Livro de Horas
Notas à volta de "Der Diktator"
Rafael R. Villalobos

Da nova geração, o espanhol Rafael R. Villalobos é o mais reconhecido encenador de teatro e ópera, também dramaturgo, cenógrafo e figurinista. Tem uma carreira internacional em grande expansão, com projectos apresentados em Espanha, Itália, Alemanha, Reino Unido, Hungria. Algumas das suas produções foram transmitidas pela BBC e pela OperaVision. Entre as suas encenações, está a Elektra de Richard Strauss. Neste diário, com uma linguagem viva e quotidiana e uma energia criadora e crítica, pensa e escreve sobre a sua vida e o seu trabalho como encenador, afirmando uma consciência artística, cultural e política.

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Fotomontagem de Ricardo Sánchez Cuerda, a partir de um retrato de George Dawe, com Martin Gantner caracterizado como Donald Trump, elemento de cena da produção de El Dictador de Ernst Krenek, dirigida por Rafael R. Villalobos, no Teatro de la Maestranza, em Sevilha, 2018

 

Lembro-me da torrente de sensações que tive ao assistir num sábado, 19 de Novembro, à estreia em Espanha de Le Grand Macabre — ópera de György Ligeti escrita em 1978 e hoje convertida num pilar fundamental da história da música — no Teatro del Liceu, em Barcelona, sala que, dadas as circunstâncias políticas do país, talvez deixe de considerar-se espanhola no futuro. Era uma produção dos Fura dels Baus. O evento não passou de uma efeméride musical quase inexistente, porque a dita estreia ocorreu durante o dia de reflexão das eleições antecipadas de 20 de Novembro, convocadas em 28 de Julho desse ano. Num mundo, o da ópera, onde as programações são fechadas com anos de antecedência, o acaso fez com que a data de um evento eleitoral coincidisse com a estreia de u ma obra de forte carga política. Além disso, era muito claro que a ferocidade da crise económica iria empurrar a direita para o poder apenas poucas horas depois da récita, como assim foi, o que aquecia ainda mais o ambiente.

Em 2018, mesmo estando programada com quase dois anos de antecedência, uma nova antecipação eleitoral fez com que a estreia espanhola da obra Der Diktator, de E. Krenek, no Teatro de la Maestranza, em Sevilha, coincidisse com o fim da campanha para as eleições na Andaluzia, novamente num momento crucial da política europeia e espanhola, com o debate da autonomia catalã em cima da mesa, o conflito territorial que o Brexit supõe para os trabalhadores de Gibraltar que vivem na fronteira com La Línea de la Concepción (Cádis) e a subida do fascismo pairando sobre as nossas cabeças. Agora sou eu quem dirige a produção.

Dia 1, primeira parte

Que a ópera e a sociedade andem a par não deveria ser excepção; muito pelo contrário. Para mim, a ópera é uma ferramenta social que pode e deve apelar ao público, fazendo-o reflectir como indivíduo e sociedade, e a casualidade das eleições parece-me uma óptima oportunidade para este exercício.

Tudo isto teria dito na apresentação do projecto, momento fundamental para que antes do primeiro ensaio os cantores se familiarizem com a composição sobre a qual irão trabalhar; mas que não existiu, uma vez que não houve apresentação. O director artístico, que é também o director musical da produção, acha que temos muito pouco tempo para que possa haver lugar para sabermos que diabo estamos a fazer — mais à frente chegarei à conclusão de que ele temia que eu fizesse uma exposição demasiado política da obra e dos cantores — e, em vez disso, dá lugar a um ensaio musical.

OK, vamos começar a trabalhar sem saber que diabo estamos a fazer e ainda por cima roubam-me o ensaio. Fico muito aborrecido. Leio o jornal para reforçar o meu inconformismo, enquanto os solistas cantam. A actual presidente da região, do Partido Socialista, foi a Madrid para uma comissão que investiga a corrupção do seu partido no governo andaluz, onde foi hegemónico durante mais de trinta anos. Faltam quatro semanas e não faço ideia em quem votar, a esquerda regional está podre e os partidos de direita têm demasiada presença mediática, suficiente para não querer exercer um voto útil que tente combatê-los. O director musical dá uma descompostura a um jovem cantor por não pronunciar bem o alemão e ridiculariza-o à frente de todos.

"Para mim, a ópera é uma ferramenta social que pode e deve apelar ao público, fazendo-o reflectir como indivíduo e sociedade."

Dia 1, segunda parte

Depois de deslocar quatro horas da minha primeira intervenção para um ensaio musical não programado — chateia-me que não respeitem o meu espaço de criação —, pude, por fim, explicar o conceito aos intervenientes na montagem de Diktator, obra originalmente inspirada em Mussolini. Começo o meu discurso aludindo a como a Europa se vangloria dos seus valores perante o capitalismo norte-americano, mas, no fundo, de como imitamos tudo aquilo que criticamos na primeira potência. «Ter ideais é fácil, o difícil é ser coerente com eles», digo-lhes, e mostro uma fotografia que aparece no mesmo jornal, onde o candidato regional de centro-direita almoça com a sua família e a do líder nacional do partido num McDonald’s. WTF?

Falo da dupla perversão do poder — o poder seduz os políticos, os poderosos seduzem os cidadãos — e do uso da força armada para engrandecer a figura de um líder de maneira narcisista, enumerando alguns conflitos com implicação dos eua, aos quais quero fazer referências na montagem — Segunda Guerra Mundial, Vietname, Golfo. Falo-lhes também de como Tony Blair pediu desculpa por invadir o Iraque sem provas suficientes, mas Aznar não. Uma jovem cantora espanhola pergunta-me quem é Tony Blair e quase tenho de conter as lágrimas. O barítono principal, um dos cantores mais importantes e reputados da Alemanha, aproveita para me interromper: prefere ensaiar a que lhe explique a minha abordagem à peça. «Too many words», diz-me, enquanto me olha com receio e com a evidência de que não passo de um acólito pós-adolescente dizendo coisas demasiado importantes para ele saber do que estou a falar.

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