O enfraquecimento do jornalismo, o processo que lhe retirou o poder e as funções que tinha adquirido desde o Iluminismo, é quase sempre explicado por factores que decorrem da nova paisagem mediática e dos constrangimentos económicos a que está submetida a imprensa. Esta nova situação castigou muito especialmente (e às vezes quase que extinguiu) alguns géneros jornalísticos: o jornalismo noticioso, o jornalismo cultural, a reportagem e a investigação. O jornalismo moderno, com origem na época das Luzes, aquele que levou Hegel a dizer que a leitura do jornal é a oração matinal do homem moderno, tinha uma função cultural e crítica, no sentido mais amplo: ele devia contribuir, em conjunto com outras instâncias, para a socialização da cultura e estar ao serviço da formação de um espaço público capaz de promover a formação de uma opinião pública racional. Como é evidente, as condições actuais tanto do seu exercício como da sua difusão despotencializaram o jornalismo, quanto aos compromissos que ele tinha assumido desde a sua origem, e deslocaram-no do campo onde ele se legitimou durante mais de dois séculos. Surgiu mesmo um mot-valise para designar esta junção, entretanto naturalizada, do jornalismo com o entretenimento: infotainment.
A par desta aglutinação que designa a tendência para o inócuo e a irresponsabilidade, o campo jornalístico foi tomado por uma promíscua hifenização — o hífen de «político-mediático» — que sugere uma cumplicidade profissional e uma alternância de papéis entre os jornalistas e os políticos, formando uma classe anfíbia e reversível, a que tanto podemos chamar político-jornalística como jornalístico-política. Esta anfibologia é um sinal de que se tornou urgente fazer aquilo que os media mais resistem a fazer, a autocrítica, e declarar que a profissão correu mal, uma conclusão que encontra hoje razões suficientes para ser anunciada, nem todas muito diferentes daquelas que levaram Karl Kraus, no princípio do século XX, com inigualável força satírica, a dizer que a imprensa era «a grande prostituta de Viena». «A nossa profissão correu mal», Notre métier a mal tourné, é precisamente o título de um livro de dois jornalistas franceses, Philippe Cohen e Elisabeth Lévy, publicado em 2008. Não abundam, no entanto, as críticas e os diagnósticos provenientes do interior. Se há actividades profissionais e económicas que apostam numa estratégia de menorização dos seus triunfos e preferem dar uma imagem de crise crónica, os media parecem acreditar que se protegem silenciando os males de que sofrem e omitindo os erros que cometem. Fazem-no umas vezes por arrogância e outras por temerem perder o capital de que mais necessitam: a confiança. De acordo com esta tendência para o fechamento à exposição pública dos seus erros e fraquezas, a regra quase sempre seguida consiste em exaltar demagogicamente os sucessos e esconder com cuidado os problemas e os falhanços.
Quanto à anfibologia acima mencionada, o trânsito dos cargos de poder político para os cargos de poder mediático e vice-versa, o panorama dos media, em Portugal, oferece um exemplo extremo, de proporções inigualáveis. Esse facto contribui de maneira considerável para a obesidade da «opinião» e do «comentário» políticos de que sofre o jornalismo actualmente. A fragilidade do jornalismo (tanto do ponto de vista económico como editorial) pode ser medida, entre outros critérios, pelo nível de permeabilidade ao poder político. Quer os políticos em trânsito de um campo para outro, ocupando todas as «plataformas», quer a oligarquia formada pela lógica circular e redundante do espaço público mediático (que já Guy Debord, em A Sociedade do Espectáculo, tinha apreendido nesta fórmula: «Tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom aparece»), ambos são responsáveis por um jornalismo a que podemos chamar «editorialismo». O jornalismo editorialista, governado pelos «editocratas» (um neologismo surgido em França há alguns anos e que serviu de título a um livro colectivo), anula a função crítica do jornalismo e funciona segundo a lógica do entretenimento: promove a encenação de polémicas e debates que funcionam em circuito fechado, segundo uma tendência endogâmica, tautológica e mimética que atinge os cumes da exasperação quando há um acontecimento ou um assunto actual que polariza as atenções. Nesses momentos, impera uma lei gregária e o espaço mediático é varrido por uma onda avassaladora que cresce rapidamente, monopoliza todas as atenções, e logo desaparece. O espaço jornalístico fica então dominado por um coro homogéneo e parece uma engrenagem autotélica que funciona para se alimentar a si própria, como o homeostato de Ashby. Alguém chamou a isto «comunicação autística». Cria-se assim a ilusão — uma das maiores ilusões do nosso tempo — de que este jornalismo cria um espaço público alargado, próprio de uma sociedade transparente, quando na verdade a reduz na sua amplitude e no seu alcance. O jornalismo e os seus efeitos de sombra poderiam constituir o capítulo de um tratado sobre as transformações do espaço público na época dos media digitais. O universo cultural e os mundos reais e possíveis de que o jornalismo se ausenta, por desconhecimento, por desinteresse ou por desistência são enormes. E aqui a lei da concorrência funciona sempre ao contrário: não se trata nunca de procurar caminhos novos e de proceder a novas focalizações, o que é preciso sempre é fazer o que os outros fazem ou, se possível, antecipar o que já se sabe que os outros vão fazer. Esta regra é seguida com especial rigor nas áreas culturais onde o jornalismo se acomodou à lógica das «audiências» e do «consumo cultural» que se confirmam e se alimentam a si próprios. Um círculo vicioso está assim criado, de modo a que tudo funcione para garantir que só se mostra o que já foi visto e só se produz o que já antes foi consumido.
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