I
Edmund de Waal é um artista contemporâneo, ceramista e escritor. O seu livro A Lebre de Olhos de Âmbar foi traduzido em muitas línguas e afirmou-se como um grande sucesso literário e editorial. Com uma nova exposição, psalm, inaugurada este Verão em Veneza por ocasião da Bienal de Arte de 2019, Edmund de Waal concebeu um portfólio, para esta edição da Electra, no qual as fotografias da exposição se inscrevem num diário poético que nos dá conta de uma viagem interior e exterior. Este texto é atravessado pelos temas e pelos tópicos deste artista-escritor: a memória, os livros, os objectos, os sentidos e os lugares. Vemos o que ouvimos e ouvimos o que vemos, porque as palavras e as imagens são as duas faces da moeda com que compramos o mundo. «Somos sempre de um lugar outro», lembra de Waal. Por isso, somos sempre viajantes e é a nossa viagem que desenha o espaço e o tempo com os quais criamos o nosso mundo.
Nem tudo deve estar à vista.
Sente-se, sabe-se: o livro que vai enfiado no bolso, em meio da leitura, murmura-se ao leitor.
No topo da escada, antes da curva para o patamar, ergo os olhos e reparo numa caixinha branca lá no alto. Não posso ver o que nela se contém. A brancura instala-se na memória. Ressoa.
II
Marco Polo fala da porcelana. Tinha visto fazer-se porcelana na cidade de Tin-gui. Ali «se fazem taças de porcelana, grandes e pequenas, de uma beleza incomparável. Em nenhum outro lugar se fazem à parte esta cidade, e daqui são exportadas para o mundo inteiro. Há tantas na cidade e tão baratas que por meio-cruzado em prata veneziana se poderiam comprar três e de uma tal formosura que não se pode imaginar.»
«E nada mais direi do que já disse.»
De regresso a Veneza traz um pequeno vaso de cor verde- -acinzentada, feito desta argila dura, branca e translúcida que nunca se vira antes. E o vaso está aqui, na basílica, no recôndito Tesoro di San Marco.
É um espaço estreito, com alta abóbada. Há cristal-de-rocha e calcedónia, ágatas, um pote egípcio de pórfiro, uma taça persa de turquesa montada em ouro; todos os materiais que abraçam a luz. Cálices. Um relicário da Vera Cruz recamado de pedras preciosas colocadas com propósito, como beijos de criança. Isto é Bizâncio, este tesouro, um Cristo que ascende, que nos conquista a cada objecto de remotas paragens transfigurado pelo génio veneziano.
E o meu vaso está aqui, no fundo de um armário, entre um par de turíbulos e um ícone de Cristo em mosaico. É uma promessa branca. Tem uns doze centímetros de altura, ao que me parece, muito menos que um palmo, um friso de folhagem, quatro pequenos anéis abaixo do bordo para fixar uma tampa, cinco concavidades para os cinco dedos. Um objecto para a memória do gesto. Não posso tê-lo na mão. A argila parece acinzentada e áspera, um pouco esboroada na aresta de um corte brusco. Veio de muito, muito longe.
Ficamos dez minutos a examinar o vaso até que o homem das chaves começa a bater o pé. Cerra-se o Tesouro. A basílica está deserta.
Nada mais tenho do que a memória de um clarão de brancura.
III
Uma vez ofereceram-me um conto de Rilke: a história do velho que, no gueto de Veneza, sempre ansiava por mudar-se para um andar mais alto. «Habitavam por fim em tais alturas que, saindo da estreiteza do aposento para o telhado raso, já as cabeças alcançavam os confins de outra terra, de cujo preceito o velho falava em palavras obscuras, como se arrebatado no êxtase de um salmo.»
Quando acabei de ler percebi que precisava de aposentos num andar alto.
[...]
*Tradução de Maria Jorge de Freitas
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