Assunto
Juventude, a eterna e a efémera
António Guerreiro

A juventude como categoria sociológica é uma invenção do século XX. A sua significação política foi, nalguns momentos (por exemplo, no Maio de 68), de enorme importância. Extinta essa significação política, qual é hoje o significado social e político da juventude? A resposta deste texto de abertura é a de que a juventude foi absorvida pelos mecanismos biopolíticos que governam os corpos e as suas performances.

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Georgia O’Keeffe, Black and Purple Petunias, 1925
© Fotografia: Alexandre Ramos

O dossier que apresentamos neste quinto número da Electra é sobre os jovens e a juventude. O ponto de partida, muito embora os artigos aqui incluídos irradiem em diferentes direcções, é que assistimos no nosso tempo ao fim da juventude como categoria social autónoma. Assim definida, é uma invenção que durou pouco e acaba de maneira estranha: por expansão excessiva do seu território e por usurpação do seu estatuto. De facto, a juventude já não é uma transição da infância para a idade adulta, na medida em que se tornou uma condição quase perene. Perdeu grande parte das características que a vinculavam às etapas biológicas e psíquicas do homem, para se tornar um fenómeno predominantemente cultural. O mundo encheu-se de «jovens adultos». A juventude é hoje ao mesmo tempo duas coisas diferentes: por um lado, é um ideal que se materializa num universo de representações, fantasmagorias e códigos estéticos e sociais que se universalizaram e ultrapassam largamente fronteiras etárias; por outro lado, é uma condição prolongada e nada temporária, numa época em que a conquista da autonomia, através do ingresso no mundo do trabalho e da constituição de uma nova família, é cada vez mais tardia, no mundo ocidental.

A condição mais comum dos jovens está associada a uma palavra que é hoje repetida por todo o lado: precariedade. O grande linguista russo Roman Jakobson escreveu um ensaio nos anos 30, na sequência do suicídio de Maiakóvski e da purga e deportação de poetas, escritores e artistas soviéticos, intitulado A geração que dilapidou os seus poetas. O nosso tempo é aquele que dilapida os seus jovens, mantendo-os bloqueados em todas as entradas. Trata-se de um desastre — também cultural — que progride em silêncio, um factor de desequilíbrio social e de implosão das instituições (antes de mais, a instituição escolar e a universidade). A precariedade como condição inescapável e o profundo hiato entre uma geração instalada e aquela que veio num tempo em que a noção de futuro, motor de toda a acção política e social, já tinha perdido a sua força são a resposta plausível a uma pergunta que muitas vezes é feita: Porque é que não emerge uma nova identidade colectiva em torno de reivindicações juvenis, algo semelhante a um movimento social? Por outras palavras: Porque é que a juventude não dá lugar a um sujeito histórico, quando parecem criadas as condições para isso?

Extinta a enorme significação política da juventude e a força «espiritual» — intelectual — que a fez detentora, em vários momentos do século XX, de uma força messiânica (por exemplo, no Maio de 68), a sua potência ficou confinada às iluminações profanas da imagem. É hoje bem notório que a figura do corpo jovem monopolizou o nosso imaginário. Ele ocupa quase exclusivamente a cena pública, no cinema, na televisão, na publicidade, na moda. Mal conseguimos pensar a beleza, a saúde, a vitalidade, a sexualidade — e todas as suas declinações — sem a referência ao corpo jovem, isto é, o corpo como «deve ser», biopoliticamente correcto. Isto inaugura uma outra maneira de caracterizar a juventude: ela já não se define por um ideal, por uma concepção do mundo, como foi o caso da juventude do pós-guerra, até ao Maio de 68, mas por uma imagem. O ideal é algo a que se aspira e constitui uma política, determina uma acção e funda um estilo. A imagem, por sua vez, leva a um mimetismo passivo, consubstancial ao fenómeno de estetização da sociedade e às formas de sentir que lhe correspondem.

"A juventude é hoje um ideal que se materializa num universo de representações e códigos estéticos e sociais que se universalizaram e ultrapassam largamente fronteiras etárias."

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© Márcio Matos / Príncipe Discos

 

No processo histórico de invenção da juventude, uma das etapas primeiras e fundadoras consistiu nos movimentos da juventude e dos estudantes, na Alemanha, anteriores à Primeira Guerra Mundial. Encontramos nos textos juvenis de Walter Benjamin (para dar apenas um exemplo, entre muitos a que podíamos fazer referência) provas eloquentes do que foi essa mobilização em nome de uma «metafísica da juventude», a produção intelectual a que ela deu origem e a consciência trágica que a eclosão da guerra fez nascer nesses jovens que aspiravam a uma pureza do «espírito» (uma palavra que estava então muito em voga). Esses movimentos da juventude implantaram-se numa tradição romântica: ser jovem significava, então, um valor espiritual e não físico. A ideia de juventude, tal como ela foi reivindicada por estes movimentos, vinculou-se estritamente à consciência de valores éticos e cognitivos, a uma experiência de conhecimento e sentimento que deve guiar a praxis. Todo esse movimento concebeu a arte e o conhecimento, impregnados de uma dimensão ética, como os modos fundamentais da vida estudantil. A vida intelectual, científica e artística dos estudantes devia representar um momento de justiça e de realização da História como utopia. A grande bandeira dos estudantes, como se percebe bem num dos textos juvenis de Walter Benjamin, tinha um sentido contestatário da experiência. Porque esta é «a máscara do adulto», uma máscara privada de espírito e que, por isso, significa o fim dos ideais e das ilusões conquistadoras. A experiência, diz Benjamin, é a cultura do filisteu.

Uma «metafísica da juventude» não define, obviamente, a juventude como categoria sociológica. Essa categorização importante só chegou muito mais tarde, no pós-guerra, nos anos 50 e 60 do século passado, quando se deu uma enorme explosão demográfica e se assistiu à prosperidade económica. Então, os jovens reivindicaram uma cultura própria, muito marcada pela cultura pop e, até, por uma contracultura. Tudo isso é um fenómeno do passado. Já no nosso tempo, a juventude perdeu a sua significação política e social, e ganhou uma outra significação cujo modelo predominante é a correcção biopolítica. Não é que os corpos sejam submetidos a dinâmicas violentas por parte de poderes visíveis, políticos ou outros. Não, o poder, neste caso, é uma força anónima e extremamente activa, ilocalizável porque está em todo o lado e tão coerciva como o superego que faz as suas imposições de um modelo e valida as representações da socialidade hipermoderna e das imagens de desejo que ela impôs. É evidente que essas imagens não podem ser desligadas das estratégias e dos efeitos do mercado. Mas não basta, longe disso, uma explicação economicista pobre e vulgar. Os corpos idealmente jovens das sociedades ocidentais hipermodernas entram, não sem fadiga, numa interminável corrida para uma normalidade estética, representada por um corpo trabalhado, elástico, bem definido, ao serviço do qual está uma indústria vestimentária e um estilo de vida urbana que conquistaram o mundo. Os corpos biopoliticamente correctos fazem no entanto descobrir duas anomalias que são a sua sombra: a obesidade e a anorexia. E a velhice é o seu reverso, uma negatividade actualmente denegada por todos os meios. Se o modelo dos corpos jovens se impôs é porque tem a força de mobilizar os nossos mais poderosos desejos e concentrar os ideais estéticos. Em muitos domínios da vida ocidental, ser jovem tornou-se um valor moral e social absoluto da existência. Um valor pelo qual se luta, para além dos limites físicos, biológicos, e da condição temporal do próprio corpo. A imagem a que nos temos de adequar é a de um corpo jovem que dá a ilusão de adiar longamente a hora da decadência. A juventude é, para todos os efeitos, um ideal estético-cultural. Há um paradoxo que podemos aqui entrever: na época dos corpos jovens, bipoliticamente correctos, deu-se um desaparecimento notável, o desaparecimento do «desejo», em todo o discurso teórico e analítico. Não, evidentemente, da pulsão assim nomeada, mas da palavra que a designa. Esta foi uma palavra- -chave na literatura e na teoria, à qual se deu um uso inflacionado com início nos anos 60. O desejo estava por todo o lado, era um investimento colectivo, uma pandemia que, muito provavelmente, chegou ao seu fim com a eclosão de uma epidemia: a sida. Lembremos esses tempos do desejo triunfante: da lírica provençal a Marguerite Duras, o desejo era o motor que movia a palavra literária e garantia que ela tinha uma força que não podia ser codificada. Quem ler muitos dos estudos literários dessa época será levado a perguntar: «Mas aquela gente não pensava noutra coisa?» Foi aliás neste contexto que Deleuze e Guattari criaram o famoso conceito de «máquinas desejantes» (por sinal, num livro chamado O Anti-Édipo) que alimentou a mais fecunda imaginação teórica de uma geração que tinha começado a substituir a revolução pelo desejo de revolução. Como sabemos, tudo isto acabou num enorme desencanto e numa profunda «crise do desejo», diagnosticada com todo o rigor e seriedade, mas que hoje já nem conseguimos muito bem vislumbrar o que é. Talvez se trate de algo que deu origem a uma disposição afectiva, como foi o tédio e o spleen para Baudelaire. Terá a juventude de hoje, desencantada, desiludida ou dilapidada, em todo o caso desapropriada de qualquer missão histórica, uma vocação capaz de dar um nome à tonalidade que marca a nossa época?