Actualmente, o que faz falta não é certamente uma crítica do marxismo,
mas uma teoria moderna do dinheiro que fosse tão boa como a de Marx
e a prolongasse.
Gilles Deleuze
O sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato, que muito tem escrito sobre o modo como o capitalismo, no nosso tempo, consiste em produzir «o homem endividado», desenvolve aqui a tese de que a economia se tornou pela primeira vez integralmente política a partir do momento em que nasceu a moeda-dívida, criada ex nihilo pelos bancos, depois de Richard Nixon, em 1971, ter declarado que o dólar deixaria de ser convertível em ouro.
Actualmente, o que faz falta não é certamente uma crítica do marxismo,
mas uma teoria moderna do dinheiro que fosse tão boa como a de Marx
e a prolongasse.
Gilles Deleuze
Marx, no primeiro livro d'O Capital, faz nascer a moeda da troca directa. Do processo de troca de mercadorias surge uma mercadoria particular, que desempenha o papel de moeda. A origem da moeda é, pois, comercial, mercantil. A moeda serve para facilitar o comércio, a medida e o entesouramento. Já os Grundrisse começam de modo diferente, pois a moeda é directamente capital. As suas funções mercantis são subordinadas às funções capitalistas. A origem comercial já não está no centro da argumentação: a moeda serve directamente para comandar e explorar a força de trabalho; é investimento, capacidade de apropriação do trabalho, e tem, por isso, uma função directamente capitalista e política.
No início do neoliberalismo, a decisão que assinala o seu nascimento tem que ver com a moeda e suscita uma série de problemas que é difícil abordar apenas com as categorias marxianas. Em 1971, os americanos declaram a inconvertibilidade do dólar em ouro. A moeda é desligada da sua base «económica», do seu fundamento «comercial», mas também do seu fundamento no «trabalho», e assume uma função directamente política.
Dois filósofos franceses, Michel Foucault e Gilles Deleuze (com Guattari), procedem, em tempo real, a uma análise desta nova moeda, que pode ajudar-nos a compreender a sua natureza e o seu funcionamento. Foucault, alguns meses antes da decisão de Nixon, e Deleuze e Guattari, no ano seguinte, fornecem uma interpretação da moeda que desloca os termos do debate marxiano. O primeiro analisa o nascimento da primeira economia monetária, na Grécia antiga, e conclui que a moeda tem origem na dívida, na guerra e no Estado, ao passo que os segundos revisitam a teoria marxiana da moeda e declaram que ela é «dívida», isto é, que não deriva do «trabalho», mas de uma nova relação política entre devedor e credor. No centro da economia estão a banca e a circulação de dinheiro. A moeda-dívida, ao contrário da moeda marxiana, é uma criação política ex nihilo operada pelos bancos, mas que supõe, igualmente — tal como em Foucault —, um fluxo de poder, um fluxo de guerra para poder funcionar.
Antes da produção, existe sempre (e ainda hoje) uma «acumulação primitiva», ou seja, uma «apropriação» violenta, uma expropriação extra-económica que, ao fundar uma nova distribuição dos poderes, serve de base a um novo «modo de produção». No seu trabalho sobre a Grécia antiga, Foucault descreve perfeitamente este encadeamento entre vitória político-militar, distribuição dos poderes que dela resulta e funcionamento de uma nova produção e de uma nova moeda.
Como de costume, o trabalho «histórico» de Foucault é genealógico, mergulha no passado para melhor compreender a actualidade. A primeira aula no Collège de France fornece, assim, uma primeira visão da natureza da moeda que emerge da inconvertibilidade do dólar em ouro.
Foucault começa por estudar o estabelecimento da primeira monetarização da economia como resultado da ligação entre guerra, dívida e criação monetária, tomando o caso da cidade de Corinto, onde o polemarco Cípselo foi conduzido ao poder por um exército hoplita (introdutor de uma nova forma de guerra e organização dos soldados) constituído, na sua maioria, por camponeses pobres e fortemente endividados. Graças ao combate, eles conseguiram construir uma força política com a qual Cípselo é obrigado a confrontar-se. Essa força ameaça provocar uma guerra civil, pois os camponeses-soldados «endividados» passam a estar organizados colectivamente e acalentam pretensões económicas e políticas.
Aquilo que interessa a Foucault é sobretudo o modo como Cípselo, uma vez conquistada a vitória, pretende manter o poder, controlando os soldados-camponeses endividados e subordinando-os às suas políticas económicas. Para tal, introduz o uso da moeda num dispositivo (político) de integração (económica) do poder militar, cuja chave é «limitar as reivindicações sociais […] que a constituição dos exércitos hoplitas torna mais perigosas», pois as crises agrárias agravam o endividamento dos camponeses. Sabendo que é preciso manter o regime de propriedade e a detenção do poder por parte da classe dominante, que faz o tirano? Procede a uma redistribuição apenas parcial das terras pelos camponeses-soldados (sem anular as suas dívidas) e impõe aos «ricos» o pagamento de um décimo dos seus rendimentos. Uma parte é directamente redistribuída pelos «pobres» fortemente endividados, outra é usada para financiar as «grandes obras» e os adiantamentos aos artesãos. A constituição deste sistema complexo não poderia ocorrer «na natureza». O ciclo económico que faz o dinheiro distribuído aos «pobres» fluir para os bolsos dos «ricos» (através do trabalho «assalariado» dos camponeses-soldados endividados), que poderão, assim, liquidar o imposto (em dinheiro), assegura — segundo a demonstração de Édouard Will em que Foucault se baseia — «uma circulação ou rotação da moeda e uma equivalência com os bens e serviços». Deste modo, a moeda afirma-se como medida e como norma das «trocas» e das «equivalências», que implicam, devido ao alargamento e à intensificação do regime de dívidas, uma primeira instituição política do Estado na ordem da cidade: imposto, extracção, acumulação, fixação de valor, deslocação da actividade comercial da agricultura para o comércio e desenvolvimento da colonização engendram a condição formal de um mercado e levam ao controlo imediato desse espaço de mercado por parte do aparelho do Estado.
Criada ex nihilo, ou quase, a moeda revela-se dependente de uma forma nova e «extraordinária» de poder político, tirano ou legislador, que intervém «no regime da propriedade, no jogo das dívidas e das liquidações», e garante a institucionalização territorial (a retro-territorialização) da máquina de guerra hoplita que conduzira Cípselo ao poder. Ela identifica-se com o exercício do poder, pois «não é por se deter a moeda que se adquire o exercício do poder, mas antes porque certas pessoas tomaram o poder que a moeda foi institucionalizada».
"Em 1971, os americanos declaram a inconvertibilidade do dólar em ouro. A moeda é desligada da sua base «económica», do seu fundamento «comercial», mas também do seu fundamento no «trabalho», e assume uma função directamente política."
A moeda não é, portanto, um simples «capital» económico, como poderia sugerir a sua origem comercial. Entre as mãos do «Estado» que institui o seu uso — e que ela, por seu turno, ajuda a constituir —, a moeda não tem tanto uma função de redistribuição quanto de reprodução alargada das posições de poder na sociedade. De tal modo que a moeda é a continuação da guerra civil por outros meios, mais políticos, que inscrevem toda a gente no jogo do poder e da «verdade». Por um lado, a moeda produz e reproduz, deslocando-as, as divisões (aristocratas, guerreiros, artesãos, «assalariados») que alimentam a possibilidade sempre presente da guerra civil como uma realidade social com a qual a política tem de aprender a contar. Por outro lado, é efectivamente por meio de um «jogo de regulações novas», que visam pôr fim à luta desregrada dos pobres e dos ricos, que a instituição da moeda assegura «a manutenção de uma dominação de classe» cuja condição é o deslocamento da «separação social» e da guerra civil para um outro terreno.
A economia torna-se pela primeira vez política com o poder que captura a guerra na moeda: uma captura do poder e uma captura da guerra, cuja finalidade crítica para Foucault, a respeito do economismo marxista que reduzia as funções do Estado, do poder e da guerra à determinação última da «infra-estrutura económica», se vislumbra de imediato. Mas vislumbra-se, sobretudo, a finalidade crítica a respeito da declaração de inconvertibilidade do dólar em ouro, verdadeira pedra angular de todas as políticas neoliberais.
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*Tradução de Bernardo Ferro
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