Vista de Delft
As festas melancólicas de Havana
Carlos Manuel Álvarez

Para muitos, Havana, cujos 500 anos de fundação agora se comemoram, é um divertimento fácil, uma fuga ao tempo, uma miragem do mar, uma música que não cessa. Para o escritor e jornalista cubano Carlos Manuel Álvarez, colaborador regular de jornais como o New York Times e o El País, que vive fora e havia regressado à sua cidade para se divertir, Havana voltou a ser «uma cidade de muitas tristezas soltas». Diz ainda que «o dia em Cuba continua a ser comunista, mas a noite é cada vez mais neoliberal». Nesta sua evocação de Havana, passa uma memória luxuriante e melancólica, e corre um vento que dissipa as ondas que se desfazem no muro do Malecón.

agnes varda centre pompidou electra havana

Agnès Varda, Salut les Cubains, 1964
© Centre Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais / Georges Meguerditchian

 

Eu tinha chegado a Havana na noite anterior, num voo de muitas horas, e nesse dia saí cedo para a rua. Desci pela Avenida 26, em Vedado, atravessei a Línea e entrei no Malecón perto da fortaleza de La Chorrera. O animal felpudo da tristeza tinha caído sobre mim durante a madrugada. Não percebia porquê, nada tinha feito para me sentir assim.

Tinha voltado à minha cidade apenas para me divertir, que é a única razão pela qual costumo regressar a Cuba. No entanto, tudo estaria provavelmente relacionado com isso: para nos divertirmos, temos de procurar lugares fora do mapa dos nossos afectos, cidades com as quais não mantenhamos uma relação demasiado estreita. A moléstia e sentimentos afins, que nos atacam sem o termos propiciado, são os sintomas mais reveladores de que pertencemos a um lugar e de que, a esse lugar, há que pagar um dízimo sentimental.

A tristeza é uma fera que investe de noite e eu pensei, naquela manhã, conseguir deixá-la estendida em qualquer canto da cidade, como quem se desfaz irresponsavelmente de um animal de estimação para que outro o acolha, ou para que ninguém o acolha e o animal vagueie por aí, até que a chuva e o calor o matem de fome e fique então no ar essa espécie de cheiro a orfandade e salitre e corpo velho. Havana é um pouco isso, para quem a conhece. Uma cidade de muitas tristezas soltas.

O Malecón estava estranhamente molhado àquela hora. O mar parecia ter galgado durante a madrugada, mas estávamos em meados de Abril e o mar de Primavera nas Caraíbas é sempre calmo, um mar em repouso, uma besta adormecida que não ultrapassa os limites, como era de facto o mar que tinha então à minha frente. Naquele instante, percebi ainda menos o enredo em que a cidade me estava a envolver, oposto aos meus interesses e à minha vontade.

"Havana, uma cidade ao nível do mar, conserva proporções razoáveis para a sequência do passo humano. Ainda cabem nela o ritmo e a cadência bípedes."

agnes varda

Agnès Varda, Salut les Cubains, 1964
© Centre Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais / Georges Meguerditchian

 

Havia vários pormenores que, embora parecendo insignificantes, apontavam para a desordem. De repente, podia bem ser eu aquele homem que regressa a casa após uma viagem de fim‑de‑semana e imediatamente detecta que alguém lhe invadiu a propriedade durante a sua ausência. Alguém que não roubou nada, não partiu um único vidro, não retirou nenhum quadro nem arranhou qualquer parede. Não havia na casa nada de anormal, mas sentia-se o bafejo deixado pela presença de alguém, e algumas cadeiras ou adornos tinham sido ligeiramente mudados de lugar.

Pus-me a caminhar para encontrar uma brecha na neblina. Em tudo há uma fenda e é assim que a luz entra, diz Cohen. Não era algo que nunca tivesse feito quando vivia na cidade. Talvez porque o calor duplica as distâncias e, sob o céu de Havana, um quilómetro parecem dois. Como toda a gente, eu costumava passar muito tempo nas paragens de autocarros. Depois, já não tão jovem e com dez pesos no bolso, lutava até à exaustão para apanhar um dos carros americanos que faziam de táxis colectivos. Dura batalha essa.

Havana, uma cidade ao nível do mar, conserva proporções razoáveis para a sequência do passo humano. Ainda cabem nela o ritmo e a cadência bípedes. No entanto, nunca aproveitei tal vantagem, e nunca ninguém me disse — porque ninguém sabia — que devia fazê-lo. Caminhar, desse por onde desse. Cansados e com fome, mas caminhar.

Passávamos horas à espera de que algo nos salvasse, um autocarro ou um cataclismo, tanto fazia. Deixávamo-nos levar pela sonolência das cinco da tarde debaixo de uma casita de cimento em qualquer canto da cidade, quer fosse no Cerro ou no Marianao, e ruminávamos a nossa frustração sem nada fazer, deixando que a pele nos enrudecesse e amargasse o coração de carne da inocência.

"Em Cuba, há um momento no qual todos os lugares voltam ao mesmo lugar, em que não se avança nem se retrocede, mas em que nos movemos na estagnação."

Queríamos que alguém nos levasse a alguma parte e pensávamos ir de um lado para outro, mas, na verdade, depois de tanta espera, apenas podíamos chegar a um sítio de onde já tínhamos vindo. A casa, a escola e o trabalho eram a mesma coisa. Em Cuba, há um momento no qual todos os lugares voltam ao mesmo lugar, em que não se avança nem se retrocede, mas em que nos movemos na estagnação. Se fores a pé, demoras mais, mas envelheces menos. Era preciso ter em conta a raiva que invadia os habitantes de Havana quando nenhum autocarro passava, ou quando os que passavam iam cheios. Devíamo-nos ter montado nessa mesma raiva e conduzi-la nós mesmos, transportando-nos sobre a sua garupa a todos os lugares. A espera sem propósito é um ácido que derrete o plástico da juventude.

Avancei então pelo Malecón, pisando cuidadosamente o musgo húmido e escorregadio do muro. Àquela hora da manhã, o sol tinha um efeito fantasmagórico sobre as coisas, que pareciam prematuras. Encontravam-se desfocadas, como se tivessem sido arrancadas à força do ninho da noite.

Tinha saído de Cuba há quase quatro anos, levado pela cólera nacional do êxodo, e Havana encolhia com cada um dos meus regressos. Parecia-me cada vez mais uma aldeia, tão dócil, tão nada. Tinha agora um apartamento na Cidade do México, a mãe das desproporções, e as perspectivas tinham-se alterado na minha cabeça. Os sentidos, elásticos, eram mais permissivos, e a minha ideia de proximidade incluía agora infinitamente mais quilómetros. A terra continental ensina--nos que, por maior que seja uma ilha, tudo nela é perto entre si.

Na primeira vez que cheguei a Havana, contudo, também me pus a caminhar. Mas caminhei porque me parecia enorme, de uma magnitude tal que só a capital das tuas ilusões pode ter. Era aquele sítio que durante anos se cozinha a lume brando com o pavio da imaginação, onde a mente se escapa à espera da chegada do corpo, para finalmente juntos explodirem.

Tinha acabado de ingressar na universidade, após uma vida confinado à província, e caminhava pelas ruas principais, guiado pelo tumulto. O meu medo não me permitia entrar no sistema circulatório da cidade. Sentia que não conseguia pertencer nem entender os códigos internos, os sinais de trânsito, as estradas e os atalhos do costume. Por isso, caminhava.

Aquela Havana, a Havana imensa, era fruto da sobrevivência e da escassez.E esta de agora, a aldeia, também o é. Eu estava de visita para me enfiar na sua noite, repleta de grandes e frívolas festas. Festas muito sedutoras e convencidas de si mesmas. O dia em Cuba continua a ser comunista. É linear, cansativo, faz suar, consome, e até as pessoas com dinheiro têm dificuldade em adaptar-se ao ritmo que o dia impõe. Mas a noite, embora também nos consuma e faça suar, é cada vez mais neoliberal.

Pode dizer-se que o dia é o passado e que, de certa forma, a noite antevê o futuro, ou o afã de encontrar uma saída sem demasiado esforço, um buraco através do qual as pessoas se escapam sem fugir. Entre esses dois tempos impossíveis, move-se um país em que nada parece acontecer em tempo real. Todas as notícias, por exemplo, da fome ou da escassez de produtos nas lojas cubanas, já circularam anteriormente.

A noite está infestada de estabelecimentos privados de média dimensão, agora autorizados, que se construíram com base numa ideologia conservadora sinais do capitalismo de Estado que como uma tímida vanguarda surgem sobre a paisagem do estalinismo nacional e denunciam a cor da única pele de relevo que poderia existir debaixo desses escombros.

São os espaços que mais eficazmente materializam num êxito comprovado a ideia de que a política é uma coisa aborrecida da qual se encarregam o Castrismo e o exílio de Miami, algo de que já não precisamos para viver bem. Há clubes, centros culturais recreativos, galerias de arte e armazéns abandonados convertidos em espaços para cocktails ou exposições de natureza diversa.

A publicidade destas empresas vende uma série de coisas desejadas e aparentemente ao alcance de todos, sem passar pelo osso do sistema nem das suas relações sociais. Algo mais ou menos próximo daquilo a que Mark Fisher designou como «as protuberâncias semióticas [que] parasitam o que outrora foi o espaço público».

agnes varda

Agnès Varda, Salut les Cubains, 1964
© Centre Pompidou, MNAM-CCI, Dist. RMN-Grand Palais / Georges Meguerditchian

 

"O dia em Cuba continua a ser comunista. É linear, cansativo, faz-te suar, consome-te, e até as pessoas com dinheiro têm dificuldade em adaptar-se ao ritmo que o dia impõe. Mas a noite, embora também nos consuma e faça suar, é cada vez mais neoliberal."

A luxúria possui um ponto clandestino e nestas festas de Havana há algo intrinsecamente ilegal, ou haveria talvez que dizer imoral, se é que podemos falar das festas nestes termos. Essa imoralidade ou ilegalidade é explicada na medida em que se trata de celebrações embaladas a vácuo, como um enxerto cujo relato desfigura o rosto da realidade. Não o maquilha, como costumam fazer as festas, mas apaga-o directamente.

É por isso que eu gosto delas. Pela evasão, porque parecem não dever nada a ninguém.

A tristeza daquela manhã do meu último regresso devia ser, então, uma tristeza muito política. O azul do mar de Havana era irreal, feria os olhos, e eu senti sob o peso do dia, enquanto avançava pelo Malecón, que a tristeza diminuía, que se tornava consciência. Mas a cor do mar continuava a ser um grito e de repente tudo adquiriu uma harmonia secreta, palavra, cor e ideia. Porque a tristeza, quando se reduz, converte-se em melancolia. Recordei também uns versos de Jorge Eduardo Eielson onde a melancolia é descrita como «essa antiga doença violeta».

Em frente, no cruzamento das ruas F e 3.ª, estava a residência de estudantes, um prédio de 24 andares onde vivi durante os cinco anos da universidade, entre 2008 e 2013. Soube imediatamente que os papéis se tinham invertido. Tinha dinheiro no bolso e já não era aquele que olhava a partir do prédio, mas sim o objecto observado.

De qualquer forma, guardo uma imagem marcante daqueles anos. Nessa época, as festas ocorriam até pouco antes de uma hora que nunca era a mesma e que nunca sabíamos dizer qual era. Havia álcool belicoso e um sentido colectivo da diversão e sexo ocasional e música e mais coisas precárias que tinham obrigatoriamente de nos acontecer, se é que queríamos realmente ser merecedores da dádiva recorrente da cidade. Uma Havana, naquele momento, muito da geografia e do corpo e da pele.

"Os bacanais eram austeros, organizados, o que talvez explique o porquê de nós, os estudantes da residência, sabermos que as nossas festas nocturnas, improvisadas, não eram as festas amnésicas que se supõe."

Os bacanais eram austeros, organizados e levados a cabo com pouco, o que talvez explique o porquê de nós, os estudantes da residência, sabermos que as nossas festas nocturnas, improvisadas, com bebidas destiladas em alambiques artesanais, não eram as festas amnésicas que se supõe e que pelo bem da nossa saúde devíamos ter.

Ao fim e ao cabo, vamos a uma festa não só para esquecer algum acontecimento prévio ou para relaxar de algo que esteja por acontecer, mas também para não estabelecer laços demasiado fortes com o tempo real da celebração. Basicamente, vamos a uma festa para não a recordar. No entanto, nas festas da residência, costumava pairar uma presença bastante desagradável: o reconhecimento, já durante o evento, do quisto da memória.

Nós, estudantes, parecíamos entender perfeitamente que, mais do que festas, se tratava de rituais, e numa dessas ocasiões acordei na varanda do meu apartamento. As ondas desfaziam-se no muro do Malecón e o vento dissipava-as de seguida. Os relógios marcavam a hora que eu pensava que deviam marcar e na televisão iniciavam os programas que deviam iniciar. Não havia qualquer embarcação na linha do horizonte.

A luz cobarde da manhã começou a piscar, como as luzes de uma discoteca gigante ou como uma lâmpada com mau contacto. Vi dois ou três pontos insignificantes. Não estrelas, mas germes, buracos ou pequenos rasgos, como se o tecido do céu tivesse passado tempo sem ser usado e, uma vez tirado do gavetão, se tivessem descoberto os estragos.

Eram esses os dias breves e predilectos de Dezembro e Janeiro, sempre o princípio do Inverno em Havana. Uma estação que nunca passava desse ponto, nunca acabava de desembarcar. Tínhamos de permanecer muito atentos para assistir a um espectáculo assim. O mar cinzento, encrespado, cuja superfície se movia como a lona que escondia debaixo e que resistia com dificuldade ao impulso de mil corpos inchados pela água, desesperados por se lançarem como nunca sobre o território da sua antiga cidade.

Isso foi o que aprendi naquela época e que agora parecia disposto a esquecer. Esse desamparo e esse amor. E talvez apenas isso seja justo, necessário e estranhamente belo voltar a dizer.

*Tradução de Telmo Rodrigues