O mundo parou: parou para parar aquilo que pode matar, mas acelerou para acelerar o que pode salvar. Por isso, muitas coisas que estavam previstas ficaram suspensas, como o funâmbulo que corre sobre o arame e se detêm nele para se concentrar e avançar depois sobre o perigo.
A pandemia da covid-19, e tudo aquilo que teve de ser feito para tentar limitar a propagação, a doença e a morte, criaram interdições, obstáculos, limitações, rupturas e violências, cujos efeitos se tornaram avassaladores.
As dificuldades levaram a que a saída de Electra 9 fosse adiada. Mas a revista que o leitor tem nas mãos é um pouco diferente daquela que havíamos dado como pronta para impressão. Fizemos deste tempo de espera uma oportunidade para a actualizarmos com alguns contributos que nos ajudem a começar a pensar o que aconteceu e como isso dá ao futuro um rosto inesperado. O lugar-comum, tantas vezes vãmente repetido, de que «nada será como dantes» ganhou agora uma agudeza que lhe tira a banalidade, dando-lhe uma eloquência ameaçadora. Sobre isso, nos propomos reflectir.
Com este número 9, entramos num novo ano da vida da nossa revista. O começo foi já há dois anos e nove edições. Desde então, Electra tem sido para os seus leitores um lugar de encontro de interesses comuns e de descobertas conjuntas. As páginas da revista foram percorridas por perguntas fortes e respostas tentadas, por temas e motivos de pensamento e crítica. Por elas, passaram ideias verbais e ideias visuais, argumentos e hipóteses, indagações e interpelações, análises e sínteses, figuras e acontecimentos, citações e refutações.
Num tempo que mergulha entre o óbvio e o obtuso (Roland Barthes), ou que corre entre os apocalípticos e os integrados (Umberto Eco), o determinismo das certezas é quase sempre mais nocivo e inútil do que a insatisfação das dúvidas. Nele, vamos fazendo nossa a procura de modos de comunicação que sejam também formas de interrogação e maneiras de apanhar alguns grãos de areia na extensa e funda praia do desconhecido.
Como já dissemos, desejamos, com palavras e imagens, ir dando um rosto ao nosso tempo, sabendo embora que, não raro, tal rosto se faz de máscaras sobrepostas ou sucedidas. Temos também consciência de que, como agora se viu gritantemente, esse rosto é sempre precário e instável, incompleto e falaz. Sabemos ainda que ele é plural, polimórfico, pluriforme. Na geometria descritiva da actualidade, o rosto que se mostra é um sólido poliédrico que vai rodando, projectando a sombra das suas faces, arestas e vértices nos prolongados planos do mundo.
Como todos os tempos, mas ainda mais do que todos os tempos, este é um tempo escrito com as palavras duras e duráveis da incerteza, da complexidade e agora de um medo maior. São esses os seus atributos e, sem termos a consciência deles, o olhar faz-se cego, mesmo quando vê, e tudo se torna simplista e superficial, repetitivo e redutor, dogmático e convencional, banal e estúpido.
«Que época é esta?», foi a nossa pergunta no Assunto fundador de Electra. Depois, acompanhando a série natural dos números que aparecem no canto direito da capa da revista, olhámos a estupidez de cada tempo — e, mais do que todas, a do nosso; pensámos o turismo omnipresente e a viagem hiperbólica; analisámos a informação, o jornalismo e as redes sociais como campos de batalhas e de despojos; olhámos de frente os «jovens para sempre», com a sua mitologia e o seu ideal de beleza e de imortalidade de bolso; pensámos o dinheiro, o que ele é e o que representa; reflectimos sobre nós e os outros animais, numa história que corre entre o silêncio e a voz, com a sua vontade de identificação e de distância, de violência e de submissão; perspectivámos a memória e o esquecimento como pares e álibis um do outro; e, por agora, neste número 9, a velocidade empurra o rosto mutável de um tempo que se procura a si mesmo. Esta é uma revista que, ao procurar o rosto do tempo, vai encontrando, nessa procura, o seu próprio rosto. É uma revista que olha as imagens e escuta as vozes, sabendo que umas são das outras as formas e os fundos. É uma revista que sabe levar a espantada ficção da realidade ao encontro da espantosa realidade da ficção.
Tem significado e faz sentido que o «Assunto» da edição que assinala o segundo ano de Electra e que se publica num tempo e num mundo onde a corrida e a paragem, a rapidez e a lentidão passaram a estar ainda mais contrastadas, confrontadas e visíveis, tenha a Velocidade como tema e alvo. A velocidade é uma grande marca da Modernidade, da Era da Técnica e da Idade Contemporânea.
De Baudelaire a Rimbaud e a Fernando Pessoa, dos cubistas aos futuristas e aos vorticistas, de Heisenberg a von Braun e a Virilio, de Karl Benz e Gottlieb Daimler a Bruno Munari, de Apollinaire a Milan Kundera e a Gonçalo M. Tavares, de Marcel Duchamp a Hartmut Rosa e aos aceleracionistas, a velocidade foi agarrada como uma seta lançada ao futuro. Quando Albert Einstein escreveu a mais famosa das equações da história humana — E=mc2 — fez da velocidade da luz no vácuo a mais poética das constantes físicas: 299 792 458 m por segundo. O c que a simboliza vem do latim celeritas, que significa velocidade ou rapidez.
A velocidade é a variação do espaço no tempo e a aceleração é a variação da velocidade no tempo. No nosso século, a velocidade não parou de aumentar e a aceleração de crescer. Essa grandeza tomou conta de tudo: dos trabalhos e dos dias, dos ócios e dos prazeres, das angústias e das expectativas. A velocidade mudou e determinou tudo: a política e a comunicação, a economia e a sociedade, a ciência e a cibernética, a arte e o amor, a comida e o sono, a doença e a saúde, a vida e a morte. Diz Fernando Pessoa com a voz nervosa de Álvaro de Campos: «Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.»
Mas já, circa 1930, Fernando Pessoa, fazendo seu o seu próprio nome e com aquela inteligência aguda, paradoxal, provocadora e indiscreta que não parava no limiar de nada nem de ninguém, no ensaio «Heróstrato», em que trata da busca da imortalidade, escreveu sobre os «toxicómanos da velocidade»:
Partilhar artigo