na certeza da incerteza. Neste tempo em que todos os poderes se ameaçam como ferozes animais mitológicos a devorarem-se no amor que fazem uns com os outros, o «quarto poder», ou, numa versão mais idealista e radical, o louvado «contrapoder» falou muito do que estava a acontecer e pouco do que lhe estava a acontecer a ele próprio.
 

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Paulo Lisboa, 2018
Cortesia do artista

Pensar hoje os media e o jornalismo é pensar um mundo que todos os dias muda ainda mais do que o Mundo. E é pensá-lo na certeza da incerteza.

Neste tempo em que todos os poderes se ameaçam como ferozes animais mitológicos a devorarem-se no amor que fazem uns com os outros, o «quarto poder», ou, numa versão mais idealista e radical, o louvado «contrapoder» falou muito do que estava a acontecer e pouco do que lhe estava a acontecer a ele próprio.

Falar dos media, nesta época de comunicações vertiginosas e neste mundo de redes ruidosas, é falar de disseminação, dispersão, depreciação, multiplicação, proliferação. E é falar daquele caos, cujas leis são as da nossa perplexidade ansiosa perante ele.

É falar de um media-poder, um poder panóptico, descontrolado e irresponsável (também no sentido ético-jurídico), mas pululado, pulverizado, proliferado, polimerizado, potenciado e preso em redes de micropoderes, uns domesticados e outros selvagens, exercendo-se nas suas microesferas (Michel Foucault).

O movente e movediço universo dos media é semelhante àquela esfera que Pascal deu ao Universo como sendo a sua mais poderosa e possível imagem e de que Jorge Luis Borges tanto gostava: «uma esfera infinita, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte nenhuma».

É como se os media fossem o íman dos equívocos, das ilusões, dos logros, dos embustes e das taras do nosso tempo. Por isso, soa tão estranhamente vazio e impróprio, inútil e anacrónico, o discurso clássico e heroico que continua a falar, nas nossas democracias, da informação com um tom épico e da liberdade de imprensa com um acento lírico.

Assim, e com uma ligação iniludível e ineludível, nos parece também vão, ineficaz e levemente alucinado o tão generoso e voluntarioso, cansado e infalivelmente aplaudido discurso do antigo e grandioso humanismo iluminista sobre a liberdade e a democracia. Estes dois discursos são o verso e o reverso da moeda com que compramos a boa consciência que nos mente e faz felizes.

Não vale, porém, a pena desconhecermos ou fingir que desconhecemos o que está a acontecer. Como afirmou Sophia de Mello Breyner Andresen, num poema escrito na ditadura e que se tornou uma inscrição de resistência, recusa e protesto: «Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar».

O que se passa hoje na comunicação social (contando nela as redes sociais) é de uma brutalidade e não raro de uma boçalidade inaceitáveis. É de uma ligeireza e não raro de uma leviandade insustentáveis.

Longe vai já o tempo em que a televisão era o centro por onde passavam as grandes disputas políticas, sociais e culturais do presente e do futuro. Contra ela levantavam-se críticos radicais e profetas amargos. Na América dos anos 70, os The Last Poets declamavam que «When the revolution comes some of us will probably catch it on TV» enquanto Gil Scott Heron cantava que The Revolution Will Not Be Televised. Nos anos 90, das guerras, invasões, motins e massacres em directo, os Disposable Heroes of Hiphoprisy chamavam-lhe Television, the Drug of the Nation.

Sobre este assunto, todos os dias são publicadas obras a pôr os dedos nas feridas e que ficam sujos do sangue que delas corre. Todos os dias aparecem diagnósticos arrepiantes e terapêuticas ineficazes. E a crise avança como uma armada invencível no oceano alteroso e fatal dos dias que se somam e sucedem em vagas.

Falam essas obras da mudança de paradigma, da heteronomia, da concentração, da tecnologização, da mundanização, da mercantilização, da industrialização, da massificação, da instrumentalização, da manipulação, da descredibilização, da mediarquia, do populismo, do conformismo, do sensacionalismo, da infantilização, da ditadura das audiências, da doxa mediática, do afastamento dos públicos, da perda de influência, da insustentabilidade, da concorrência desleal, das vagas mediáticas, da sincronização das emoções, da mundialização dos afectos, dos pseudo-eventos, da despolitização militante, da promiscuidade com a justiça, da submissão à ideologia neoliberal, das agências de comunicação, da tirania da comunicação, das fake news, dos fake profiles, dos fast thinkers, dos trolls e dos twitters. E também dos ciberjornalistas, dos hipermedia, dos altermedia, do jornalismo de soluções.

Já se disse que, nos órgãos de comunicação social, parece agora haver apenas duas figuras: a do estagiário, esse novo proletário sem Marx, explorado e disposto a sê-lo, e a do gestor, esse novo burguês sem Kant, explorador e indisponível para o não ser. Entre os dois, há uma terra de ninguém e de todos, onde estão os que sobram, os que sobrevivem, os que sofrem, os que resistem, os que rastejam, os que rompem. Já se chamou a isto a taylorização da profissão do jornalismo.

A história da imprensa e da sua liberdade tem heróis e mártires e essa é uma memória moral que pode inspirar. E tem infames e cobardes e essa é uma memória imoral que pode prevenir.

É claro que os jornais e os jornalistas foram sempre o alvo de muitas pontarias, certeiras ou falhadas, justas ou injustas. E, frequentemente, o pior mal que, deles, foi dito foram eles que o disseram uns dos outros — e muito mais ruidosamente do que outros que também, deles, esse mal disseram.

Pode fazer-se uma viagem pela literatura dos últimos dois séculos a bordo de um balão movido pelo vento que sopra e silva dos ataques atirados ao jornalismo e aos jornalistas.

Dos desdéns de Balzac às diatribes de Camilo, das infâmias do Palma Cavalão de Eça aos retratos impiedosos de Raul Brandão, das ideias feitas de Flaubert à sátira de Evelyn Waugh, das ironias de Proust aos fabulosos aforismos de Karl Kraus, há uma colecção de acusações, sarcasmos e impropérios, alguns geniais, que detectaram, nomeando-as, no jornalismo, a estupidez, a ignorância, a venalidade, a vileza, a promiscuidade, a manipulação, a calúnia. Sabemos como muitas vezes a parte foi tomada pelo todo. Mas sabemos também que houve momentos em que essa parte quase cobriu o todo…

Hoje, porém, temos — ou deveríamos ter — a consciência aguda de que a crise que o jornalismo vive é de outra ordem e de outra índole, de outra dimensão e de outra complexidade. De outra gravidade também.

Levados pela força das coisas e pela nossa fraqueza perante elas, fomos, de cedência em cedência, de abdicação em abdicação, cedendo também a nossa consciência e abdicando assim de a ter.

Tudo hoje se confunde e se funde: informação, opinião, entretenimento, apresentação, jornalismo, comentário, humor, ficção, crónica social, discurso judicial, comércio, marketing, publicidade, caridade, propaganda.

O cenário extremo e inquietante do filme Network (1976), de Sidney Lumet, parece possível de acontecer todos os dias.

Aquele jornalista de televisão que dá notícias no jornal que apresenta tem um glorioso sonho profissional: o de ser uma vedeta tão famosa, tão popular e tão bem paga como a apresentadora que, na hora seguinte à sua, dá prémios num concurso de músculos ou num reality show; ou como o humorista que diz piadas e faz piruetas quando as diz; ou como a actriz ou o actor de novela, cujo único e exibido talento é o da sua exuberante altivez anatómica.

Sem essa fama fácil e falaciosa, o jornalista sabe que a sua subexistência, ou mesmo inexistência, o inferioriza, compromete, degrada e até, no limite, o pode degredar para esse degredo que é sair do ecrã ou da estação. Para evitar isso e assegurar o «interesse do público», corre para as revistas que têm as cores com que as rosas se desfolham contar a sua história desde criança, a sua vida sexual desde adolescente, a sua doença desde que ela apareceu. Mostra o corpo, a casa, o jardim, a mulher, os filhos, os pais, os sogros, os amigos. Fala do namoro, do casamento, da traição, do divórcio, da reconciliação.

Vemos, ouvimos e lemos, não podendo ignorar que, actualmente, muitas vezes o jornalismo parece existir para dar razão às observações e às profecias, sombrias e até sinistras, que Guy Debord fez em A Sociedade do Espectáculo e noutros textos.

Uma delas diz: «O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens». Outra afirma: «Os espectadores não encontram o que desejam, eles desejam o que encontram». Ou esta: «Num mundo deturpado, o verdadeiro é um momento do falso.» E ainda: «A cultura tornada integralmente mercadoria deve também tornar-se a mercadoria vedeta da sociedade espectacular».

O jornalismo vive entre a ameaça que está e as muitas que chegam. E, para conjurarem as ameaças que lhes fazem a eles, os media recorrem às ameaças que fazem aos outros. Este vaivém entre a agressividade-arrogância por fora e a submissão- subserviência por dentro, a que podemos chamar auto-suficiência resignada, ressentida e resistente, dá deste perigoso bailado a imagem de um jogo no casino mais clandestino. E, como acontece nesses lugares sem lei, não se ganha, nem mesmo quando se ganha! Brinca-se com o fogo com as mãos já queimadas por ele.

Sabemos — até os que não querem saber o sabem — que a situação e a enormidade dela se descreve assim: todas as dependências se somam, todas as precariedades se acumulam, todas as instabilidades se juntam, todas as pressões se conjugam, todos os horizontes se fecham, todos os riscos se agravam.

A árvore dos riscos tem muitos ramos e é de folha perene. Por isso, a sua copiosa copa tudo cobre com uma sombra silenciosa e soturna. Os ramos estendem- se e são o risco económico, o risco tecnológico, o risco laboral, o risco cultural, o risco social, o risco ético, o risco deontológico, o risco político, o risco civilizacional. Fazer hoje jornalismo é, em muitos casos e em muitos lugares, viver em estado de alerta (ou mesmo em estado de sítio) permanente.

É óbvio que se os media são o íman dos equívocos, das ilusões, dos logros, dos embustes e das taras da época, são também dela a impressão digital que identifica e revela, a voz que grita ou cala, o olhar que se abre ou se fecha, a cor que se carrega ou se esbate.

Os media são animais agitados e famintos dentro da jaula deste tempo tão nosso e tão alheio a nós. Desse tempo claustrofóbico e turvo, eles recebem o tremor e são percorridos por velocidades, precipitações, pulsões, mudanças, obsessões, lugares comuns, armadilhas, terramotos. Sofrem o sismo e são, do sismo, o sismógrafo, mesmo quando é involuntária e inconscientemente que o são.

Não se pode tentar compreender este tempo e este mundo sem olhar os media nas suas ascensões e nas suas quedas, na suas cedências e nas suas resistências. Não se pode compreendê-lo sem seguir a via-sacra desta história de agonias, crucificações e às vezes ressurreições. E sem fitar, nessa história, as tentações do demónio, as condenações de Herodes, as mãos lavadas de Pilatos, os lenços de Verónica, as negações de Pedro e as traições de Judas.

Ao pensar os media e o jornalismo, é da tentação da simplificação, do sensacionalismo e da superficialidade (a que aliás muitos deles tantas vezes sucumbem) que temos de nos separar.

Ao fazer dos media e do jornalismo o seu «Assunto», Electra dá continuidade — e contiguidade — ao seu programa de pensar alguns dos temas, motivos, mitos e imagens que figuram e configuram o nosso tempo.

Assunto que gera emoções e comoções, que motiva dissídios e disputas, que origina vociferações e vinganças, que provoca defesas e autodefesas, que afronta convicções e conveniências, que suscita intrigas e levanta interesses, queremos pensá-lo aqui com uma serenidade ágil e uma distância que, no entanto, se quer aproximar do som do motor que faz andar e faz parar a esfera.

Temos consciência de que somos uma revista e de que tratar de um tema que intimamente nos diz respeito e veementemente nos desafia é sempre uma faca que pode cortar aquele que com ela corta. Ou, então, é o lançamento de um objecto voador que pode ter um efeito boomerang sobre nós, aborígenes do futuro.

Sabemos, todavia, que esse risco é útil, imperioso e relativo. Porque, correr este risco relativo sobre todos os riscos absolutos existentes no inquieto e inquietante mundo da comunicação social, não é sequer uma prova de coragem — é apenas uma necessidade de lucidez.

Nesta edição, apresentamos o portfólio do reconhecido artista William Kentridge. Falamos também de duas exposições presentes em Paris: uma de Rui Chafes – Alberto Giacometti e outra de Paula Rego. São artistas diferentes e, no entanto, tão iguais naquela falta da cobardia que hoje tudo acomoda e submete.

Cada um deles olhou e viu com olhos que não se fecharam nem frente à luz, nem face à treva. As suas obras desenham à volta um espaço de silêncio atravessado pela voz de uma vontade que não vacila.

Falar deles é afirmar que, neste mundo de relâmpagos sem luz e de trovões sem treva, ainda há lugar para aquilo que nos faz falta, mesmo sem o sabermos.

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Paulo Lisboa, 2018
Cortesia do artista