Primeira Pessoa
Geoff Dyer: «A autoficção é bastante limitada.»
Afonso Dias Ramos

Partindo do seu livro mais recente, Os Últimos Dias de Roger Federer, o aclamado escritor e ensaísta britânico Geoff Dyer falou com a Electra sobre livros, fotografias e a ideia de fim, explorando uma diversidade de temas da cultura contemporânea que vão desde um interesse renovado pelo estilo tardio até à crescente popularização da autoficção enquanto modo literário, do processo criativo de escrever um texto à atenção ao mundo que as imagens despertam.

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© Matt Stuart

 

Geoff Dyer publicou quatro romances e inúmeros livros de não-ficção sobre temas tão variados quanto a crítica literária, a Primeira Guerra Mundial, John Berger, o Taiti ou a fotografia, galardoados com múltiplos prémios no Reino Unido e nos EUA. Como escritor e crítico de arte reconhecidamente ecléctico, o seu modo de escrita que cruza referências e mistura géneros tem vindo a dominar a literatura contemporânea, percorrendo os domínios da ficção, arte, música e fotografia, num movimento constante por diferentes locais e experimentando diversos formatos. Já investigou a vida a bordo de um porta-aviões (Another Great Day at Sea), explorou as vidas de músicos de jazz (Mas é Bonito), analisou a sua própria incapacidade de escrever sobre D. H. Lawrence (Out of Sheer Rage), dedicou um livro inteiro ao filme Stalker, de Andrei Tarkovski (Zona), e compôs uma espécie de memórias e diário de viagem (Yoga para Pessoas que não Estão para Fazer Yoga). A reunião dos seus ensaios e recensões (Otherwise Known as the Human Condition) foi premiada com o National Book Critics Circle Award em 2012, e os seus textos sobre fotografia, que já deram origem a três livros, The Street Philosophy of Garry Winogrand, See/Saw e The Ongoing Moment, valeram-lhe um Infinity Award do International Center of Photography em 2006. Kathryn Schulz apelidou-o de «um dos nossos maiores críticos» e «um dos escritores mais originais», Jan Morris descreveu-o como «talvez o escritor mais brilhantemente original da sua geração» e Zadie Smith classificou-o como «tesouro nacional». Nascido em Inglaterra e formado na Universidade de Oxford, Geoff Dyer vive actualmente em Los Angeles como escritor residente na Universidade da Califórnia do Sul, e escreve com regularidade em diversas revistas. No seu livro mais recente, Os Últimos Dias de Roger Federer (2022), Dyer virou-se para figuras como George Best, Bob Dylan, Jean Rhys, Giorgio de Chirico, Friedrich Nietzsche, Eve Babitz ou Adam Zagajewski, numa meditação sobre arte e a finitude das coisas. Geoff Dyer conversou com a Electra sobre a fixação presente pela autoficção, a experiência do declínio entre escritores, atletas ou artistas, e a intensidade da fotografia.

AFONSO DIAS RAMOS  No seu recente livro, Os Últimos Dias de Roger Federer, a estrela do ténis só surge de passagem. Nietzsche é a figura principal nessa meditação sobre a arte e o envelhecimento, que também inclui Beethoven, Turner, Dylan… O que lhe despertou o interesse pelo período tardio?

GEOFF DYER  Acho que coincidiu com a sensação de estar a alcançar o crepúsculo da minha vida criativa. Para meu espanto, já não tenho vinte e cinco anos. Como na música dos Talking Heads, isso causou-me uma grande surpresa, como causa a toda a gente. Estava ciente de que isto ocorria em simultâneo com a minha sensação de envelhecimento biológico. Mas também estava consciente de me ter começado a interessar pelo modo como as coisas chegam ao fim desde uma idade surpreendentemente precoce. Essas manifestações começam a fazer-se sentir mais cedo do que se possa imaginar, por isso achei boa ideia começar o livro com a canção dos Doors, «The End». Como menciono no livro, foi a última música do seu primeiro álbum. Também falo da minha própria experiência aos doze anos, quando um dos melhores futebolistas do mundo, George Best, se reformou ainda próximo do pico da sua carreira.

ADR  Mas diferencia a fase tardia da fase final — fala de últimos dias, últimos jogos, últimas performances. Que significa esta distinção?

GD  É uma distinção muito importante dado que se tem falado muito sobre o estilo tardio. A ideia do estilo tardio já se tornou praticamente um cliché académico. Beethoven é o exemplo clássico de alguém que teve claramente um estilo tardio, que também foi o seu estilo final. Ninguém discorda disto. Por outro lado, as últimas obras de Beethoven parecem conduzir a uma espécie de conclusão. É difícil imaginar que pudesse ter levado as coisas ainda mais além. Mesmo hoje, quando ouvimos os últimos quartetos de Beethoven, estes são tão radicais que continuam a dar-nos a volta à cabeça. Mas poderíamos pensar em muitos outros exemplos de pessoas cujos últimos trabalhos, por qualquer razão, surgem quando ainda estão numa altura que devia ser a meia-idade. Isso aconteceu com John Coltrane e Garry Winogrand. Em ambos os casos, as últimas obras deram-se a meio de uma fase de transição e dão ideia de que havia muito mais por vir. À medida que recuamos o relógio para a fase inicial da vida, é possível pensar em vários nomes cujas últimas obras não são sinónimo de obras tardias, mas de primeiras obras, como os romancistas que, por um motivo qualquer, desistem ao fim de um livro.

"Porque é que temos de deixar de fazer algo se gostamos verdadeiramente de tudo o que isso envolve, mesmo que já não estejamos no pico das nossas forças?"

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Garry Winogrand, El Morocco, New York, 1955 © The Estate of Garry Winogrand / Cortesia Fraenkel Gallery, São Francisco

 

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John Coltrane in performance, 1962 © Fotografia: Bettmann / Getty Images

 

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Roger Federer © Fotografia: Ian Walton

 

ADR  O estilo tardio foi celebremente analisado por Theodor W. Adorno ou Edward Said. Mas Said, por exemplo, associou-o a um desencantamento. A sua escrita, pelo contrário, parece estar a ficar mais humorística.

GD  Fico contente que me diga isso. Estou convencido de que me tenho tornado mais divertido enquanto escritor à medida que vou envelhecendo. O livro de Said de que fala foi uma enorme desilusão para mim. É um livro inacabado, dado que ficou doente. Sempre me pareceu que os melhores momentos desse livro são quando ele faz uma apreciação sinóptica do que Adorno tinha dito. Uma das questões que abordo é a de quando se deve embarcar numa discussão sobre a fase final ou a fase tardia. Se calhar, Said deixou essa tarefa para demasiado tarde. Mas devo dizer que nunca me deslumbrei com Said como muitas outras pessoas. Para mim, sempre permaneceu como alguém que soa a académico. Nunca me rendi a ele da mesma forma que a outros escritores.

ADR  E por outro lado, porque escolheu especificamente Federer? O crepúsculo para os atletas de elite costuma vir numa idade que precede a alvorada para muitos intelectuais.

GD  Também estava ciente disso. Mas hoje em dia isso mudou ligeiramente. Os atletas já não bebem nem tomam drogas do mesmo modo que McEnroe e os seus amigos costumavam fazer. Continuam a jogar até ao final dos seus trinta anos. Eu costumava olhar para a vida de um atleta como a melhor vida possível, uma vez que terminava tipicamente por volta dos trinta — por outras palavras, na idade em que as pessoas costumam publicar o seu primeiro romance. Parecia-me que podia ser a mais gloriosa das vidas: uma pessoa dedicar-se primeiro ao desporto e depois à escrita. Tenho um amigo que era surfista profissional. Tudo parecia incrível, viajar pelo mundo fora, beber e drogar-se com os amigos, afugentar todas as mulheres que queriam ir para a cama com ele. Agora olha para esse passado e diz que foi divertido, mas que gostava de ter escrito mais. Eu penso sempre: todos os escritores que conheço adorariam trocar de vida contigo! Um dos aspectos interessantes em Federer, antes de mais, é o de ter tido um crepúsculo muito longo. Falava-se tanto sobre quando se iria reformar. Talvez o ténis seja um caso especial neste sentido. O que a maior parte dos futebolistas quer é continuar a jogar. Adoram fazê-lo. Mas o ténis já levou algumas pessoas à loucura. André Agassi disse, como sabemos, que tinha passado a odiar o ténis. Mas Federer parecia gostar de jogar ténis, mesmo que isso significasse nunca mais ganhar nada. Acabou por acontecer essa coisa maravilhosa quando, depois de assumirmos que nunca mais voltaria a ganhar, ainda venceu mais três torneios do Grand Slam. Uma das razões pelas quais o livro tem o seu nome no título é por causa dessa ideia: porque é que temos de deixar de fazer algo se gostamos verdadeiramente de tudo o que isso envolve, mesmo que já não estejamos no pico das nossas forças? Isto relaciona-se com escritores que continuam a escrever apesar do melhor do seu trabalho já estar no passado. Tenho andado a ler uma biografia de Walt Whitman que indica que continuou a rever e a acrescentar coisas a Folhas de Erva durante imenso tempo. Mas o período da sua maior criatividade ficou essencialmente cingido a menos de uma década.

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