A análise descobre uma evidência adicional, e consegue fazê-lo (isto é, consegue evitar o engano) graças à distinção entre valor de uso e valor de troca. Se observarmos, conscientes desta distinção, o objecto mais banal, a mesa em que agora nos apoiamos para ler, notamos que quase não se apresenta como mercadoria este objecto de uso; «não só assenta com os pés no chão, antes sucede que, face a todas as outras mercadorias, se coloca de pernas para o ar e, a partir da sua cabeça de madeira, desenvolve extravagâncias, muito mais estranhamente do que se começasse a dançar por vontade própria». Quando um objecto toma a forma de mercadoria (Warenform) esconde um segredo: oculta o facto de o seu «valor» não ser senão trabalho e tempo de trabalho subtraído à vida, ou seja, sobretrabalho. A conservação deste segredo corresponde, por sua vez, ao erro da visão. Aqui, a metáfora óptica («parece à primeira vista») não é trivial nem evidente, e Marx, com efeito, insiste nela e explica-a: «O misterioso […] consiste, pois, simplesmente em que [a mercadoria] reflecte para os homens, como num espelho (zurückspiegelt), os caracteres sociais do próprio trabalho deles enquanto caracteres objectivos dos próprios produtos do trabalho, enquanto propriedades naturais destas coisas». Este espelhamento é, então, um defeito ou uma distorção que faz aparecer uma simples coisa no lugar das relações sociais que a produzem. A crítica da economia política passa assim pela oftalmologia, e Marx refere directamente o nervo óptico (Sehnerv): «a impressão luminosa de uma coisa […] não se apresenta como estímulo subjectivo do próprio nervo óptico, antes como forma objectiva de uma coisa externa ao olho». A analogia é clara e, no entanto, é insuficiente: se, com efeito, as mercadorias (isto é, as relações sociais que as constituem) aparecem como simples coisas, se o valor de troca aparece como se fosse o valor natural de uma coisa, a relação de natureza física entre uma coisa (luminosa) e uma outra coisa (o olho) não consegue explicar integralmente a relação com a forma da mercadoria e o valor de trabalho que ela representa, os quais «não têm absolutamente nada a ver com a […] natureza física e com as relações, daí resultantes, entre coisas». A analogia verdadeiramente capaz de ilustrar a forma da mercadoria é antes oferecida pelo mundo «de névoas» da religião: tal como os produtos da cabeça humana parecem aqui figuras autónomas, dotadas de vida própria, na relação entre si e com os homens, também uma relação social determinada adquire, na mercadoria, a forma fantasmagórica de uma coisa que entra, por sua vez, em relação com outras «coisas» semelhantes. «A isto chamo o fetichismo que adere aos produtos do trabalho logo que são produzidos como mercadorias».
Se a mercadoria parece «à primeira vista» uma coisa evidente, já a análise dir-se-ia ser uma segunda visão que a liberta da sua falsa, auto-evidente (selbstverständlich) simplicidade: destrói assim aquele selbst, a pretensão de autonomia, para descobrir que ela remonta a um acumular de imbróglios metafísicos e teológicos.
"A analogia verdadeiramente capaz de ilustrar a forma da mercadoria é oferecida pelo mundo «de névoas» da religião."
A expressão «à primeira vista» define o olhar não analítico que vê as mercadorias e não os fetiches. Ele move-se numa fantasmagoria de mitos e ídolos, que são para ele simples «coisas», evidentes e naturais, e assim, sem reconhecê-las, venera-as, celebrando uma religião que permanece desconhecida para si mesma. Não apenas vê uma coisa onde se encontra um jogo de luzes, mas atribui a origem dessa projecção a uma coisa e não a uma relação de forças. Pode dizer-se, então, que quem não se dá conta do imbróglio limita-se ao exercício do nervo óptico, quando deveria ver o que não tem debaixo dos olhos. A ilusão do primeiro olhar reside precisamente em ser um olhar, a projecção fantasmagórica remonta ao facto de que o homem conhece as mercadorias com as fibras nervosas, pretende poder olhá-las (e troca-as por coisas). Mostrando-se de qualquer maneira (não pode deixar de o fazer), a mercadoria conquista o seu receptor; por sua vez, a análise não se faz com os nervos e não acredita no que vê com os próprios olhos. Ela assinala antes de mais que as mercadorias não são auto-suficientes, que «não podem ir por si mesmas ao mercado, nem trocar-se a elas mesmas», e dirige-se então ao «processo de troca». Ou seja, ela aponta aos «guardiães das mercadorias» que se referem a si mesmos como proprietários ou, juridicamente, como pessoas, e observa-os de perto, para se lançar para lá de qualquer olhar: «Na continuação do desenvolvimento, veremos […] que as máscaras económicas das pessoas são somente as personificações das relações económicas…». A análise uma vista adicional, não primeira, e não vem dos olhos; porque sabe que o homem simplesmente deixa de ter olhos, desde que é ele próprio e para si próprio, antes de mais, uma máscara. As frestas desta última, que produzindo estranhas distorções luminosas dão às mercadorias a aparência de coisas, são talhadas pelas mesmas relações de forças historicamente determinadas que conferem às coisas a forma de mercadorias. E as mesas estarão de pernas para o ar enquanto vigorar no homem o princípio metafísico e teológico da identidade pessoal, ou enquanto a pessoa não torne a ser — segundo o seu mais antigo significado (persona, prosopon) — apenas uma máscara (Charaktermaske, diz Marx), desvelando integralmente os poderes que a animam.
"As mesas estarão de pernas para o ar enquanto vigorar no homem o princípio metafísico e teológico da identidade pessoal, ou enquanto a pessoa não torne a ser — segundo o seu mais antigo significado (persona, prosopon) — apenas uma máscara (Charaktermaske, diz Marx)."
Para que as mesas permaneçam de pernas para o ar, por sua vez, também a aparência do ser individual (indivíduo ou povo), corpóreo, dotado de coisas-órgãos que vêem coisas-mercadorias, deverá ser mantida. Mas apenas aquilo que não existe pode esconder uma inexistência, só aquilo que, negando-se a qualquer troca, aparece como o mais próprio, último, meu e de nenhum outro, poderia subtrair-se à análise da troca: essa é a morte, a que verdadeiramente torna iguais olhos e furos da máscara. Se «l’expérience de l’individualité dans la culture moderne est […] liée à celle de la mort» (Foucault) é porque ela permanece inseparável da liturgia das mercadorias e da adoração do seu valor. A fantasmagoria óptica sempre se anima, no fundo, para o olhar vazio de um morto. Claro, esta máscara parece viva, à primeira vista, e embalada, e ao expor as mercadorias no mercado coloca--se, por sua vez, em evidência, com todos os seus caprichos.
*Tradução de André Dias
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