Isabella Ducrot é uma artista, escritora e coleccionadora italiana. Em 2024, quando completa noventa e quatro anos de idade, teve duas exposições: no Consortium Museum, em Dijon, e no Museo delle Civiltà, em Roma. Também expôs internacionalmente, nas galerias Petzel, em Nova Iorque, Sadie Coles, em Londres, e Gisela Capitain, na sua galeria principal, em Colónia. Embora pessoal e íntima, a sua prática artística explora a mitologia e a história da cultura, e reflecte o seu envolvimento apaixonado com os têxteis. Nora Iosia, responsável pelo atelier de Isabella Ducrot, encontrou-se connosco na Piazza del Collegio Romano para a entrevista. Levou-nos ao Palazzo Doria Pamphilj, conduzindo-nos ao longo das arcadas, no pátio, até ao atelier de Isabella, no rés-do-chão. Fomos recebidos calorosamente por Isabella Ducrot, que nos deu as boas-vindas com café e praline di cioccolato, e por Veronica Della Porta, sua assistente.
Isabella Ducrot é uma artista, escritora e coleccionadora italiana, em cuja obra os tecidos assumem uma importância fundamental, ou mesmo fundadora. Esses tecidos têm, no espaço e no tempo, origens longínquas ou próximas e são portadores de memória, variedade, originalidade e verdade. Aos noventa e quatro anos, o reconhecimento artístico e a consagração mediática internacionais não param de aumentar. No atelier, situado no magnífico Palazzo Doria Pamphilj, ela continua a trabalhar, Penélope moderna que tece e não precisa de desfazer o que faz para que o seu trabalho se torne infinito. É neste cenário de umas novas «Mil e Uma Noites» que decorre a conversa feita para a Electra. Nela, Isabella Ducrot fala com Leander Gussmann e com Nora Iosia, a responsável pelo seu atelier, num registo em que a intimidade da sua voz se aproxima de nós com a mesma subtileza que tem a intimidade do seu trabalho de grande criadora, que, neste «Portfolio», temos também o privilégio de mostrar.
Leander Gussman Que lugar maravilhoso. Há quanto tempo tem aqui o seu atelier?
ISABELLA DUCROT Há cerca de vinte ou vinte e cinco anos. Também vivo no mesmo prédio, o que me permite continuar a trabalhar. Quase nunca saio de casa. Isto é um privilégio; é muito calmo, naturalmente, e posso vir trabalhar para o atelier.
LG E vocês encontram-se aqui todos os dias?
NORA IOSIA Sim. Trabalhamos juntas há vinte e oito anos. Parece que crescemos juntas. A Isabella e a Veronica encontram-se todos os dias às 9h30 e trabalham em conjunto nas peças até ao almoço. Durante esse tempo, trato de todos os contactos com galerias, museus e instituições, e depois, por volta das 11h30, junto-me a elas para conversar e organizar as coisas.
LG Foi também muito prestável na marcação da entrevista.
NI Obrigada. Sim, a par com a Galeria Gisela Capitain.
LG Quando é que começaram a trabalhar com Gisela Capitain, lendária galerista alemã, activa desde meados dos anos 80?
ID A Gisela veio visitar o meu atelier há cinco anos, tinha eu oitenta e oito. O que é extraordinário nesta situação é que não lamento o facto de ter sido demasiado tarde. Agora, mal consigo alargar o presente. O meu tempo é todos os dias e desfruto da vida no agora. Portanto, ela encontrou-me através de um livro que eu tinha publicado com a Sylph, de Londres, Text on Textile [Texto sobre têxtil], uma pequena recolha dos meus escritos publicados na colecção «Cahier», da mesma editora. Conhecemo-nos e, de imediato, ela arriscou e expôs o meu trabalho na Art Basel, em 2022. Agora, passa tudo pela Gisela. Não sou uma pessoa fiel, mas quero ser-lhe fiel a ela.
NI Concordo que agora, com a atenção dada ao trabalho da Isabella e com várias exposições internacionais, é essencial um sistema que funcione bem. A Gisela é um exemplo disso, possuindo uma mente brilhante e um espírito notável. Quero sublinhar este ponto: o seu intelecto e a sua alma harmonizam-se, permitindo-nos equilibrar o olho para o negócio com um desejo genuíno. Esta combinação, creio, é crucial. Ela move-se de uma forma muito eficaz e, juntas, caminhamos num mesmo sentido.
LG A sua obra é multifacetada; envolve pintura, colagem, livros e outros suportes. Mas alguns temas e motivos repetem-se e têm continuidade.
ID De certa forma, os temas correspondem à alma dos têxteis. Estou sempre a reflectir sobre isto. Sou obcecada, e tentei observar tanto quanto pude. Os têxteis transportam consigo muitos símbolos significativos para a vida quotidiana, pelo que se trata de uma compreensão contínua dessas estruturas e desses significados. Quando era criança, durante a guerra, os tecidos eram uma parte importante das nossas vidas. Não se deitava nada fora. Em casa, remendávamos e reciclávamos os panos. Hoje em dia, quase já não se fazem remendos. As pessoas não compreendem como ou porque haveriam de reparar uma coisa se podem comprar algo novo.
LG A Cristina Bomba, do Atelier Bomba, uma loja de roupa excepcional em Roma, disse-me que viu uma manta remendada que a Isabella fez para andar por casa. Depois tentou convencê-la a fazer mais e encomendou dois biombos para a loja.
ID A Cristina é minha amiga. Isso foi há quarenta anos. As coisas aconteceram muito lentamente. Conhecia muitos pintores e escritores e, de certa forma, não foi fácil começar tão tarde na minha vida. Ainda assim, passei a escrever e a fazer outras coisas relacionadas com os têxteis. Nessa altura, os meus trabalhos em têxtil não tinham seguidores. Hoje em dia, a cultura é diferente. Ainda há poucas semanas, o Washington Post publicou um artigo sobre a actual popularidade da arte têxtil, mas, naquela altura, não havia este grau de reconhecimento.
LG A paciência dá frutos. Quando começou a coleccionar têxteis?
ID Foi-se desenvolvendo lentamente, e agora já quase não colecciono. Mas, por vezes, utilizo peças valiosas para o meu trabalho. A colecção, tal como é hoje, inclui têxteis raros e dispendiosos, bem como artigos mais pessoais. Acaba por ser metade-metade. Por exemplo, o cão da Tatiana Twombly destruiu-lhe o xaile Shahtoosh, e ela ofereceu-me os pedaços que restaram. Disse-me: «Só tu o usarias.»
LG No seu livro Stoffe, faz a distinção entre colecções e raccolta, que se traduz por «recolha», sublinhando a dimensão mais pessoal e íntima da sua prática. E as outras colecções? Li que cuida de um jardim de rosas na Úmbria com centenas de variedades. Além disso, Vittorio Ducrot, seu marido, coleccionava consigo pintura barroca e indiana.
ID Sim, é verdade, coleccionámos alguns quadros barrocos e indianos. Também recolhemos montes de pés de roseira.
LG O seu trabalho, especialmente a sua pintura, além de nos mostrar as múltiplas formas dos têxteis, explora ligações, as dos humanos e, no caso da tecelagem, as dos fios. Depois, numa série recente de pinturas, parece importante o motivo da ternura que essas ligações podem conter.
ID Há temas relacionados com eros e ternura. Não estava à procura da ternura como tópico, mas ela surgiu sob a forma de pessoas apaixonadas.
LG As figuras nos seus quadros abraçam-se umas às outras e estão ao centro de um fundo que é, de resto, calmo. Em muitas outras pinturas, geralmente as não figurativas, algumas molduras e limites internos são parte integrante da composição. Elas contêm o motivo, que é muitas vezes um padrão que aparece através de formas e cores pintadas à mão, simultaneamente regular e irregular. Como é que estrutura as imagens com essas molduras impressas ou pintadas?
ID Encontrei na Índia uns blocos de madeira talhados para impressão tipográfica. Comecei a coleccioná-los; alguns dos que comprei eram muito antigos. Quando estava a trabalhar, utilizava esses blocos antigos para gravar os contornos que se encontram em muitos dos meus trabalhos. Tornou-se uma espécie de assinatura.
LG Para além dos padrões geométricos com formas redondas e riscas que aparecem com frequência nas suas obras recentes, o quadriculado é importante. Está ligado a vários outros temas e questões.
ID Escrevi sobre padrões em The Checkered Cloth [O pano axadrezado]...
LG Sim, quando li, pensei no padrão do Arlequim que relacionamos com os tecidos axadrezados. É simples, com diamantes em contraste. Não pode ser levado a sério. Não é utilizado em roupas caras. É utilizado no teatro. Normalmente, é o bobo ou o Arlequim que o usam.
ID Na Europa, os tecidos axadrezados são utilizados na cozinha e como pano de limpar pelas mulheres trabalhadoras. Fiquei curiosa com este facto. Percebi que no Japão é diferente. Pergunto-me porque é que a Madonna, por exemplo, não se veste com peças de roupa axadrezadas. Os têxteis associados ao estatuto e à riqueza não mostram a estrutura do material. Nunca se verá a estrutura dos tecidos e o modo como são feitos. A estrutura é o escândalo.
LG Na Europa, as mulheres estão intimamente associadas à tecelagem, um ofício também ligado à mitologia grega. Temos a teia de Penélope, tal como se conta na Odisseia. Sabemos também que Aracne desafiou a deusa Atena para um concurso de tecelagem.
ID São sobretudo as mulheres que estão ligadas aos têxteis aqui na Europa. Na Índia, a situação é diferente, com homens também associados ao têxtil. Temos o poeta místico Kabir, cujo pai era tecelão, e o ofício do pai influenciou o seu talento. É por isso que, na Índia, a tecelagem e a poesia estão tão ligadas. A estrutura dos têxteis lisos é semelhante à do logos e está relacionada com o pensamento racional da linguagem e da matemática. Platão também utilizou a metáfora dos tecidos e da tecelagem no seu texto sobre o homem de Estado, O Político.
LG E quanto às riscas?
ID Ah, sim! O historiador francês Michel Pastoureau escreveu um livro impressionante sobre o seu simbolismo: L'étoffe du diable: une histoire des rayures et des tissus rayés [O pano do Diabo: Uma história das riscas e do tecido às riscas]. De certa forma, ele também escreveu sobre o escândalo da estrutura. Os têxteis mais valiosos geralmente imitam a natureza e as suas cores, os padrões e motivos são retirados da natureza. Em contrapartida, as formas geométricas simples, como o xadrez e as riscas, eram consideradas grosseiras e de baixo estatuto.
LG Interessante. É difícil perceber, hoje em dia, porque é que a estrutura era escondida. Os têxteis parecem ser estruturas complexas que exigem perícia, matemática e instrumentos sofisticados.
ID Ao contrário do tricô, que utiliza um único fio para iniciar o trabalho, os têxteis fabricados a partir da tecelagem são feitos com uma urdidura e uma trama, e com o entrelaçamento de vários fios; por conseguinte, a sua estrutura não pode ser facilmente reconstituída até ao início. Já escrevi sobre este assunto num dos meus livros. Era raro os homens saberem disto. Homero não sabia. Caso contrário, não teria escrito a história de Penélope desfazendo a sua teia todas as noites, o que é quase impossível na prática.
LG Suponho que textos literários sofisticados, como a Odisseia, sigam um esteticismo que pode ser cego à realidade da experiência quotidiana.
ID Quando estive na Turquia, encontrei tecidos que as mulheres faziam por lá. Lembro-me de os ter visto pela primeira vez no chão de um mercado. Eram tecidos simples, feitos por camponesas. E, na altura, o meu marido perguntou-me porque é que eu gostava deles. Respondi: «Olha, são extraordinários. Têm as formas de Picasso.» No catálogo de Variazioni, de 2008, podemos ver as imagens das obras expostas e a dos lenços turcos bordados por mulheres, geralmente pobres. Para essas pinturas, copiei os lenços oya com rendas e bordados. Portanto, vê-se o lenço verdadeiro e depois a minha devoção e o meu reconhecimento — uma simples cópia. Ao mesmo tempo, também pintei homens a olhar. Compositores como Stravinsky, que pegaram na música dos camponeses e da cultura popular, roubaram o trabalho do povo e levaram-no para a sala de concertos sem admitirem esse facto. Nunca saberemos os nomes das mulheres que fizeram os finos bordados que mostrei na exposição, mas era importante, para mim, dar-lhes o meu reconhecimento.
LG Que bonito. Isto também está relacionado com o que mencionou anteriormente: a estrutura têxtil que se tece é criada por vários fios e não por um só.
ID Sim. Estes tecidos são fantásticos. Eu vi a sua beleza. Na minha geração, o folclore e o artesanato não eram considerados arte.
LG Estes vestígios de arte popular foram muitas vezes apagados. Além disso, identifico-me com os seus gestos de repetição e de mímica. Na universidade, dei um seminário intitulado «Aprender de cor». O objectivo era que os alunos copiassem e aprendessem de cor uma obra existente. Esta abordagem contrariava a tendência habitual entre os estudantes de arte para almejarem à originalidade e à novidade. Foi uma ideia que apanhei nos textos de George Steiner sobre crítica. Isto leva-me a uma pergunta sobre os seus processos de escrita. Li que escreve pela manhã. O que é que a motiva e como é que começou a publicar?
ID Conheci o editor Stefano Verdicchio, das edições Quodlibet, porque, na altura, ele estava a fazer um catálogo para o meu marido sobre pintura barroca. Só mais tarde é que publiquei estes livros com ele. Continuo a escrever. De certa forma, continuo com os têxteis e continuo obcecada pelos têxteis. Portanto, as minhas obsessões são as mesmas, sobretudo porque os tecidos estão a desaparecer. O plástico é demasiado perfeito. Podemos fazer tudo com ele. Parece que já não precisamos de têxteis naturais. Por isso, estou neste momento a preparar um novo livro; será outra vez sobre têxteis.
Partilhar artigo