Thomas Carlyle, o famoso historiador britânico do século XIX, afirmou uma vez que «a história não é mais do que uma biografia dos grandes homens».
Mentira! A história também se faz com grandes mulheres. O mesmo acontece com actores impessoais: movimentos sociais, condições económicas, acontecimentos internacionais, ideias e instituições. Mas há individualidades na política com um impacto decisivo na história — um impacto plasmado nas suas biografias.
É o caso de Mikhail Gorbatchov. Além do seu envolvimento na destruição do totalitarismo soviético, Gorbatchov contribuiu mais do que ninguém para o fim da Guerra Fria. Embora tenha procurado reformar e preservar a unidade do seu país, concorreu involuntariamente para a derrocada da União Soviética, tendo ficado na situação de presidir a um país que deixara de existir.
O enorme poder que detinha como presidente da URSS permitiu-lhe transformar o país. A sua singularidade — aquilo que o distingue de outros dirigentes soviéticos — faz supor que o seu carácter e a sua personalidade são fundamentais para se entender o uso que fez do poder que tinha.
Dirigente máximo de um regime não democrático, Gorbatchov não se viu constrangido por uma imprensa independente, por interesses de poderosos grupos de pressão, por uma constituição ou pelas normas de um Estado de direito. Se tivesse actuado como actuaria qualquer outro dirigente soviético, diríamos que o motivavam valores afinal comuns a todos eles, ou que reagia, como tantos outros, aos imperativos de uma situação que todos enfrentaram. Mas Gorbatchov era único. Quando assumiu o poder em Março de 1985, a maioria dos seus colegas do Kremlin queria um mínimo de reformas. Mas Gorbatchov quis democratizar o país por inteiro. Nos últimos dias da sua presidência, só uma escassa minoria de dirigentes do Kremlin o apoiava: Eduard Shevardnadze, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Alexander Yakovlev, o principal aliado de Gorbatchov, e Vadim Medvedev. Ainda para mais, nenhum deles era de facto independente; se estavam em posição de o apoiar era pura e simplesmente porque Gorbatchov os tinha instalado, ou os mantivera, no Politburo do Partido Comunista.
O académico russo Dmitri Furman, já falecido, sistematizou em traços largos a singularidade de Gorbatchov: foi «o único político na história da Rússia que, tendo plenos poderes, abriu mão deles e voluntariamente optou por limitá-los — chegando até a correr o risco de os perder — em nome de sólidos valores morais». Para Gorbatchov, recorrer à violência e ao uso da força para se manter no poder seria assumir «uma derrota». À luz dos seus princípios, acrescenta Furman, «a sua queda foi uma vitória» — embora, em verdade se diga, Gorbatchov não a entendesse assim na altura.
Dado o impacto único que teve no seu país, e também no mundo, temos de encontrar as respostas para alguns pontos-chave. Como é que Gorbatchov — que, no ensino secundário, escrevera uma composição onde punha Estaline nos píncaros — se transformou no «coveiro» do regime soviético? Por que razão o regime soviético optou por fazer deste homem seu presidente? Por que razão quis democratizar a URSS e por que razão fracassou redondamente? Como é que Gorbatchov, um dirigente comunista soviético, e Ronald Reagan, um presidente americano ultraconservador, se associaram, numa parceria quase perfeita, para pôr fim à Guerra Fria? Por que razão permitiu Gorbatchov que o império soviético na Europa de Leste se emancipasse da URSS sem disparar um tiro que fosse para o evitar?
Todas estas perguntas têm respostas complexas, que implicam muitas das forças impessoais que mencionei no início deste ensaio. Mas irei ocupar-me apenas da sua biografia.
Nascido em 1931, a infância de Gorbatchov decorreu numa época terrível. Dois tios e uma tia morreram de inanição durante a Grande Fome de 1932–33. As purgas estalinistas dos anos 30 atiraram os dois avôs para um gulag: o avô materno foi preso em 1934, o avô paterno em 1937. Em 1942 a aldeia rural de Gorbatchov esteve vários meses sob ocupação nazi. A fome atingiu de novo a região em 1944 e 1946.
Gorbatchov, contudo, veio a revelar-se um homem notavelmente optimista, com uma imensa auto-estima, extremamente seguro de si e dos seus concidadãos, qualidades que haviam de influenciar a sua carreira de dirigente político. Só um dirigente extraordinariamente optimista e autoconfiante — e que acreditasse na capacidade dos seus concidadãos para decidir o próprio destino — poderia democratizar um país que nunca soube o que era a democracia.
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