Assunto
Crise, incerteza e jornalismo
Barbie Zelizer

A relação entre crise e jornalismo, tal como a analisa a autora deste artigo, é uma questão consubstancial à nossa modernidade, à época da «incerteza», e não se circunscreve ao contexto e às contingências actuais. A questão da crise do jornalismo é muito mais problemática do que estamos habituados a pensar: é o que mostra Barbie Zelizer, figura importante dos journalism studies, com destaque para os estudos sobre a relação entre jornalismo e memória histórica e cultural.

Há mais de dois séculos, o poeta americano Ralph Waldo Emerson observou que os tempos difíceis têm valor científico, porque são oportunidades que um bom aluno não desperdiçaria. O papel dos desafios na complexa paisagem institucional contemporânea reitera a posição de Emerson, já que estes nos levam a parar, reorientar, continuar a fazer o que sempre fizemos, ou mudar de direcção. Constituindo rupturas de continuidade, os desafios dão-nos a possibilidade de reorganizar e remodelar os pressupostos que orientam a acção. Mas e se o sentido do desafio emerge de forma tão ameaçadora que nos domina, levando-nos a entendê-lo como uma crise? É isso que se passa com o jornalismo contemporâneo. Muito se tem falado sobre a crise actual das notícias, que segundo muitos estão a perder o seu próprio fundamento. Diz-se frequentemente que o jornalismo está de saída, com a crise actual a empurrá-lo violentamente porta fora. A forma discursiva desta afirmação pede a nossa consideração. O que é que se ganha e perde em explicar as condições actuais do jornalismo como uma situação de «crise»? Embora a intenção aqui não seja menosprezar as circunstâncias concretas nem minimizar a precariedade vivida pelo jornalismo, vale a pena considerar a invocação de «crise» como termo de eleição e deslindar os seus atributos enquanto exemplo de resposta institucional à incerteza. Apesar de alguns estudiosos terem sugerido examinar os contornos deste discurso, fazê-lo assertivamente pode ajudar-nos a melhor avaliar aquilo que está a ser omitido nos lamentos sobre um jornalismo sem futuro. Este artigo defende que, em geral, a resposta actual à crise do jornalismo viaja por um caminho já muito percorrido. Seguindo indicações discursivas estabelecidas há muito tempo para um entendimento do caos institucional agora tido como obsoleto e espacialmente limitado, a noção de crise que tem prevalecido entre muitos observadores assenta em temporalidades e geografias particulares que estão na base do seu imaginário. Desse modo, invocar «crise» como forma de explicar a situação difícil que o jornalismo está a viver é perder a oportunidade de reconhecer o quão contingentes e diferenciados os futuros do jornalismo podem ser.

gwega

Mestre de 1537 (artista anónimo da escola flamenga), Portrait de fou regardant à travers ses doigts (versão B), c.1547

Sobre incerteza, modernidade e crise

Uma observação sobre a época contemporânea partilhada por muitos é a de que esta está repleta de incerteza. O trabalho teórico sobre as condições actuais promoveu noções de risco (Ulrich Beck), contingência (Rorty), indeterminação (Eisenstadt) e liquidez (Bauman). A instabilidade aqui em causa pode ofuscar as diferenças subtis dos termos usados para a descrever. Mas todos eles oferecem uma descrição de condições incertas, às quais se entende deve ser dado algum tipo de resposta.

Hoje, a presença ubíqua da incerteza levanta questões fundamentais para a sustentabilidade futura, representando o ambiente, o mercado e a segurança global apenas alguns dos seus desafios principais. Como Wallerstein (2004) observou, «os cientistas podem agora pela primeira vez considerar a proposição de senso comum que tinham tão terminantemente rejeitado: a de que o mundo social é intrinsecamente incerto». Embora a incerteza tenha sido celebrada, ela implica um certo grau de variabilidade aleatória, destacando-se «dessas formas de pensar e governar que pressupõem um mundo determinado» (O’Malley, 2004). Assim sendo, as instituições deparam-se com obstáculos para os quais não estão devidamente preparadas. O funcionamento normal sobre o qual assentam as instituições desaba com o surgimento da incerteza, e nisto o jornalismo não é excepção.

"O que é que se ganha e perde em explicar as condições actuais do jornalismo como uma situação de «crise»? Este artigo defende que, em geral, a resposta actual à crise do jornalismo viaja por um caminho já muito percorrido."

A invocação de «crise» oferece uma resposta discursiva útil para a angústia gerada pela incerteza. Sendo a modernidade «encenada como aquilo que é singular, original, presente e autoritário» (Mitchell, 2002), a escolha do termo «crise» para descrever os desafios contemporâneos enquadra-se na sensibilidade moderna, porque permite afastar a incerteza. Embora haja hoje muitas formas de pensar a crise, a maior parte das perspectivas é baseada na aspiração de que é possível chegar-se ao outro lado. Por exemplo, numa discussão recente sobre as dificuldades económicas que a Europa atravessa, Bauman e Bordoni descreveram um estado de paralisia contemporânea que tornou a região num laboratório de sobrevivência com aplicação geral: à medida que a Europa for resolvendo o impacto das actuais medidas de austeridade, também as outras regiões lhe seguirão no encalço. Na verdade, a expectativa de superação da crise tem origem no projecto intelectual do Iluminismo, quando estabilidade, ordem e razão surgiram como valores a ser protegidos e cultivados, e tudo o que perturbasse essa relação devia ser contido. Nas palavras de Bauman (Bauman e Bordoni, 2014), ao discutir «qualquer tipo de crise […] primeiro transmitimos a sensação de incerteza, a nossa ignorância sobre o rumo que a situação está prestes a tomar — e, segundo, a vontade de intervir». Próximo de tendências mais abrangentes, direccionadas para o que Hacking chamou a «probabilização» do imaginário ocidental, o controlo da crise serviria assim de contrapeso a um futuro indeterminado. No entanto, como Koselleck defendeu há mais de meio século, invocar o termo «crise» em resposta a condições incertas é problemático. A sua invocação naturalizou muitas das suas circunstâncias constitutivas, e as contingências de natureza geográfica e histórica desvanecem-se frequentemente quando o usamos hoje.

Caracterizada por uma mistura de imprevisibilidade, disrupção, urgência, perda e necessidade de uma assistência externa que combata o desamparo e permita a recuperação, a crise parece possuir um conjunto alargado de atributos. No entanto, todos eles são facilmente questionáveis quando olhados mais de perto: será uma crise que se segue a longos períodos de negligência tão repentina como se quer fazer parecer? Porque é que a disrupção é mais merecedora de atenção do que aquilo que a precede? Será que ambientes sem capacidade de aprender com os seus erros e problemas escapam a uma discussão sobre a crise? O que é que há assim de tão atraente na promessa de um momento de não crise? Estas questões, e outras, apontam para o quão parcial e precária a ideia de crise pode ser.

Já que o funcionamento das instituições está em grande parte ligado à modernidade, não é de estranhar que esta tenha um impacto duradouro na vida institucional. Weber foi um dos primeiros a notar que as instituições usam a linguagem para se legitimarem constantemente, e essa visão tem sido corroborada de diferentes formas ao longo do tempo. Assim, o termo «crise» emerge como um descritor do caos institucional, porque tem utilidade para os que o invocam: discussões sobre o jornalismo não costumam referir jornalismo e crise, incerteza, ruído, perigo, caos, ou ameaça, embora tudo isto faça parte dos ambientes institucionais em que o jornalismo se encontra. Ao invés, a discussão dos desafios actuais do jornalismo tornou-se para muitos uma discussão da crise. Não faltam exemplos desta invocação. Muito do discurso da crise parte dos próprios jornalistas: se pesquisarmos no Google por «fim do jornalismo» obtemos 9.2 mil milhões de resultados. Os críticos e estudiosos dos media muitas vezes reforçam a sua centralidade ao adoptá-lo completamente, gerando títulos como Losing the News (Alex S. Jones), Can Journalism Be Saved? (Rachel Davis Mersey) e The End of Journalism (Alec Charles & Gavin Stewart). Apesar de «a maioria dos autores não chegarem a prever o que corresponderia a um futuro Inverno nuclear jornalístico» (Marcel Broersma & Chris Peters), ainda assim concentramse com pessimismo numa perda incipiente e suas consequências. Em momentos diferentes, tanto Philip Meyer como Robert McChesney e John Nichols basearam as suas previsões de catástrofe generalizada na crise dos modelos de negócio tradicionais, enquanto Jack Fuller salientou as mudanças na relação com o público como a primeira causa do mal-estar contemporâneo. David Mindich interpretou o desencanto dos jovens com as notícias como uma ameaça fundamental para o processo democrático e a relevância futura do jornalismo. Enquadrando o pessimismo reinante de forma bem sucinta, McChesney e Victor Pickard fizeram a célebre pergunta, «o último repórter pode, por favor, apagar a luz?» As implicações negativas desta posição são óbvias: as afirmações sobre a crise do jornalismo não só alteraram a forma como os estudiosos se relacionam com este e influenciaram opiniões sobre a sua viabilidade, mas também impediram um entendimento mais profundo das variantes que são ofuscadas quando se vê a crise como um fenómeno unitário. É certo que o recurso uniforme a uma ideia simplista de crise do jornalismo tem sido posta em causa. A produção teórica recente que se debate com os caprichos das condições actuais tem servido de correctivo útil ao poder discursivo da crise unitária na paisagem actual. Peters e Broersma, por exemplo, defenderam que as bases estruturantes do jornalismo distorcem necessariamente os desafios daí decorrentes e que a narrativa digital do jornalismo muda radicalmente o seu funcionamento institucional. Van der Haak, Parks e Castells analisaram o impacto dos modelos de negócio tradicionais, argumentando que há «uma crise da indústria dos media, mas não necessariamente uma crise do jornalismo». Chris Anderson entendeu a forma como os jornalistas vêem os seus públicos como essencial para alcançar uma maior estabilidade. Apesar disto, uma descrição simplista dos desafios actuais do jornalismo persiste em muitos meios. Como se explica isto? Talvez a sua adopção se deva ao facto de «crise», como termo lexical de eleição, ser produtivo. Oferece uma forma particular de omitir aspectos da realidade não centrais às afirmações que são feitas e de nos concentrarmos naquilo que tem um valor de uso mais estratégico. Embora a crise seja um fenómeno com dimensões materiais — fábricas fecham, pessoas morrem, infra-estruturas desabam — é igualmente moldado pelo discurso. Assim, a classificação de «crise» permite tornar desafios pouco claros e difíceis num fenómeno controlável que pode ser identificado, articulado, gerido e, finalmente, exterminado.

wewtwe

Mestre de 1537 (artista anónimo da escola flamenga), Portrait de fou regardant à travers ses doigts (versão A), ca. 1547

Resposta à Crise

Há convenções específicas que vêm ao de cima repetidamente quando o termo «crise» é usado para descrever a incerteza. Estas dizem respeito a três aspectos da crise — tempo, espaço e modo de invocação. Os três são empregados estrategicamente como forma de nos relacionarmos controladamente com a incerteza.

Primeiro, a crise convoca uma nova ordem temporal. Divide o tempo entre antes e depois, passado e futuro, com a própria crise a marcar graus variáveis de distinção entre eles. Neste sentido, a crise é posicionada como um momento de transição temporalmente definido. Entender circunstâncias incertas como momentos de crise permite, por exemplo, racionalizar uma definição alterada dos jornalistas como dependentes sobretudo de uma presença no local e de telemóveis, ou promove uma orientação para notícias que podem ser facilmente financiadas por fontes exteriores.

Segundo, a crise costuma ser vista em termos espaciais claros e tangíveis. É acordado atribuir-se-lhe um começo e isto conduz a um certo grau de causalidade fundamentada. Por exemplo, a falta de consideração pública pelas notícias pode ser entendida como uma consequência do império de tablóides do australiano Rupert Murdoch, enquanto as ameaças à integridade física dos jornalistas podem ser associadas a contestação pública na Rússia ou no Médio Oriente. O que é fundamental aqui é a tentativa de definir um lugar onde o problema possa ter originado ou existir de forma exagerada.

Em terceiro lugar, quando a crise é invocada é porque há um conflito entre algum aspecto da realidade e as expectativas sobre esta. Pode-se esperar que o jornalismo prevaleça, embora as condições actuais não pareçam promissoras. Esses conflitos produzem desorientação, uma antecipação muitas vezes intensa de consequências negativas. «O que é que aconteceu?» torna-se a pergunta a que é preciso responder. Nesta perspectiva, a crise é vista como um problema. Ela abala um sentido pré-definido de resolução, no qual se entende que o funcionamento normal e habitual, a estabilidade e o equilíbrio são perturbados por consequências potencialmente nocivas. Assim, reconhecer os atributos da crise obriga-nos a enquadrar tanto a crise como o terreno que a recebe de formas unidimensionais e formulaicas. Os hábitos e suas violações são reduzidos aos seus denominadores mais comuns e simples, enquanto a crise e respectivo terreno envolvente são vistos como mais antagónicos e distintos um do outro do que é necessário — sectarismo vs. objectividade, media tradicionais vs. novos media.

Juntos, estes aspectos da invocação da crise lembram-nos que esta requer sempre uma resposta. Deixá-la seguir o seu curso não funciona. Mesmo estipular que alguém está «em crise» já desencadeia certas respostas-padrão que nos direccionam para algum tipo de resolução. Os três aspectos da crise — tempo, espaço e modo de invocação — são essenciais para estabelecer e manter o que Janet Roitman identificou como um «ângulo morto» na produção de conhecimento. As suas vantagens — conclusão, concretude e coerência — combinam-se para contrabalançar a incerteza trazida pelos desafios. Em conjunto, elas permitem tornar visíveis ou invisíveis diferentes aspectos das circunstâncias precárias. Também possibilitam uma presunção de controlo sobre as mesmas.

Talvez o exemplo máximo disto seja o jornalismo, onde dificuldades várias dão origem a desafios múltiplos e contraditórios. Como se pode depreender dos muitos tipos de jornalismo que se encontram pelo mundo fora, o termo promove as diversas interacções destes com uma panóplia de sistemas políticos, económicos, sociais e jurídicos. Isto sugere que «o que é e não é crise se situa dentro do contexto local e das estruturas de sentido invocadas nesses contextos […] o que se pode considerar crise numa situação pode não o ser noutra» (Berkelaar e Dutta, 2007). Logo, o termo «crise» pode estar a descurar o que há de singular nos desafios que descreve.

"Os desafios actuais que o jornalismo enfrenta emergem como prementes. Politicamente, as notícias estão ameaçadas por todos os lados. Economicamente, os antigos modelos de negócio estão em franco declínio, enquanto as novas alternativas ainda não estabeleceram um caminho sólido para a recuperação."

werw

Hilma af Klint, The Parsifal Series, 1916
© Fotografia: Alexandre Ramos

Jornalismo em crise

Os desafios actuais que o jornalismo enfrenta emergem como prementes. Politicamente, as notícias estão ameaçadas por todos os lados. Economicamente, os antigos modelos de negócio estão em franco declínio, enquanto as novas alternativas ainda não estabeleceram um caminho sólido para a recuperação. Moralmente, escândalos e violações do comportamento ético arrastam a confiança pública nos media para os níveis mais baixos de sempre. Profissionalmente, a visão tradicional do que o jornalismo deve ser — objectivo, independente, ponderado — já não é válida. E tecnologicamente, a ascensão e consolidação dos media digitais tornam bem explícito aquilo que o jornalismo sempre tentou ocultar — os seus problemas com uma narrativa autoritária, separação do público, uma resposta relutante a exigências de transparência, insinuação junto dos que detêm o poder. Neste sentido, os desafios que o jornalismo terá de enfrentar emergem ameaçadoramente sobre todos os seus contornos e levaram os catastrofistas a prever o fim do jornalismo.

[...]

*Tradução de Ana Macedo

43twe