Primeira Pessoa
Vandana Shiva: O renascer do tempo feminino
Sofia Steinvorth

Nesta entrevista, Vandana Shiva, uma das mais conhecidas activistas ambientais dos nossos tempos, fala-nos sobre o seu trabalho em prol da agricultura orgânica, tanto na sua Índia natal como a nível global. Defende o imprescindível papel das mulheres para uma economia cuidadora, humana e ecológica, assim como a necessidade de lutarmos contra a distorção do significado original das palavras, fruto da linguagem do mercado e da colonização.
 

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Vandana Shiva

Com um imenso impacto social e político e reconhecida internacionalmente pelo seu trabalho em defesa da agricultura biológica, Vandana Shiva é talvez a mais conhecida activista ambiental dos nossos tempos. Nas últimas décadas, destacou-se pelo seu inabalável compromisso na luta contra os organismos geneticamente modificados e o uso de produtos químicos na agricultura, o que a levou a enfrentar, com enorme coragem, algumas das mais poderosas empresas multinacionais da actualidade — entre as quais a Monsanto, a Cargill e a Bayer. No centro do seu trabalho encontra-se a ideia de liberdade das sementes, convicção que engloba dois aspectos fundamentais: o direito da natureza a desenvolver os seus próprios caminhos e o direito dos agricultores a produzir sementes independentemente dos OGM e dos químicos das grandes empresas. A sua luta trava-se contra a «biopirataria», termo que usa para se referir à pretensão das empresas de patentear as sementes e, por conseguinte, de patentear a vida.

A actividade de Vandana Shiva passa por acções de formação e intervenções em congressos, sendo também consultora para as questões relacionadas com agricultura biológica junto de governos e ONG. O seu trabalho visa a preservação do conhecimento indígena, a promoção e conservação de sementes nativas e o comércio justo. Com uma firme filosofia antiglobalização, o seu compromisso com a soberania do ambiente e da alimentação assume várias formas — desde publicações (contando já com mais de vinte livros) até à criação de bancos de sementes na sua Índia natal através da Navdanya, organização que criou. Graças ao seu empenho político, Navdanya foi uma das três organizações que no ano 2000 venceram uma longa batalha no Instituto Europeu de Patentes contra a biopirataria de neem (árvore autóctone do subcontinente indiano da qual se extrai o óleo de nim) por parte do Ministério da Agricultura dos EUA e da empresa WR Grace. A esta vitória seguiram-se outras, como a contestação, em 2001, da patente da empresa americana RiceTec sobre o arroz Basmati e a revogação da patente detida pela Monsanto sobre uma variedade de arroz chamada Nap Hal.

Reconhecendo a natureza global dos problemas ambientais e a necessidade de uma atitude colaborativa para responder aos desafios actuais, tem como um dos seus maiores objectivos a criação de redes que ponham em contacto os pequenos movimentos ambientais espalhados pelo mundo — tarefa que leva a cabo através da plataforma Seed Freedom e da organização do BHOOMI Earth Festival, que se realiza anualmente.

Mas o trabalho de Shiva tem ainda outra dimensão, revelando uma forte ligação às mulheres e ao feminismo. O seu primeiro livro, Staying Alive (1988), analisa a marginalização das mulheres no que respeita à violação da natureza no Terceiro Mundo, tendo aberto caminho para um duradouro compromisso com a educação e os direitos da mulher. A este livro seguiu-se um relatório para a FAO sobre as mulheres e a agricultura, intitulado Most Farmers in India are Women. Aprofundando a relação crucial entre as mulheres e o ambiente, Shiva escreveu, em co-autoria com a socióloga alemã Maria Mies, o livro Ecofeminismo (1993). Este é um livro de referência, um dos mais importantes debates teóricos sobre o sistema de domínio e exploração tanto da natureza como das mulheres pelas forças hegemónicas do capitalismo e sociedade patriarcal.

Nesta entrevista, Vandana Shiva falou-nos das suas principais preocupações e de como as suas experiências de vida a levaram a ser activista.

SOFIA STEINVORTH  Nasceu numa família de activistas, os seus pais estiveram envolvidos no movimento da independência da Índia e um dia escreveu que o seu avô sacrificou a vida pela causa da igualdade das mulheres.

VANDANA SHIVA  Sim, sacrificou a vida pela igualdade das mulheres através da educação. Naquela altura as raparigas queriam uma escola. Estávamos nos anos 50 e como era preciso que essa necessidade fosse reconhecida, o meu avô escreveu ao governo dizendo «Por favor, autorizem-me a fazer uma escola». Iniciou um jejum para ter a certeza de que o ouviam e morreu durante o jejum. Dois dias depois, o presidente foi visitá-lo para que se fizesse a escola. Um pouco tarde… Mas isto foi logo depois da independência e toda a gente tinha essa mania — quando alguém pensava que alguma coisa tinha absolutamente de ser feita, entrava em greve de fome. Portanto, o meu avô deu a vida pela educação das raparigas. Dentro do movimento pela independência, algumas pessoas que tinham sido activas consideravam que um dia seríamos independentes. Mas se não prepararmos a sociedade para aquilo que queremos, reproduzem-se as mesmas estruturas. Por isso, o meu avô preferia as estruturas que empoderam as mulheres — as escolas para raparigas.

SS  Encara o seu percurso de activista como um legado familiar?

VS  Tornei-me activista, mas na verdade essa não foi a minha primeira escolha, foi antes um imperativo. Ao princípio queria ser engenheira física.. Originalmente, queria fazer parte da comissão indiana da energia atómica, mas a minha irmã alertou-me para os riscos da radiação e então passei a dedicar-me à física teórica. O meu doutoramento foi sobre os fundamentos da teoria quântica. O que realmente pretendia era dedicar a minha vida à ciência, mas quando vi uma floresta desaparecer nos Himalaias, encontrei o Chipko Movement e tornei-me voluntária. [O Chipko Movement foi um movimento indiano pacifista e ecológico formado por camponeses, sobretudo mulheres, nos anos 70. Rodeavam e abraçavam as árvores para impedir a sua agressão.] Sou activista através de um sentimento de dever: para com a Terra e para com a minha sociedade.

"A teoria quântica é uma ciência que nos diz que a natureza não se pode separar; a natureza não é constituída por entidades fixas como muitos físicos clássicos acreditam, é, pelo contrário, potencial, está em desenvolvimento, e por esse motivo é inconstante."

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Judy Chicago, Through the Flower [Através da flor], 1973
© Judy Chicago

 

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Ana Mendieta, 1973
© Fotografia: Nathan Keay / Museum of Contemporary Art Chicago

 

SS  Nesse tempo, quando ainda estava a estudar para se tornar física, tornou-se muito crítica em relação à ciência. De que forma considera problemática a nossa ideia actual de ciência e, na sua opinião, em que aspectos terá de mudar?

VS  «Ciência» significa fundamentalmente «conhecer». Nesse sentido, todos são cientistas na sua área: uma camponesa, uma cozinheira, uma artista, etc. Na minha área, vejo a ciência como a investigação da natureza. Aquilo a que hoje chamamos ciência começou por chamar-se filosofia natural. A teoria quântica é uma ciência que nos diz que a natureza não se pode separar; a natureza não é constituída por entidades fixas como muitos físicos clássicos acreditam, é, pelo contrário, potencial, está em desenvolvimento, e por esse motivo é inconstante. Estes são os princípios que orientaram o meu pensamento. Para mim, a minha ciência é quântica: é a ciência da unidade. O meu trabalho como activista em ecologia confirmou estes princípios de não separação, potencial e incerteza.

A mecânica clássica foi criada como parte do colonialismo, da industrialização, e como resultado da era dos combustíveis fósseis. Francis Bacon, a quem chamam o pai da ciência moderna e que era Chancellor of England, na altura em que a Companhia Britânica das Índias Orientais foi criada para colonizar a Índia, escreveu um livro intitulado O Nascimento Masculino do Tempo (1603), sobre a nova ciência que encarava os homens como super-heróis à conquista da natureza e subjugando-a. Aquilo a que hoje chamamos ciência é essa ciência patriarcal e colonizadora. Somos levados a acreditar, como acontece com todas as falsas generalizações, que é a única. Não questionei a ciência durante a minha formação, mas quando me tornei activista do Chipko, em defesa dos rios e trabalhando com mulheres camponesas, comecei a interrogar: porque é que chamam engenharia florestal à desflorestação, à extracção de madeira das florestas? Porque é que chamam ciências agrárias à utilização na agricultura de venenos oriundos da Alemanha de Hitler? Foi nessa altura que aprofundei as raízes das ciências colonizadoras e percebi que essas mesmas raízes levam à colonização da natureza e das pessoas, trazem para a ciência a doutrina da descoberta, que se baseia na ideia de que quem pertence a uma civilização superior pode exterminar as populações locais e apropriar-se das suas terras. Este foi o cavalo de batalha em 1943. Esse cavalo de batalha, inscrito no domínio do conhecimento, revela a verdadeira dimensão redutora e mecanicista da ciência. E já que Bacon definiu isto como «o nascimento masculino do tempo», vejo a ascensão do conhecimento subjugado como o renascimento dos tempos femininos.

[...]

*Tradução de Isabel Pettermann