Editorial
A velocidade da luz
José Manuel dos Santos e António Soares

Foi como se a Velocidade, de que o «Assunto», já há muito previsto e anunciado, desta edição trata, se tivesse transformado na imagem da nossa perplexidade e na medida da nossa distância às coisas. Este número de Electra estava pronto para ser impresso quando a vida se tornou outra. Subitamente, o espaço fechou-se e o tempo trocou-se, puxando rapidamente o amanhã para hoje e levando lentamente o hoje para amanhã.

point dume

Herb Ritts, Jackie Joyner-Kersee, Point Dume, 1987
© Herb Ritts / Trunk Archive

 

O mundo parou: parou para parar aquilo que pode matar, mas acelerou para acelerar o que pode salvar. Por isso, muitas coisas que estavam previstas ficaram suspensas, como o funâmbulo que corre sobre o arame e se detêm nele para se concentrar e avançar depois sobre o perigo.

A pandemia da covid-19, e tudo aquilo que teve de ser feito para tentar limitar a propagação, a doença e a morte, criaram interdições, obstáculos, limitações, rupturas e violências, cujos efeitos se tornaram avassaladores.

As dificuldades levaram a que a saída de Electra 9 fosse adiada. Mas a revista que o leitor tem nas mãos é um pouco diferente daquela que havíamos dado como pronta para impressão. Fizemos deste tempo de espera uma oportunidade para a actualizarmos com alguns contributos que nos ajudem a começar a pensar o que aconteceu e como isso dá ao futuro um rosto inesperado. O lugar-comum, tantas vezes vãmente repetido, de que «nada será como dantes» ganhou agora uma agudeza que lhe tira a banalidade, dando-lhe uma eloquência ameaçadora. Sobre isso, nos propomos reflectir.

Com este número 9, entramos num novo ano da vida da nossa revista. O começo foi já há dois anos e nove edições. Desde então, Electra tem sido para os seus leitores um lugar de encontro de interesses comuns e de descobertas conjuntas. As páginas da revista foram percorridas por perguntas fortes e respostas tentadas, por temas e motivos de pensamento e crítica. Por elas, passaram ideias verbais e ideias visuais, argumentos e hipóteses, indagações e interpelações, análises e sínteses, figuras e acontecimentos, citações e refutações.

Num tempo que mergulha entre o óbvio e o obtuso (Roland Barthes), ou que corre entre os apocalípticos e os integrados (Umberto Eco), o determinismo das certezas é quase sempre mais nocivo e inútil do que a insatisfação das dúvidas. Nele, vamos fazendo nossa a procura de modos de comunicação que sejam também formas de interrogação e maneiras de apanhar alguns grãos de areia na extensa e funda praia do desconhecido.

Como já dissemos, desejamos, com palavras e imagens, ir dando um rosto ao nosso tempo, sabendo embora que, não raro, tal rosto se faz de máscaras sobrepostas ou sucedidas. Temos também consciência de que, como agora se viu gritantemente, esse rosto é sempre precário e instável, incompleto e falaz. Sabemos ainda que ele é plural, polimórfico, pluriforme. Na geometria descritiva da actualidade, o rosto que se mostra é um sólido poliédrico que vai rodando, projectando a sombra das suas faces, arestas e vértices nos prolongados planos do mundo.

Como todos os tempos, mas ainda mais do que todos os tempos, este é um tempo escrito com as palavras duras e duráveis da incerteza, da complexidade e agora de um medo maior. São esses os seus atributos e, sem termos a consciência deles, o olhar faz-se cego, mesmo quando vê, e tudo se torna simplista e superficial, repetitivo e redutor, dogmático e convencional, banal e estúpido.

«Que época é esta?», foi a nossa pergunta no Assunto fundador de Electra. Depois, acompanhando a série natural dos números que aparecem no canto direito da capa da revista, olhámos a estupidez de cada tempo — e, mais do que todas, a do nosso; pensámos o turismo omnipresente e a viagem hiperbólica; analisámos a informação, o jornalismo e as redes sociais como campos de batalhas e de despojos; olhámos de frente os «jovens para sempre», com a sua mitologia e o seu ideal de beleza e de imortalidade de bolso; pensámos o dinheiro, o que ele é e o que representa; reflectimos sobre nós e os outros animais, numa história que corre entre o silêncio e a voz, com a sua vontade de identificação e de distância, de violência e de submissão; perspectivámos a memória e o esquecimento como pares e álibis um do outro; e, por agora, neste número 9, a velocidade empurra o rosto mutável de um tempo que se procura a si mesmo. Esta é uma revista que, ao procurar o rosto do tempo, vai encontrando, nessa procura, o seu próprio rosto. É uma revista que olha as imagens e escuta as vozes, sabendo que umas são das outras as formas e os fundos. É uma revista que sabe levar a espantada ficção da realidade ao encontro da espantosa realidade da ficção.

Tem significado e faz sentido que o «Assunto» da edição que assinala o segundo ano de Electra e que se publica num tempo e num mundo onde a corrida e a paragem, a rapidez e a lentidão passaram a estar ainda mais contrastadas, confrontadas e visíveis, tenha a Velocidade como tema e alvo. A velocidade é uma grande marca da Modernidade, da Era da Técnica e da Idade Contemporânea.

De Baudelaire a Rimbaud e a Fernando Pessoa, dos cubistas aos futuristas e aos vorticistas, de Heisenberg a von Braun e a Virilio, de Karl Benz e Gottlieb Daimler a Bruno Munari, de Apollinaire a Milan Kundera e a Gonçalo M. Tavares, de Marcel Duchamp a Hartmut Rosa e aos aceleracionistas, a velocidade foi agarrada como uma seta lançada ao futuro. Quando Albert Einstein escreveu a mais famosa das equações da história humana — E=mc2 — fez da velocidade da luz no vácuo a mais poética das constantes físicas: 299 792 458 m por segundo. O c que a simboliza vem do latim celeritas, que significa velocidade ou rapidez.

A velocidade é a variação do espaço no tempo e a aceleração é a variação da velocidade no tempo. No nosso século, a velocidade não parou de aumentar e a aceleração de crescer. Essa grandeza tomou conta de tudo: dos trabalhos e dos dias, dos ócios e dos prazeres, das angústias e das expectativas. A velocidade mudou e determinou tudo: a política e a comunicação, a economia e a sociedade, a ciência e a cibernética, a arte e o amor, a comida e o sono, a doença e a saúde, a vida e a morte. Diz Fernando Pessoa com a voz nervosa de Álvaro de Campos: «Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.»

Mas já, circa 1930, Fernando Pessoa, fazendo seu o seu próprio nome e com aquela inteligência aguda, paradoxal, provocadora e indiscreta que não parava no limiar de nada nem de ninguém, no ensaio «Heróstrato», em que trata da busca da imortalidade, escreveu sobre os «toxicómanos da velocidade»:

Se hesitamos em lamentar o toxicómano que se enche de cocaína, porque haveríamos de lamentar o toxicómano ainda mais insensato que consome velocidade em vez de cocaína?

Na época do Renascimento, a vida era mais veloz e mais sadiamente febril do que na nossa. Sir Philip Sidney foi embaixador aos dezasseis anos.

A lentidão da nossa vida é tão grande que não nos consideramos velhos aos quarenta anos. A velocidade dos veículos retirou a velocidade às nossas almas. Vivemos muito devagar e é por isso que nos aborrecemos tão facilmente. A vida tornou-se para nós uma zona rural. Não trabalhamos o suficiente e fingimos trabalhar demasiado. Movemo-nos muito rapidamente de um ponto onde nada se faz para outro onde não há nada que fazer, e chamamos a isto a pressa febril da vida moderna. Não é a febre da pressa, mas sim a pressa da febre. A vida moderna é um lazer agitado, uma fuga ao movimento ordenado por meio da agitação. (Trad. Richard Zenith)

Na passagem do século XX para o século XXI, o filósofo, arquitecto e urbanista Paul Virilio fez o seu pensamento pensar os tempos que o tempo tem. Ao afirmar que a cada velocidade corresponde uma realidade, deu às auto-estradas do tempo um novo velocímetro. E falou da tirania da velocidade e das suas consequências sentidas e pressentidas. Criou mesmo uma nova ciência, a dromologia, campo interdisciplinar de saberes, inscrevendo nele um triângulo que tem nos seus vértices a velocidade, a tecnologia e a política.

Para Virilio, a política é hoje uma cronopolítica, uma corrida no tempo, contra o tempo. Afirmou ele, com uma rapidez aforística que faz pensar na fulminante fulgurância de Guy Debord: «Vivemos na era da cronopolítica, em pleno culto da velocidade da luz, numa verdadeira corrida contra o tempo.» Ou: «Na era da cronopolítica, a velocidade das transações excede o tempo da política, tornando o Estado-nação uma figura cada vez mais decorativa.» E: «Na era da cronopolítica, a velocidade das transações assegura a hegemonia da especulação sobre as necessidades reais da economia.» Ou ainda: «Hoje, o político não é mais geopolítico, ligado ao solo, mas sim aeropolítico: as ondas, os aviões, os satélites desenham o futuro.» E: «A aceleração do tempo torna o mundo plano.»

E faz uma ressonância magnética ao organismo do presente, falando da «desconstrução da cultura geral devido à loucura, à alucinação da informação». E afirma: «A aceleração do tempo impede-nos de ver a diferença entre o verdadeiro e o falso.» Ou: «A aceleração do tempo real põe em causa a percepção do mundo sensível e a empatia entre os seres humanos.»

Estes aforismos escrevem-nos e inscrevem-nos de outra maneira no tempo do mundo. Os efeitos desta velocidade incessantemente aumentada chegam tanto ao infinitamente grande como ao infinitamente pequeno. É como se a nossa vida tivesse passado da velocidade do som para a velocidade da luz. Por isso, olhar este aumento de velocidade é estar no centro do tempo e do que nele acontece e muda.

Continuando uma conversa que vem da Antiguidade, a aceleração e a lentidão estão frente-a-frente como duas personagens de um filme que atravessa o nosso tempo. Já nos anos 20 do século passado, Paul Morand escreveu um ensaio a que deu o título «De la vitesse» [Da velocidade] e Valery Larbaud respondeu-lhe com outro ensaio que lhe dedicou sobre «La lenteur» [A lentidão]. Nos nossos dias, o Manifesto Aceleracionista defende o aumento e a intensificação da aceleração e não o seu abrandamento.

A pandemia da covid-19 também pode ser olhada do ponto de vista da velocidade, das suas variações e dos vértices delas. A propagação acelerada e global do coronavírus SARS-CoV-2 gerou uma desaceleração da vida até quase à sua paragem, sentida como contra-vertigem. E assim o jogo diabólico entre a aceleração do contágio e a desaceleração do contacto, entre o avançar da doença e a procura do antídoto, entre a incubação silenciosa e o sintoma gritante, entre a imobilidade dos doentes e a corrida contra o tempo dos governantes, investigadores, médicos e enfermeiros, entre a clausura e o controlo, entre o rosto e a máscara, se constituiu em símbolo de um tempo que foi obrigado a deter-se sobre si mesmo para se temer. Tudo se confinou numa pausa lenta e num «solipsismo do momento presente», cercados por movimentos nervosos, agitados e temerosos. As proximidades tornaram-se distâncias, e tudo, do trabalho ao sexo, passou a usar o prefixo tele. Mas a velocidade da vigilância tornou o mundo um panóptico global.

As consequências políticas e comunicacionais, biopolíticas e geopolíticas, económicas e sociais, culturais e científicas, jurídicas e psicológicas, éticas e ecológicas, desta pandemia, das suas imposições e exigências, dos seus aproveitamentos e abusos vão ser maiores do que a imaginação que temos delas. Esses efeitos multiplicados uns pelos outros serão contagiados pela experiência da alteração do ritmo do mundo e de nós nele. Doravante, a velocidade aumentada ou diminuída vai ter a memória de uma compulsão violenta — e será uma medida das coisas que acontecem e às quais temos de dar resposta. É como se o mundo e o seu espaço tivessem sido agarrados pela mão perigosa do tempo e obrigados a olharem a contracção e a expansão com outros olhos. Com esta pandemia e a sua etiologia, a velocidade vivida como consciência da ameaça ou da resistência tornou-se viral.

Olhar esses movimentos e essas paragens é, afinal, o propósito de Electra e do seu mapa cultural. Esse objectivo não se realiza apenas no dossier a que chamamos Assunto. A revista compõe-se de muitos e vários capítulos — e, em cada um deles, ergue-se uma ideia, uma imagem, uma memória, uma possibilidade, uma afirmação, uma exegese, uma negação, uma visão, uma escuta, uma indagação. Por isso, cada número convida o leitor a desenhar nele um território de leituras e de releituras.

Dois anos, nove edições: é com o tempo que passa e com o tempo que fica do tempo que passa que a revista tece a sua teia.

Este número é uma reafirmação daquilo que nos liga aos leitores, sobretudo num tempo que exige, mais do que nunca, atenção, interrogação, crítica e criação de novos possíveis. E é também a renovação de uma gratidão que, vista daí, se chama interesse e reconhecimento. Com os leitores que fazem da leitura de Electra uma fidelidade a si próprios, dizemos o que Virilio disse: «A arte e a cultura introduzem distância e duração. Faça da sua vida uma obra de arte.»