Figura
O desaparecimento de Ettore Majorana
Umberto Bartocci

Com uma notável carreira científica carregada de futuro, discípulo do Prémio Nobel da Física Enrico Fermi, que o considerava um génio, o físico italiano Ettore Majorana desapareceu em 1938, quando tinha trinta e um anos de idade e a Itália vivia tempos convulsos de grande confronto político. Até hoje, não se sabe verdadeiramente o que aconteceu. Desde então, o mistério do desaparecimento de Majorana não deixou de intrigar, fazendo correr rios de tinta e gerando estranhas hipóteses e teorias. Entre outros autores, o grande escritor Leonardo Sciascia dedicou-lhe o livro La Scomparsa di Majorana. É este enigmático caso que o matemático Umberto Bartocci, antigo professor catedrático na Universidade de Perugia, revisita no ensaio escrito para a Electra, não se furtando a avançar as suas teses sobre o clamoroso e radical desaparecimento.

Majorana

Retrato de perfil de Ettore Majorana © Erasmo Recami e Maria Majorana / Colecção Erasmo Recami e Fabio Majorana / Cortesia American Institute of Physics, Emilio Segrè Visual Archives, Maryland

 

O DESAPARECIMENTO

Ettore Majorana desapareceu inesperadamente em Nápoles na noite de 25 de Março de 1938, uma sexta-feira, e desde então — pelo menos oficialmente — não se soube mais nada dele. À angústia que normalmente acompanha qualquer desaparecimento, sobretudo da família, juntou-se a particular importância deste caso, dado Ettore Majorana (EM, daqui em diante) ter sido um dos físicos mais brilhantes do seu tempo, a geração, note-se, de Heisenberg (Nobel de 1932), de Enrico Fermi (Nobel de 1938), de Emilio Segrè (Nobel de 1959), entre os quais se contavam alguns cientistas que, para o bem ou para o mal, trabalhavam na teorização e no aproveitamento da energia atómica. EM era bem conhecido de todos estes grandes cientistas: manteve-se particularmente próximo do grupo de Fermi e Segrè (incluindo Bruno Pontecorvo, Prémio Estaline de 1953) durante os seus estudos de Física em Roma, partilhou com Heisenberg um período de estudo em Leipzig em 1932, etc.

EM encontrava-se em Nápoles há poucos meses, depois de ter sido nomeado, no Outono de 1937, professor catedrático de Física Teórica na Universidade Real de Nápoles «pela elevada reputação da sua especial competência», uma honra anteriormente reservada apenas a Guglielmo Marconi (Nobel de 1909), o inventor da rádio. Em suma, uma jovem estrela da física em ascensão que na altura tinha acabado de completar trinta e um anos (nasceu na Catânia em Agosto de 1906). Sabemos que nessa manhã se dirigiu ao Instituto de Física de Nápoles apesar de não ter aulas marcadas, levando consigo uma pasta cheia de manuscritos. Não sabemos com quem pretendia encontrar-se nem o que pretendia fazer com aqueles papéis. Facto assente é que confiou a pasta a uma aluna (Gilda Senatore) que se encontrava sozinha a estudar durante um intervalo (do grupo bastante restrito que tinha decidido seguir a difícil cadeira do novo professor), tendo-lhe dirigido as seguintes palavras sibilinas: «Guarde-me estes papéis, depois falaremos», afastando-se de seguida. No entanto, não voltariam a falar um com o outro. Gilda Senatore adoeceria, não lhe sendo possível voltar ao Instituto durante algum tempo, vindo a saber do desaparecimento de EM vários dias depois. Mais tarde, mostrou os papéis ao namorado, Francesco Cennamo, que os entregou a Antonio Carrelli, director do Instituto. «Desviou-se para vias oficiais; de tal modo que os manuscritos se perderam. Uma perda incalculável. É possível que nem Ettore a tivesse calculado», comenta Erasmo Recami, um dos primeiros a ocupar-se do caso Majorana de forma sistemática e o mais documentada possível. Comentário curioso, pois precisamente essa via hierárquica deveria assegurar, mais do que qualquer outra, a conservação daqueles papéis, cuja história é uma história dentro desta história, um mistério dentro do mistério, mas não nos detenhamos na questão e prossigamos.

Não sabemos como EM terá passado o resto do dia. Sabemos (ou julgamos saber) que, após regressar ao hotel onde estava hospedado, voltou a sair por volta das cinco da tarde, provavelmente com o passaporte e com uma certa quantia em dinheiro (nesse mesmo dia, levantou todos os vencimentos relativos aos primeiros meses da sua recentíssima carreira universitária que nunca se preocupara em receber; EM pertencia a uma família abastada e não tinha particular necessidade de dinheiro). Presume-se que tencionava embarcar no navio «Città di Palermo», da companhia de navegação Tirrenia, com ligação entre Nápoles e Palermo, mas a partir daquele momento nunca mais ninguém o viu e nunca mais se soube dele.

Majorana

Ettore Majorana (indicado pela seta) com os seus colegas de turma durante um intervalo no Instituto Massimo, dirigido pelos jesuítas, em Roma, c. 1914 © Erasmo Recami e Maria Majorana / Colecção Erasmo Recami e Fabio Majorana / Cortesia American Institute of Physics, Emilio Segrè Visual Archives, Maryland

 

"Tinha deixado em cima da mesa do seu quarto de hotel um bilhete endereçado À minha família, contendo apenas estas poucas linhas: Tenho um único desejo: que não useis preto."

AS ESTRANHAS PARTICULARIDADES DO DESAPARECIMENTO

Até aqui, trata-se de um desaparecimento semelhante a tantos outros, a fazer lembrar, por exemplo, o romance O Falecido Mattia Pascal (1904), do famoso siciliano Luigi Pirandello (Nobel da Literatura de 1934). Mas EM quis complicar as coisas. Nesse mesmo dia, enviou a Carrelli uma carta, para ser entregue no dia seguinte, que começava assim: «Tomei uma decisão inevitável.» Deixou também, em cima da mesa do seu quarto de hotel, um bilhete endereçado «À minha família», contendo apenas estas poucas linhas: «Tenho um único desejo: que não useis preto. Se quiserdes obedecer ao que é de uso, usai, mas não por mais de três dias, um qualquer sinal de luto. Depois, guardem, se puderem, uma lembrança de mim nos vossos corações e perdoem-me. Com todo o carinho, Ettore.» Chegado a Palermo (pelo menos é o que se crê), envia dois telegramas. Um para o seu hotel em Nápoles, pedindo que lhe mantivessem o quarto reservado, outro ainda para Carrelli, assim redigido: «Não te preocupes. Segue carta. Majorana.» De Palermo, tinha de facto sido expedida simultaneamente uma carta por correio expresso que continha as seguintes palavras:

Caro Carrelli, Espero que te tenham chegado ao mesmo tempo o telegrama e a carta. O mar rejeitou-me e voltarei amanhã para o Hotel Bologna, viajando talvez com o mesmo documento de viagem. É minha intenção porém abandonar o ensino. Não me tomes por uma rapariga ibseniana, porque o caso é diferente. Estou à tua disposição para pormenores adicionais. Com toda a estima,
E. Majorana

Majorana

O anúncio do desaparecimento de Majorana publicado no Domenica del Corriere: «Ettore Majorana, professor de física teórica na Universidade de Nápoles, desapareceu miste- riosamente nos últimos dias de Março. Tinha 31 anos, 1,70 metros de altura, era magro, tinha cabelo preto, olhos escuros, uma longa cicatriz nas costas de uma mão. Se alguém souber alguma coisa dele, pede-se que escreva para o R.P.E. Marianecci, Viale Regina Margherita 66 – Roma.»

 

Carrelli contou ter recebido primeiro o telegrama na manhã de sábado, dia 26, e poucas horas depois a carta de 25, enviada de Nápoles (na qual, segundo Carrelli, «manifestava intenções suicidas»). No domingo, dia 27, recebeu finalmente o correio expresso, que deveria tranquilizar o destinatário, mas não houve mais notícias. Carrelli comunicou o desaparecimento à Polícia de Nápoles na quinta-feira, 31 de Março, tendo no dia anterior informado o reitor da Universidade de Nápoles numa carta pessoal e «altamente confidencial».

O que terá acontecido entre 25 e 26 de Março de 1938? Esteve realmente no «Città di Palermo» na noite entre esses dias? E de Palermo regressou para Nápoles? Se sim, quando exactamente?

[...]