François Hartog é um dos historiadores franceses vivos mais influentes e prestigiados no seu país e internacionalmente. Nasceu em 1946 e é professor na École des hautes études en sciences sociales, onde é responsável pela cadeira de historiografia antiga e moderna. A sua obra ganhou uma enorme difusão (mas não em Portugal, onde não está traduzido) que ultrapassa até as fronteiras do campo disciplinar da História. A ele se devem dois conceitos que, por serem tão operatórios, quase se autonomizaram do seu autor: regime de historicidade e presentismo. Por regime de historicidade, entende François Hartog o modo como cada época articula as três categorias temporais — o passado, o presente e o futuro —, privilegiando uma ou outra, colocando uma ou outra no centro das suas representações e como princípio orientador. Analisando as épocas históricas em função do modo como estas se relacionam com essas categorias, caracterizou a nossa época como sendo marcada pelo presentismo, isto é, pelo triunfo da categoria do presente enquanto referência que dita a nossa relação com o tempo da história. Como é fácil perceber, François Hartog, para além de historiador, elabora teorias da história, segue os caminhos de uma epistemologia da história e trabalha com categorias meta-históricas. É por isso que é importante e justificada a sua intervenção, através de uma entrevista, neste dossier sobre memória e esquecimento: porque a memória e a sua relação com a história são aspectos fundamentais da sua reflexão teórica sobre o regime de historicidade. No seu livro de 2003, intitulado precisamente Régimes d’historicité, podemos ler:
Professor de historiografia grega e moderna na École des hautes études en sciences sociales, em Paris, François Hartog é um historiador que desenvolveu ao mesmo tempo uma vasta e importante reflexão teórica sobre questões fundamentais da historiografia e sobre as diferentes modalidades da experiência do tempo que definem cada época. O pensamento da História como disciplina e o próprio conceito de História são importantes contribuições de Hartog que se estendem a todo o campo das ciências humanas.
Memória tornou-se, em todo o caso, o termo mais englobante: uma categoria meta-histórica, por vezes teológica. Pretendeu-se fazer memória de tudo e, no duelo entre a memória e a história, deu-se rapidamente vantagem à primeira, tendo como suporte uma personagem que se tornou central no nosso espaço público: a testemunha. Interrogámo-nos sobre o esquecimento, fez-se valer e invocou-se o «dever de memória», e começou-se também, por vezes, a estigmatizar os abusos da memória e do património.
Evidentemente, as reflexões de Hartog sobre as relações entre memória e história inscrevem-se numa problemática que ganhou grande importância com a publicação, iniciada em 1984, de uma obra em vários volumes organizada por Pierre Nora, Les Lieux de mémoire. Sobre este tema, Hartog mantém um diálogo fecundo com Nora, como fica bem claro numa passagem desta entrevista. Mas, para ele, a memória é fundamentalmente um instrumento presentista.
ANTÓNIO GUERREIRO A dicotomia, ou a dualidade, memória-história ganhou uma enorme presença a partir do fim dos anos 70 do século passado. Como surgiu essa obsessão pela memória e como é que a historiografia se confrontou com ela?
FRANÇOIS HARTOG Há, no fim dos anos 60, prolongando-se pelos anos 70 e depois, uma vaga memorial, um surgimento da memória, como o mostram várias obras. Do lado dos historiadores houve esse grande projecto editorial, iniciado em 1984 e dirigido por Pierre Nora, que foi Les Lieux de mémoire. Mas do lado do cinema temos evidentemente o filme de Claude Lanzmann, Shoah, também de 1984. Poderíamos ainda mencionar outros sinais: um livro de 1985, Les Assassins de la mémoire, de um historiador já falecido, Pierre Vidal-Naquet. Esse livro é uma denúncia dos negacionistas, aqueles que tentaram negar a existência das câmaras de gás. Estas três obras delimitam de certa maneira o campo desse surgimento da memória, na Europa.
AG A questão da Shoah foi então fundamental para esse surgimento?
FH Foi de facto fundamental. Depois a questão da memória compreendeu outras matérias e alargou-se a outras partes do mundo. Mas o ponto de partida, na Europa, particularmente em França, e também na Alemanha, foi a questão do extermínio dos judeus. E isso coincidiu com o momento em que a História, a disciplina histórica, se interroga. Ela conheceu durante muitos anos, com nomes como Braudel, um domínio da história económica e social, a história da longa duração, que parecia conquistar incessantemente novos territórios. Mas, no fim dos anos 60 e início dos anos 70, o tempo que orientava essa História era um tempo aberto para o futuro, porque a História é fundamentalmente futurista. Diz-se que a História é a ciência do passado, e foi isso que os historiadores quiseram dizer quando pretenderam fazer ciência, mas na realidade o trabalho do historiador é sempre aberto para o futuro. Essa é a época em que no Ocidente se começam a levantar dúvidas sobre esse futuro que parecia aberto e em direcção ao qual era necessário avançar o mais rapidamente possível. Na Europa em ruínas, no pós-guerra, impôs-se o tema da reconstrução, da modernização, do progresso, do desenvolvimento da sociedade de consumo, e também a oposição entre a Europa Ocidental e a Europa de Leste. E tudo isso era voltado para o futuro.
AG Situa, portanto, o fim daquilo a que chama o «regime moderno de historicidade» no final dos anos 60, princípio dos anos 70.
FH Sim, é o momento em que esse regime de historicidade começa a ser posto em causa. Mas é preciso perceber que esse é o momento de uma tomada de consciência. Evidentemente, esse questionamento do regime moderno de historicidade, do tempo dominado pela ideia de progresso, coloca-se no final da Segunda Guerra Mundial. Depois de 1945, depois de Auschwitz, é difícil acreditar no progresso da humanidade. E 1945 é também o ano da bomba atómica, mas nessa altura não se compreende Hiroshima como um acontecimento que põe em causa a técnica. Pelo contrário, apesar de entendido como muito perigoso, é também visto como um grande progresso tecnológico. Só nos anos 70 é que aparece a contestação do nuclear, só então é que o que se passou durante a guerra, particularmente o extermínio dos judeus, se torna bem presente e passa a ocupar um lugar cada vez maior, devido à mudança de geração. Os filhos daqueles que tinham vivido essa experiência, a segunda geração, queriam saber o que se tinha passado. E, muitas vezes, não lhes tinha sido dito praticamente nada ou nem havia ninguém para lhes dizer. É esse conjunto de factores que conduz à crescente importância da memória, a um retomar da História através da memória. E o empreendimento da memória é precisamente esse. Não se trata de dizer que só existe a memória, mas de tentar interrogar a História a partir de uma reflexão sobre a memória.
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