No Ecce Homo, este homem, que fez da reconquista da sua saúde uma vitalidade ascendente e um contrapoder face à doença que o perseguia e atormentava, preveniu que as palavras mais silenciosas e mais secretas são, muitas vezes, as que prenunciam a tempestade e que os pensamentos que chegam com «passo de pomba» são, frequentemente, os que mudam o mundo e dirigem o futuro. Há tempos, como o nosso, em que o que aconteceu já antes se perseguia a si próprio, mas poucos souberam ler as letras desse aviso prévio. Dito de outro modo, o que agora tem acontecido foi detectado, previsto e anunciado antes de acontecer. Poucos, porém, se deram conta disso e esses poucos não eram os que mais podiam e deviam prestar atenção ao que era muito mais importante do que aquilo a que eles dedicavam o seu interesse.
Isso sucedeu assim, porque aquilo a que hoje chamamos presente estava já a nascer submergido no mar daquilo a que damos o nome de passado. O seu silencioso e secreto movimento dirigia-se para o futuro desse passado, que é, agora, o nosso presente.
Tal avanço decorreu sob a forma de uma onda, primeiro quase imperceptível a formar-se e, depois, pouco a pouco, a crescer, ágil e volumosa. Essa maré foi-se aproximando, com uma velocidade que aumentava, transportando uma ameaça sem recuo, pois não houve obstáculos fortes ou suficientes para deter o seu avanço, quebrar o seu ímpeto ou mudar o seu curso.
Os actuais e já demorados tempos da política nos Estados Unidos da América, com a reprodução, accionada pelo desejo mimético (René Girard), em tantos outros lugares do planeta, parecem existir, na sua perturbação, na sua perversidade e no seu perigo, para dar razão e cumprimento a um livro, que se tornou um clássico do género: A Cultura do Narcisismo: A vida americana numa era de redução das expectativas, publicado pela primeira vez em 1979 pelo historiador e sociólogo Christopher Lasch.
Lasch foi aluno, na Universidade de Columbia, de Richard Hofstadter, autor, na década de 60, das obras Anti-intellectualism in American Life e The Paranoid Style in American Politics, esta última sobre as teorias conspirativas do complot na direita radical e populista. Antes, em 1944, havia publicado Social Darwinism in American Thought, 1860–1915 e, em 1955, The Age of Reform, sobre a ideia da superioridade da América rural perante a urbana e a sua influência na vida política do país, sob a forma do culto de um ethos agrário como homenagem dos americanos à pureza e à inocência imaginárias das suas origens nacionais. Lendo estes livros compreendemos melhor o que se tem passado nos últimos anos e o que novamente aconteceu nos Estados Unidos.
Se observámos bem a campanha eleitoral vencedora das eleições presidenciais norte-americanas, concluímos que ela foi construída como um vórtice incessante, tumultuoso e dionisíaco, cujo centro foi um Eu omnipresente e agigantado, exibido e louvado, hipertrofiado e obsessivamente autonomeado e nomeado por todos. Esse Eu foi excitadamente ostentado, tal qual a estátua do deus Príapo, filho de Dionísio e de Afrodite.
Neste novo e violento deus americano, que intenta dominar o mundo e inaugurar (ou será refundar?) uma religião política e cultural, o seu sexo é o seu Eu — e esse Eu atribui-se a si próprio as funções lascivas e fecundadoras que o outro e mais literal sexo se arroga de possuir.
Esse Eu descomunal, no vaivém incansável entre o passado mítico e o porvir enganadoramente restaurador desse passado inventado e ilusório, exerce as funções agressivamente másculas e varonis que visam restabelecer, com urgência e com rancor, uma civilização patriarcal, pecuniária, fazendeira, rude e brutal, que considera estar assustadoramente posta em causa ou mesmo em perigo.
O culto ctónico, subterrâneo e sombrio deste Eu másculo, musculado e maiúsculo, que apenas reconhece e consente os mesmos e nunca os outros, os súbditos e jamais os iguais, faz do mundo o incomensurável espelho onde se olha para se ver, onde se vê para se exaltar e onde se exalta para ameaçar, conquistar, possuir e dominar.
Ao contrário do Narciso grego, este Narciso americano (e também os dos outros continentes e países que o mimetizam) troca o lago de águas calmas e fixas, em que o antigo rosto incansavelmente se contemplava, pelos fluxos frenéticos e fulminantes dos ecrãs. São eles que lhe garantem a amnésia que rasura o passado, o medo que mina o presente e a mentira que manipula o futuro.
Dono de todas as técnicas e de todas as tecnologias que o tornam omnipresente e ubíquo, este Eu constrói-se no desprezo pelo outro e apresenta-se como o «self-made me» de um «self-made man» que nada deve a ninguém e a quem todos devem tudo.
Adora-se, como se adorasse um ídolo, na sua imagem publicitada, propagada, propagandeada, nos ecrãs de todo o mundo. Catapultado, popularizado e celebrizado pelos dispositivos televisivos de entretenimento como um bufão e um rufião, é um Midas ao contrário. Em correspondência com esse anti-dom tornado dom, criou uma estética anti-estética e uma estilística sem estilo. A contradição é o seu reino. A luz que sobre ele incide projecta no mundo uma sombra que alastra e cobre.
Nele, tudo tem sentido, mas o que não tem sentido é o sentido que isso tudo tem. A mentira é a sua mais aclamada verdade, a vulgaridade é a sua mais visível distinção, o descrédito é o seu mais potente crédito. É de tudo isso — e de conseguir convencer e vencer, com isso e apesar de tudo isso — que o seu narcisismo se alimenta e se engorda, que o seu amor próprio se enfatua e inflama, que a sua certeza de si se confirma e reforça.
Essa atitude narcísica, que é psicológica, política e ética, ajuda também a explicar um culto acintoso e uma prática despudorada, na escolha de pessoas para o desempenho de altos cargos públicos, que usa como primeiro critério para as nomeações os laços de família e os vínculos de amizade e fidelidade pessoal.
Diz-se, porventura apocrifamente, que o rei absolutista Luís XIV de França afirmou: «O Estado sou eu.» Mesmo sem afirmar, o americano afirma: «Eu sou o Estado», acrescentando, «E o Estado é meu».
Uma pergunta torna-se óbvia e inevitável. Como é então possível que uma «sociedade livre e aberta», ou assim tida como tal, escolha esta figura para a representar e dirigir, atribuindo-lhe o vértice do poder?
A Cultura do Narcisismo fala do desencanto, do pessimismo e mesmo do desespero que, quando foi escrito, começavam a substituir, na sociedade americana, a mitologia cinematográfica iniciada com O Nascimento de uma Nação, de D. W. Griffith, que mitificava a «gloriosa senda dos pioneiros» e olhava, como justificadas pelo cumprimento de um perpétuo mandamento divino («God Bless America»), as supremacias e as prepotências que garantiam um predomínio (pré-domínio) aos Estados Unidos da América e alentavam a sua mística patriótica. Como é sabido, o sentimento doloroso de decepção e o pressentimento negativo da decadência são os grandes geradores do ressentimento, do irracionalismo, da depressão e da regressão.
Partindo dos conceitos psicanalíticos clássicos de narcisismo, tema a que Freud dedicou uma especial atenção teórica, Christopher Lasch concede ao fenómeno individual o alcance e a adaptação, a refracção e a projecção, que o situa no domínio colectivo. E, a partir dessa noção instrumental, analisa os fenómenos culturais, políticos, sociais e antropológicos a uma luz que mostra o que estava oculto e habitualmente não se via.
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