Passagens
«Uma mercadoria [...] é uma coisa muito complicada, plena de subtileza metafísica e de caprichos teológicos.»
Emanuele Coccia

Bolsas, lápis, congelados. Mas também automóveis, sapatos, chocolate e gasolina. O universo das coisas que nos rodeiam parece possuir não apenas as formas mais díspares, mas também os fins mais diversos. Um dos méritos de Marx foi de ter mostrado o que, apesar destas diferenças, une estes objectos: os objectos que nos rodeiam são, na sua maior parte, artefactos, encarnações do trabalho humano produzidas com destino à distribuição, à venda e ao consumo. São, em suma, mercadorias. Ao contrário doutros representantes da economia clássica, em Marx, o facto de uma mercadoria ser fruto do trabalho humano não se reduz à capacidade de encarnar uma ideia, um projecto ou uma visão.

Ao contrário doutros representantes da economia clássica, em Marx, o facto de uma mercadoria ser fruto do trabalho humano não se reduz à capacidade de encarnar uma ideia, um projecto ou uma visão. O trabalho, de que as coisas são a concretização material e visível, injecta algo mais no seu corpo: a capacidade de simbolizar as divisões sociais e económicas que tornaram possível o seu nascimento. Assim, o computador portátil que utilizamos para ler e escrever não é apenas a expressão da inteligência dos informáticos que o projectaram, nem a materialização concreta das centenas de horas que permitiram a sua fabricação. É, sobretudo, a representação de uma fractura entre quem o trabalha e quem pode não trabalhar, ou entre quem detém meios e quem não os detém, enfim, um conflito de classe. É numa capacidade simbólica que excede qualquer utilidade e qualquer forma que Marx encontra essas suas subtilezas metafísicas e argúcias teológicas. Antes de mais, porque, como o próprio dirá, é «a relação social determinada entre os próprios homens que assume aqui para eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas»; e «para encontrar, portanto, uma analogia, temos de nos refugiar nessa região de névoas que é a do mundo religioso». O termo «fetichismo», com que Marx nomeia esta estranha propriedade das mercadorias que vai para além do seu uso e do seu valor de mercado, deriva efectivamente da religião: fetiches («feitiços») eram, com efeito, os artefactos que, segundo os colonizadores europeus do século XVIII, os povos africanos colonizados adoravam com se fossem divindades. Também neste caso, os artefactos humanos condensam simbolicamente a relação social entre homens recobrindo-a com a relação entre objectos ou entre homens e objectos. Esta teoria, com que Marx, no fundo, penetrava muito para lá das suas análises económicas da troca, da moeda e da produção, introduz um elemento puramente simbólico, não económico nem material, na sua descrição do sistema capitalista. Não é por acaso que muitos teóricos do consumo inspirados por Marx teorizaram ser sobretudo em função deste valor simbólico que nós consumimos mercadorias: não é nem em função da utilidade nem meramente em função do nosso poder de compra (valor de troca) que nos apropriamos de um objecto, mas pela capacidade de reflectir a nossa distinção social em relação a quem a produziu e a outros que não podem adquiri-la. Ao capitalismo não é apenas congénito uma espécie de snobismo inato, que leva os membros de classes distintas a recobrir a sua distância material e económica com uma distância simbólica, mas também uma espécie de espiritualismo que torna o mundo das coisas num espelho, o ecrã de uma projecção abstracta que não tem nada a ver nem com a utilidade dos objectos vendidos e adquiridos nem com a necessidade da sua troca. As mercadorias são «hieróglifos» sociais, símbolos e palavras à solta com os quais a sociedade que os produz fala de si mesma e da própria natureza, exterioriza nas coisas os seus conflitos interiores.

"O fetichismo é uma espécie de dimensão supra-económica ou ultra-económica do capitalismo, o limiar em que demonstra que o seu verdadeiro fundamento não é nem de ordem material nem de ordem meramente utilitária, mas, tal como a religião dos povos estudados pela antropologia, de uma estranha forma de totemismo."

gsdgas

Kathy Butterly, Flee, 2016
Cortesia da artista e Shoshana Wayne Gallery

 

Deste ponto de vista, o fetichismo é uma espécie de dimensão supra-económica ou ultra-económica do capitalismo, o limiar em que demonstra que o seu verdadeiro fundamento não é, nem de ordem material, nem de ordem meramente utilitária, mas, tal como a religião dos povos estudados pela antropologia, de uma estranha forma de totemismo. Tal como, nas sociedades primárias, a relação entre os diferentes totens animais (a águia, o urso, a tartaruga) é a superfície de projecção da relação recíproca entre os diferentes grupos sociais sempre ligados a cada um deles, também, no capitalismo, a relação entre as diferentes classes estaria ordenada e encenada através da relação recíproca entre as diversas mercadorias (um automóvel de alta cilindrada e um utilitário, etc.). A subtileza metafísica e a argúcia teológica do fetichismo das mercadorias permite ordenar e classificar a sociedade de modo análogo a como se ordenam e relacionam reciprocamente os artefactos desta sociedade.

Os limites da análise marxista são, talvez, dois. Por um lado, ter pensado que a capacidade dos objectos para condensar e exprimir conteúdos simbólicos, para lá da sua utilidade e do seu valor de troca, é uma dimensão teológica e metafísica, ou seja, algo que transcende a sua natureza. Na verdade, como demonstraram muitas das abordagens seguintes (antes de todas, a de Georg Simmel), todos os artefactos humanos se definem, acima de tudo, por esta capacidade simbólica, que é bem mais originária e profunda do que uma possível utilidade ou do que a possibilidade de serem trocados, logo, de serem mercadorias propriamente ditas. Cada artefacto, independentemente da sua utilidade e da eventualidade de ser trocado, é antes de mais expressão de uma certa ideia de concepção do mundo e da sociedade. Neste sentido, não se devia falar de fetichismo, porque não se trata de uma ilusão, de uma crença ou de um resíduo de pensamento religioso. As coisas falam e exprimem muito mais do que aquilo para que servem e do que aquilo que valem. Nomear esta dimensão simbólica absolutamente natural e comum com o termo «fetichismo» significa, no fundo, resistir-lhe, participar precisamente do utilitarismo e economicismo que se queria combater.

Por outro lado, e precisamente por isto, não é apenas enquanto mercadorias — enquanto objectos produzidos e trocados, e portanto enquanto materialização e resíduo de trabalho — que as coisas começam a falar, a exprimir significados que transcendem a sua função social ou o seu valor económico. As coisas falam porque a matéria que atravessa a nossa vida não pode deixar de ser contagiada pelas experiências, visões, pensamentos e emoções que a tornam humana. As coisas falam, mas não falam apenas da relação que cada um de nós estabelece com o resto da sociedade ou com os seus próximos. Por outras palavras, o simbolismo natural das coisas não é igualmente fetichismo porque não se trata apenas de uma dimensão ligada à natureza social dos objectos ou dos seres humanos. Se as coisas falam é porque cada objecto deve exprimir como o mundo se dá a ver a partir da sua própria existência.

*Tradução de André Dias