Assunto
O irreversível declínio dos media tradicionais
Joshua Benton

Do seu observatório da Universidade de Harvard, o Nieman Lab, de que é director, Joshua Benton analisa os problemas com que se debate a imprensa num tempo de inovação e expansão das plataformas digitais. Numa entrevista conduzida pela jornalista Cristina Margato, tratam-se problemas com fortes implicações políticas, como a eleição de Trump deixou bem à vista, e que lançam um desafio às sociedades democráticas.

 

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Sandro Botticelli, Nastagio Degli Onesti (O Banquete na Floresta de Pinheiros), 1483 (detalhe)

 

Joshua Benton é um observador atento e privilegiado. Há mais de vinte anos que acompanha a crise que a imprensa livre enfrenta, o que está a acontecer ao jornalismo, aos jornalistas e aos meios de comunicação tradicionais. Durante a primeira década foi repórter e jornalista. Nos últimos dez anos, e depois de ter tido a iniciativa de fundar o Nieman Journalism Lab, na Universidade de Harvard, é investigador. Joshua Benton tem procurado respostas para as perguntas que se colocam ao jornalismo e aos jornalistas, face a uma velha crise que começou com o florescimento da Internet. Uma crise que só se tem acentuado, como aconteceu com o aumento da circulação de notícias falsas, propagadas através das redes sociais, durante as campanhas políticas que culminaram na eleição de Donald Trump nos eua e de Jair Bolsonaro no Brasil.

O Nieman Journalism Lab produz pensamento sobre o jornalismo, procura dados estatísticos e trata-os, quer saber o que pode estar na origem do sucesso ou do fracasso de processos que os meios de comunicação social ensaiam todos os dias, em alguma parte do mundo, para sobreviverem. Quer ajudar os repórteres e editores a ajustarem-se às necessidades do online. As soluções ou as respostas não são fáceis de encontrar, mas a intenção de Joshua Benton e do Nieman Lab é encontrar boas ideias que os outros possam roubar: «Não pretendemos ter nem 5% de todas as respostas, mas conhecemos muitas pessoas inteligentes».

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Albrecht Dürer, Cristo Entre os Doutores, 1506 (detalhe)
 

CRISTINA MARGATO  Afirmava há dois anos que as forças que provocaram o fracasso dos media durante as últimas eleições norte-americanas iriam provavelmente agigantar-se. As suas previsões confirmam-se? Estamos pior?

JOSHUA BENTON  Agigantaram-se, acho eu, em alguns aspectos; mas estamos melhor, talvez. A existir uma tendência positiva, parece ser esta: o valor máximo do volume de informação gerado pelas redes sociais, como o Facebook, pertence ao passado. Em certo sentido, a situação está ligeiramente melhor; a informação que chega às pessoas já não vem tanto das redes sociais. No mínimo, a procura de informação gerada pelas redes sociais estabilizou-se. Segundo dados de vários países, as pessoas estão menos dependentes da informação veiculada pelo Facebook. Por seu lado, o Facebook mostra-se menos interessado na informação; e isto a vários níveis. Em Janeiro este tipo de conteúdos foi reduzido no feed de notícias, a «página inicial» que agrega as novas publicações. Talvez seja um sinal positivo; mesmo assim, as grandes tendências mantêm-se. Houve uma viragem crucial quando se passou da imprensa escrita e falada para a imprensa digital, que obviamente tem uma estrutura editorial menor. O declínio da imprensa tradicional é uma constante. Como é constante a mudança — agora do computador e do portátil para o telemóvel — e a grave questão do nosso discurso democrático, tanto nos eua como noutros pontos do mundo, acho eu.

CM  Nas últimas eleições americanas, o grande problema era o Facebook e as fake news. Se houvesse mais regulamentação, e se as pessoas não estivessem tão expostas a notícias falsas, a situação do jornalismo e da imprensa tradicional seria melhor?

JB  Na imprensa tradicional as coisas não correm bem. Quem tem interesse num discurso público cada vez mais polarizado ou mais desinformado, também sabe inovar, como se viu nas eleições brasileiras: a plataforma mais usada foi o WhatsApp, que pertence ao Facebook mas é diferente do Facebook. O WhatsApp é uma caixa-negra, que os académicos não sabem ao certo como funciona, por isso não temos dados fiáveis sobre o volume da desinformação disseminada por essas plataformas, mas pequeno não é com certeza. E é assim, mesmo quando um problema se resolve, aparecem sempre novos caminhos para a desinformação, explorados por quem quer avançar em toda a linha.

CM  Acha que no futuro ainda vamos olhar para trás e dizer que o Facebook e as outras redes sociais destruíram a democracia?

JB  Ainda não estou preparado para dizer que se destruiu a democracia. Mas posso dizer isto: comecei a fazer websites em 1994, lembro-me bem dos primeiros tempos da web, e havia muita gente com grandes utopias sobre as consequências de uma democratização da imprensa. No modelo antigo, se queríamos que a nossa mensagem chegasse às pessoas, tínhamos cada um de ter a sua rotativa, ou a sua torre emissora, o que exigia um grande investimento de capital. Por isso apenas um pequeno número de pessoas tinha verdadeiramente acesso ao grande público. Vem a web, que criou esta enorme oportunidade de fazer chegar às pessoas uma informação nova e óptima, e muita gente pensou: «Isto é fabuloso, isto é a democratização da imprensa». Com o tempo, fomos percebendo que, embora tudo isso esteja muito certo, a web criou também a possibilidade de chegar a pessoas mal-intencionadas, e criou também em nós a percepção de que, no modelo antigo, havia um grande consumo de informação; não porque as pessoas estivessem interessadas de facto na informação, mas porque francamente não havia escolha. Hoje em dia é frequente que uma pessoa intelectualmente ágil passe o tempo com jogos no telemóvel em vez de ler o jornal. Se as pessoas não querem ficar à espera dos noticiários à hora certa na chamada televisão linear, vão para a Netflix e passam lá o dia. Quantas mais oportunidades são criadas, mais as pessoas querem tudo menos a informação.

CM  Por outro lado, hoje a realidade política tem mais a ver com um reality show, com a sátira, com os programas de entretenimento… Acha que hoje se faz política segundo o modelo do reality show?

JB  Sim, acho que tem uma certa razão. Eu diria que Donald Trump imprimiu a sua marca. É uma pessoa que sabe muito bem como funcionam os media. Quando os tablóides eram o meio de atingir uma certa fama e notoriedade, não hesitou em ligar-se aos tablóides de Nova Iorque. Quando se deu a viragem para os reality shows, mudou-se para a televisão. Quando as redes sociais se popularizaram, foi o primeiro a usar o Twitter. Acho que a questão não se reduz a dizer que a política agora se faz segundo o modelo do reality show. Na realidade, o discurso das televisões assenta cada vez mais numa resposta emotiva. No Facebook pedem-nos uma resposta emotiva: gosto, adoro, isto irrita-me, isto choca-me. São as reacções por emoji que a plataforma propõe. Quando Mark Zuckerberg anunciou mudanças no feed de notícias em Janeiro, disse que o Facebook não valoriza a informação com base na sua utilidade mas sim no número de conversas e interacções que provoca. Quem quiser tirar proveito das vantagens do algoritmo do feed de notícias no Facebook, precisa de ter muita gente a comentar as suas publicações; e se é isso que valoriza a informação em detrimento de outro tipo de conteúdos, estamos, acho eu, a mexer com instintos ancestrais da humanidade. Gostamos de provocar e gostamos que nos provoquem, e não é difícil conseguir ambas as coisas nestas plataformas que criámos.

"O fosso que separa a pessoa muito bem informada da pessoa menos informada, aumentou; e é nesse sentido que há um regresso a uma época pré-massificação, antes de a publicidade ter permitido a criação dos meios de comunicação de massas."

CM  Acha que o jornalismo precisa de um novo código deontológico para sobreviver?

JB  É muito difícil falar em termos assim tão gerais, porque não há só um jornalismo — há centenas de milhares. Se a ideia é estabelecer parâmetros para o trabalho que uma empresa jornalística se propõe fazer, estabelecem-se parâmetros. Mas há-de haver sempre quem escolha outros parâmetros, ou quem não queira parâmetros nenhuns. Acho que tudo isto vai criar uma clivagem entre os produtos jornalísticos baseados na tradição e os produtos de qualidade superior, feitos no respeito da ética, que estão disponíveis para quem estiver disposto a pagar, e tiver dinheiro para isso, e tiver interesse pela informação. Um exemplo é o New York Times, que põe artigos online de acesso pago e tem dois milhões de pessoas dispostas a pagar para ler o site do New York Times. Mas esses dois milhões não são uma amostra aleatória da população norte-americana e da população mundial. Infelizmente, o resto das pessoas ou não tem meios ou não está interessado num jornalismo de qualidade, e há muita gente que vai passar a consumir cada vez mais um jornalismo de terceira categoria, e a clivagem vai tornar-se cada vez maior.

CM  Então é como ter uns que vivem num país do primeiro mundo e outros que não; é hierarquizar a sociedade, o que não é novo mas que, neste caso, corresponde a um novo modelo…

JB  Os historiadores dos media diriam que uma das maneiras de encarar esta viragem é não a considerar como um universo radicalmente novo, mas sim como a continuação do que o jornalismo era dantes. O digital é um estranho mundo, mais estranho do que a época dos «meios de comunicação social», em que as massas tinham acesso a uma informação completamente subsidiada e com o mesmo nível de qualidade — essa é que é a excepção. Sempre houve uma diferença entre a quantidade de informação e de saber que está disponível para os ricos e os pobres, para os que, por motivos profissionais, precisam de saber tudo sobre o resto do mundo e para os que não precisam, para quem tem acesso ao poder e para quem não tem. E acho que em muitos aspectos estamos a regressar a essa época.

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*Tradução de Maria Jorge de Freitas