Figura
Jean Malaurie: ousar, agir e criar
Giulia Bogliolo Bruna

Explorador científico das regiões polares e defensor dos direitos das minorias árticas, etno-historiador, geógrafo e escritor, Jean Malaurie foi director na École des Hautes Études en Sciences Sociales e fundador da prestigiada colecção «Terre Humaine», que dirigiu. É autor de uma ampla bibliografia, da qual se destaca Les derniers rois de Thulé, que se tornou um clássico. A etno-historiadora e antropóloga de arte Giulia Bogliolo Bruna, sua colaboradora e autora da obra Jean Malaurie: une énergie créatrice, escreve para a Electra sobre este sábio cuja vida foi um romance.

Jean Malaurie © Florence Brochoire / Signatures, Paris

Jean Malaurie © Florence Brochoire / Signatures, Paris

Energia criativa ao serviço de um humanismo ecológico, explorador dos desertos frios, antropogeógrafo, escritor de sucesso e editor, Jean Malaurie (Mainz, 22 de Dezembro de 1922 – Dieppe, 5 de Fevereiro de 2024) atravessou o século xx como um «retrofuturista», apropriando-se da máxima de Terêncio: Homo sum, humani nihil a me alienum puto [Sou um homem, nada do que é humano me é estranho].

Autor prolífico de obras que são um património, de Les derniers rois de Thulé a Hummocks, de Ultima Thulé a L’appel du nord, de Lettre à un Inuit de 2022 a Oser, résister, Malaurie foi sempre promovendo a construção de uma Civilização do Universal, plural na sua unidade, multiétnica e cheia de fecundas mestiçagens.

Grande Prémio da Sociedade de Geografia em 1996, Patron’s Gold Medal (Royal Geographic Society, 2005), Embaixador da Boa Vontade para as Questões do Árctico junto da UNESCO (2007), Grande Oficial da Légion d’Honneur (2015), Malaurie encarna a figura do intelectual inconformista e ecléctico, unus et multiplex. No dia a seguir à sua morte, o Presidente francês Emmanuel Macron prestou-lhe uma vibrante homenagem, recordando-o como «um escritor francês do Universal, um homem que soube ousar, resistir […], um grande estudioso que traçou a lenda do século»1.

Refractário, em Junho de 1943, ao «inaceitável Serviço de Trabalho Obrigatório e à colaboração paramilitar que Vichy queria manter com a Alemanha nazi»2, Malaurie, com apenas vinte anos, escolhe o seu campo e entra na clandestinidade. Este corajoso acto de resistência constitui o elemento catalisador da sua metamorfose identitária:

Estava agora convencido da pertinência do meu juízo e considerava as minhas intuições inteiramente legítimas para orientar a minha vida; e, seguindo-as, comecei a sentir-me mais livre, capaz de me comprometer e, finalmente, de ousar passar do pensamento à acção.3

No pós-guerra, matricula-se na Faculdade de Geografia de Paris e frequenta as aulas do professor Emmanuel de Martonne, que, em 1948, o nomeia geógrafo das Expéditions Polaires Françaises, dirigidas por Paul-Émile Victor na costa ocidental e na massa de gelo da Gronelândia. Em 1950–51, sob a égide do Centro Nacional de Investigação Científica, leva a cabo a primeira missão geomorfológica a solo na região de Thule.

Para o jovem estudioso, o Árctico configura-se como um espaço mitopoético e palingenético de imanente transcendência:

Tendo partido para o Árctico a fim de o explorar, apercebi-me de que ele me tinha regenerado profundamente, de tal modo que nunca mais seria no Ocidente senão uma espécie de imigrante: tinha descoberto no Grande Norte as minhas verdadeiras raízes.4

© Fotografia: Frank E. Kleinschmidt / Library of Congress, Prints and Photographs Division, Washington D. C.

Família inuíte fotografada por Frank E. Kleinschmidt, 1924 © Fotografia: Frank E. Kleinschmidt / Library of Congress, Prints and Photographs Division, Washington D. C.

Reivindicando explicitamente a sua filiação em Giambattista Vico e na esteira de Fernand Braudel e Lucien Febvre (os pais da École des Annales), Malaurie insere a sua investigação num fluxo diacrónico que integra também a longa duração da Natureza.

De uma geografia descritiva que lê, ordena e mede o visível a uma geografia sagrada que indaga o espírito da matéria, de uma visão horizontal a uma visão vertical, Malaurie enriquece o seu método epistemológico. Da filosofia heraclitiana do devir à filosofia naturalista do Renascimento, do pensamento iluminista à Naturphilosophie alemã, do cristianismo franciscano ao xamanismo inuíte, o geoantropólogo opera cruzamentos na sua abordagem heurística, articulando racionalidade e sensorialidade, intuicionismo memorial e presciência inspirada (uma abordagem original que permite captar a quintessência do fenómeno fora dos contextos espaciais, temporais e formais).

Nessas regiões que estão no limiar do ecúmeno, vivem os inuítes (os esquimós polares), que possuem uma sabedoria milenar e um conhecimento osmótico do ecossistema:

Na tundra, no mar, tive a sensação de penetrar em toda a riqueza de uma lógica pré-humana: a ordem da Natureza. Estávamos lá em cima, como nas origens do Universo: uma Natureza ainda indiferenciada na sua virgindade e na sua força primordial: os inuítes, a minha família do gelo, ensinaram-me à sua maneira, em silêncio, a decifrá-la.5

Processo de desconstrução de uma identidade mutilada e vector de redescoberta da totalidade do Eu, a «inuitização»6 malauriana é uma dinâmica dialógica, um itinerário relacional em que se concretiza um triplo movimento de conhecimento (do mundo), de autoconhecimento (dos estratos mais profundos da consciência) e de reconhecimento do Outro como um Outro Eu. Esta metamorfose identitária influencia o seu posicionamento epistemológico, permitindo-lhe investigar melhor a estreita relação entre o ecossistema e a morfologia social. Os inuítes elaboraram empiricamente, ao longo de milénios, um contrato social original a que o estudioso chama, com um oxímoro, «anarco-comunalismo»7.

Malaurie cartografa Nunvut (a Mãe Terra) e empreende o estudo do ecossistema árctico a partir da petrografia, do ujarak, a pedra-memória dos tempos geológicos, o receptáculo da energia cósmica que, desprendendo-se da rocha-mãe, forma os ujarassuit, as massas pedregosas que se encontram no sopé das falésias. No decurso deste itinerarium iniciático que dá acesso à inteligência da Natureza, Malaurie inuitiza-se a si próprio (os inuítes, escreve, «[foram] a [minha] segunda universidade»8) e elabora uma abordagem epistemológica acolhedora que combina percepção sensorial, intuição memorial e racionalidade.

[...]

© Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres

Máscara inuíte em madeira, Norte do Alasca © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres

1. Comunicado da Presidência da República francesa, 05.02.2024.
2. Jean Malaurie, Terre Mère, Paris: CNRS Éditions, 2008, pp. 30–31.
3. Ibid., p. 31
4. Giulia Bogliolo Bruna, conversa com Jean Malaurie, Janeiro de 2011.
5. Ibid.
6. «S’esquimauder», «s’inuitiser» (inuitizar-se) são os neologismos cunhados por Malaurie para indicar o seu processo de transformação identitária gerado pela sua íntima aproximação aos inuítes.
7. Comunalista por essência, estruturalmente igualitária e funcionalmente meritocrática, a sociedade tradicional dos inuítes configura-se como uma totalidade ecossistémica que obedece a um complexo e regulador corpus de normas e tabus.
8. Giulia Bogliolo Bruna (org.), «Labirinti artici. Conversazione com Jean Malaurie», Alla ricerca della quadratura del Circolo Polare: testimonianze e studi in onore di Jean Malaurie, Il Polo, Fermo: Istituto Geografico Polare Silvio Zavatti, 1999, n.º 25–26 p. 25.