Registo
Uma bienal que acabou sem acabar
Cristiana Tejo

A curadora e socióloga brasileira Cristiana Tejo evoca e analisa a I Bienal de Arte Latino-Americana de São Paulo, realizada em 1978. Com apenas uma edição, este acontecimento, até pelas controvérsias que gerou, teve uma enorme importância artística, cultural, social e política. Alguns dos seus temas, interrogações e interpelações permanecem actuais e produtivas.

Inicio este texto em 17 de dezembro, exato dia em que completa 40 anos que se encerrou a primeira (e única) Bienal Latino-Americana de São Paulo. Ela terminava com muitas críticas, mas havia a intenção de continuidade em 1980. Tratava-se da última ideia que Francisco Matarazzo Sobrinho, o fundador da Bienal de Arte de São Paulo e do Museu de Arte Moderna de São Paulo [MASP], teve para reavivar seu mais ambicioso empreendimento, antes de falecer em 1977. Após quase uma década de boicote internacional e de artistas nacionais importantes durante o período mais recrudescido da ditadura civil-militar brasileira, o certame buscava novas formas de voltar a ser relevante e de reinventar-se. Bienais nacionais passaram a acontecer nos anos pares e a bienal internacional, nos ímpares, desde 1976, mas desde o início da década que o meio artístico brasileiro nutria o interesse em conectar-se mais vivamente com o restante do continente. Em 1951, a Bienal tinha nascido com os olhos voltados para os grandes centros hegemônicos e desejava atualizar o gosto local com o que havia de mais avançado e internacional em termos estéticos, mas em 1978 o contexto político-social-econômico do país era muito distinto, assim como a cena cultural.

As ditaduras financiadas América Latina afora pelos EUA, o pensamento terceiro-mundista e as guerras coloniais na África traziam uma nova conscientização a respeito das tramas de sucessivas colonialidades que interligavam as nações do continente. Apesar dos inúmeros pontos de convergência em vários aspectos, a região é muito heterogênea e os trânsitos muito marcados pelas línguas e historicidade coloniais, o que sempre contribuiu para o isolamento do Brasil. Nunca houve políticas de investimento no intercâmbio entre os países latino-americanos e a situação política do período não colaborava absolutamente com qualquer coisa que propusesse integração. No entanto, artistas e críticos de arte procuravam formas de aproximação e de trocas como uma maneira de lutar contra o imperialismo norte-americano e descolonizar a história da arte local. A virada de interesse de três críticos de arte no início da década de 70, cujos textos circularam por Portugal graças à revista Colóquio Artes, exemplificam este movimento: Aracy Amaral, Frederico Morais e Mário Pedrosa.

"Numa entrevista concedida ao assumir a direção do MASP, em 1960, Mário Pedrosa já dizia que o modelo bienal era anacrônico e que deveria ser um espaço de intercâmbio entre os povos latino-americanos."

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Desenhos de Poraco, da série Ñoamu
Colecção Claudia Andujar, 1976
Cortesia da artista e da Galeria Vermelho

 

Aracy Amaral (1930) formou-se no ambiente vivaz da São Paulo dos anos 50, que sediava a Bienal, o MASP, companhias de teatro e estúdio de cinema. Chegou a atuar como monitora na I Bienal de São Paulo e cobriu as demais edições pela imprensa. Nos anos 60, trabalha como curadora assistente no Museu de Arte Contemporânea da USP [Universidade de São Paulo] e inicia sua longa pesquisa sobre Tarsila do Amaral e a Semana de Arte Moderna de São Paulo como tema de mestrado e doutorado. Na década de 70, volta-se para uma investigação sobre a hispanidade na arquitetura em São Paulo pela qual percorre, entre 1973 e 1977, Bolívia, Peru, Argentina, Guatemala, México, Colômbia e Equador, além de Portugal. Aliás, discutir a América Latina também deu-se de várias formas, desde como consultora e pensadora até como representante do Brasil na reunião da Unesco–ICOM, em 1975, para o preparo da exposição América Latina Através de Suas Artes, no México. Além disso, atuou no Simpósio sobre Arte e Literatura na América Latina, na Universidade do Texas, passando pela implantação da disciplina Introdução à Arte na América Latina na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (em 1976) e finalizando em ações de integração de críticos e curadores da região, como em sua participação na criação da União de Museus Latino-Americanos e do Caribe (UMLAC), em 1978, e no seu apoio para a continuação da Bienal Latino-Americana de São Paulo, em 1980.

Já Frederico Morais (1936) notabilizou-se como o crítico da arte de guerrilha, ou seja, da geração que emergiu durante a Ditadura Militar e que trazia novas formulações e atitudes políticas para seus trabalhos, como Cildo Meireles e Artur Barrio, tanto em Belo Horizonte (sua cidade natal) quanto no Rio de Janeiro, onde mantém-se radicado desde meados dos anos 60. Seus projetos curatoriais a partir de 1968 envolviam experimentação artística fora do museu e a participação ativa da sociedade, a exemplo de Arte no Aterro (Rio de Janeiro, 1968), Do Corpo à Terra (Belo Horizonte, 1970) e Domingos da Criação (Rio de Janeiro, 1971). Nos seus primeiros anos como crítico de arte (a partir de 1966) concentrou-se na conceituação da nova vanguarda brasileira e na sua promoção por meio de textos e defesas acaloradas em júris de salões. A questão da arte na América Latina começa a ser adensada em seu pensamento a partir de 1975 quando o crítico passa a circular pelo continente participando de comissões, simpósios, cursos sobre arte brasileira e publicações, o que lhe deu a oportunidade de conhecer e manter contato frequente com especialistas, artistas e instituições do México, Guatemala, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. Em 1979, lança Artes Plásticas na América Latina: Do trânsito ao transitório, um livro que arregimenta seus escritos sobre a produção artística e questões teóricas sobre a região publicados em revistas especializadas latino-americanas, além de textos que foram elaborados como cadernos de viagens de seus deslocamentos em quase quatro anos. O novo interesse afinava-se com as discussões presentes no país ao mesmo tempo em que a geração de artistas defendidos por Morais já estava estabelecida.

Mário Pedrosa (1900–1981), considerado um dos maiores críticos de arte do Brasil e a grande inspiração para os então jovens críticos Amaral e Morais, manteve por décadas seu entusiasmo com a arte de caráter internacional, mesmo reconhecendo a importância da arte de todos os períodos históricos da América Latina, a exemplo da VI Bienal de São Paulo de 1961, que sob seu comando contava uma história da arte não hegemônica nem eurocêntrica, pois incluía a arte feita pelos indígenas paraguaios das missões jesuíticas e a arte pré-colombiana do Peru, além da caligrafia sino-japonesa do século VIII e a arte aborígene australiana. Numa das entrevistas concedidas ao assumir a direção do MASP, em 1960, Pedrosa já dizia que o modelo bienal era anacrônico e que sua nova vocação deveria ser como espaço de intercâmbio entre os povos latino-americanos.

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Bibliografia

ARACY AMARAL, arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer (1961–1981), São Paulo: Nobel, 1983. Catálogo I Bienal Latino-Americana de São Paulo.

CRISTIANA TEJO, A Gênese do Campo da Curadoria de Arte no Brasil: Aracy Amaral, Frederico Morais e Walter Zanini. Tese defendida em agosto de 2017, no Programa de Pós-graduação de Sociologia da UFPE.

FRANCISCO ALAMBERT E POLYANA CANHÊTE, Bienais de São Paulo: da era do Museu à era dos curadores, São Paulo: Boitempo, 2004.

FREDERICO MORAIS, Artes Plásticas na América Latina: do transe ao transitório, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1979. otília arantes (org.), Política das Artes/Mário Pedrosa, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.