Primeira Pessoa
Jan Zalasiewicz: «O Antropoceno alterou a história da Terra.»
António Guerreiro

O «acontecimento Antropoceno» concedeu à Geologia e a alguns geólogos uma grande projecção no espaço público, mas no interior do campo científico surgiram conflitos que por vezes pouco tinham que ver com ciência. O geólogo e paleontólogo Jan Zalasiewicz, professor emérito da Universidade de Leicester, aqui entrevistado, é um notável cientista que, contra a decisão tomada por uma subcomissão da União Internacional das Ciências Geológicas (IUGS), defendeu que, no estado actual da investigação, há evidentes provas científicas que atestam a entrada da Terra no início de uma nova época geológica, a que um meteorologista e químico da atmosfera, Paul Crutzen, chamou «Antropoceno».

Jan Zalasiewicz é um eminente geólogo e paleontólogo britânico-polaco, professor emérito na Universidade de Leicester. A história dos ambientes da Terra (à superfície e no subsolo) durante quinhentos milhões de anos foi o seu objecto de investigação privilegiado. Esse investimento científico está bem patente nalguns livros de que é autor, tais como The Earth After Us: What Legacy Will Human Leave in the Rocks? (2008) e The Planet in a Pebble: A Journey Into Earth’s Deep History (2010). Nos últimos anos, é o conceito de «Antropoceno» que o tem ocupado, tanto no plano científico como institucional. Já em 2008, enquanto presidente da comissão estratigráfica da Geological Society of London, submeteu os resultados de um ano de investigação à revista da maior associação geológica do mundo, a Geological Society of America, que os publicou com um título interrogativo, iniciando um debate que não parou de crescer: «Are we now living in the Anthropocene?».

Já este ano, no início de Março, Jan Zalasiewicz ganhou notoriedade para além do círculo estrito da sua área científica ao protestar publicamente contra o voto organizado dos membros da Subcomissão de Estratigrafia Quaternária (SQS), um órgão constitutivo da Comissão Internacional de Estratigrafia, que supervisiona a escala temporal geológica. O acontecimento que levou a este protesto ruidoso é bem conhecido e foi notícia em todo o mundo: depois de o Grupo de Trabalho do Antropoceno (AWG) ter discutido ao longo de mais de uma década se tínhamos entrado numa nova época geológica marcada pela acção irreversível humana sobre o sistema profundo do nosso planeta, depois de estarem reunidas evidentes provas científicas que levaram à proposta do reconhecimento oficial do conceito de «Antropoceno», a maioria dos membros da SQS rejeitou liminarmente esta proposta que visava declarar o Antropoceno como uma nova época do tempo geológico. Jan Zalasiewicz protestou formalmente contra o processo de voto, denunciando a violação dos estatutos oficiais da Comissão Internacional de Estratigrafia. Segundo ele, tal voto de rejeição, pelo modo como foi obtido, deveria ser considerado nulo. Para a opinião pública, ficou apenas uma estranha notícia: a de que afinal o conceito de «Antropoceno», que entrou na linguagem corrente, legitimado por uma vasta bibliografia, tinha sido rejeitado por um grupo de cientistas com poder para oficializá-lo.

Nesta entrevista, Jan Zalasiewicz fala deste episódio e das suas consequências, ao mesmo tempo que torna claro que o Antropoceno, mesmo que não oficializado, é o nome do desafio colossal com que a humanidade está hoje confrontada.

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Leonardo da Vinci, Uma ravina, 1482–1485 © Fotografia: Scala, Florença / Royal Collection Trust, Londres

 

ANTÓNIO GUERREIRO  Em Março deste ano, a IUGS rejeitou uma proposta discutida há mais de uma década: a declaração oficial, feita pela instituição científica com esse poder, de que estamos numa nova época antropológica chamada Antropoceno, porque é causada pela acção humana sobre todo o sistema planetário. Quais os argumentos usados para justificar esta rejeição por doze membros (contra quatro a favor) da subcomissão da IUGS?

JAN ZALASIEWICZ  A rejeição da proposta de tornar o Antropoceno uma época formal da Escala de Tempo Geológico, através do voto dos membros da SQS, não foi acompanhada por qualquer comentário ou contestação à longa (191 páginas) e detalhada proposta do AWG, a qual aliás constitui uma síntese de muitos estudos anteriores conduzidos pelo AWG e por outros. Assim, nenhuns argumentos formais foram apresentados em resposta aos argumentos e provas fornecidos pela proposta; nenhum comentário ou contestação acompanhou o anúncio do voto: só o registo de voto foi apresentado. A rejeição — como anunciada por um artigo do New York Times e com base em comentários de membros executivos da ICS e da IUGS feitos nesse e noutros artigos — fundou-se em objecções mais gerais que podem chamar-se filosóficas ou ideológicas, as quais foram antecipadas (e obtiveram resposta) praticamente desde o início da análise do AWG. Para muitos geólogos, o Antropoceno é demasiado curto (só dura o tempo da vida humana!), é uma simplificação demasiado grande da história humana e é demasiado político (numa disciplina que se orgulha de lidar com a história profunda do planeta, não com as suas dificuldades actuais). Todas estas objecções têm uma resposta possível. É verdade que o Antropoceno é breve, mas já alterou irrevogavelmente o curso da história da Terra, e esta mudança no curso planetário acarreta mudanças para a natureza do registo fóssil com consequências a longo prazo (mesmo depois de os humanos desaparecerem). Também representa a história da Terra, não a história humana — e aqui a mudança, medida, por exemplo, pelo aumento dos níveis de gases com efeito estufa e suas consequências, é impressionante e abrupta do ponto de vista geológico. Além disso, é comprovadamente real, e já afecta vidas humanas de forma bem visível, por isso temos de lidar com os seus efeitos e consequências: as implicações políticas são incontornáveis.

AG  Enquanto director do AWG, um dos três grupos de trabalho da SQS, pronunciou-se a favor da canonização do Antropoceno. Como geólogo,
paleontólogo e estratígrafo, quais as suas razões científicas para o fazer?

JZ  Talvez «canonização» não fosse a palavra que eu usasse, dadas as suas implicações quase religiosas, mas a formalização seria útil e ainda deve ser procurada. É verdade que isso pode levar algum tempo e se calhar precisamos de uma nova geração de geólogos mais sintonizados com as mudanças planetárias que estão a acontecer. Simplificando, o Antropoceno, como identificado por Paul Crutzen e analisado geologicamente pelo AWG, é real: o Sistema Terrestre afastou-se indisputavelmente das condições relativamente estáveis que caracterizaram o Holoceno; esse afastamento é marcado por muitos sinais distintos e definitivos em estratos formados recentemente, incluindo radionuclídeos, plásticos e vários compostos químicos novos, o que significa que o Antropoceno pode ser considerado e explorado num contexto geológico; e isto causou uma mudança irrevogável e permanente na trajectória da história da Terra.

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Caspar David Friedrich, Gebirgslandschaft mit Regenbogen [Paisagem de montanha com arco-íris], 1809–1810 © Fotografia: Scala, Florença / DeAgostini Picture Library / Museum Folkwang, Essen

 

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Caspar David Friedrich, Das Eismeer [O mar de gelo], 1823–1824 © Fotografia: Elke Walford / Scala, Florença / bpk, Bildagentur für Kunst, Kultur und Geschichte, Berlim / Hamburger Kunsthalle, Hamburgo

 

 

"O acontecimento Antropoceno deveria antes chamar-se Episódio de Modificação Antropogénica, que não substitui a época do Antropoceno, mas pode coexistir pacificamente com ela enquanto conceito distinto e complementar."

AG  A decisão da IUGS tem efeitos práticos na forma como os governos vão enfrentar os desafios «face a Gaia» (para citar o famoso título de um livro de Bruno Latour). Estamos a assistir a uma politização escandalosa da ciência?

JZ  A decisão da IUGS pode ser entendida em parte como uma tentativa de «tirar a política da escala de tempo geológico». Mas isso agora é impossível, pode aliás ter efeitos práticos, por exemplo, nas decisões políticas relativas às alterações climáticas ou à perda de biodiversidade, uma vez que ajuda a manter a impressão, errónea, de que as mudanças actuais no Sistema Terrestre, causadas pelos humanos, são passageiras, triviais e reversíveis. A decisão da IUGS já foi acolhida por sites que negam as alterações climáticas, servindo de justificação para a negação dos dados científicos que comprovam essas alterações. Por isso, uma das consequências pode ser a de dificultar o nosso desafio «face a Gaia». Bruno Latour foi um dos grandes apoiantes do trabalho e conclusões do AWG, e continuamos a usar a sua memória e inspiração para desenvolvermos o Antropoceno como um conceito válido factual, mesmo que não o seja legalmente.

AG  Há várias teses sobre a data de início do Antropoceno. A «grande aceleração» que se iniciou em meados do século passado é uma das mais apontadas. Também acha que esta é a data cientificamente mais plausível? Porque é que é importante estabelecê-la?

JZ  Uma série de datas têm sido propostas para o início do Antropoceno, recuando cinquenta mil anos ou mais, quando se deu o início dos impactos humanos, representados, por exemplo, pelo uso do fogo e pela extinção dos grandes mamíferos. O Antropoceno não foi conceptualizado para denotar todos os impactos humanos, mas sim para marcar o desvio das condições planetárias distintas e relativamente estáveis (de química de superfície, biosfera, etc.) que caracterizaram a época do Holoceno. Este desvio surgiu sobretudo depois de o mundo se industrializar. Paul Crutzen começou por propor a Revolução Industrial como uma data possível para o início do Antropoceno, a qual também foi considerada pelo AWG. No entanto, após um exame minucioso, as mudanças e sinais deixados nos estratos desse período não permitiram estabelecer uma fronteira clara e definitiva. Por exemplo, o início do aumento do dióxido de carbono na atmosfera acima dos níveis de referência do Holoceno teve lugar em meados do século XIX, mas foi um aumento lento e quase imperceptível, logo, difícil de delinear com precisão, enquanto outros sinais (poluição industrial, modificação da paisagem, etc.) foram regionais e não globais, formando-se em tempos diferentes em sítios diferentes, à medida que a industrialização se espalhou pela Terra. Com a grande aceleração que se verificou em meados do século XX, estes sinais conheceram uma subida acentuada a nível mundial, e a eles juntaram-se muitos outros sinais únicos (como radionuclídeos artificiais, plásticos, etc.). Os anos 50 do século passado rapidamente se tornaram, e continuam a ser, o nível ideal para se traçar a fronteira, e com isso concordou o próprio Paul Crutzen. É importante estabelecer uma fronteira porque o Antropoceno é basicamente uma medida de tempo, e na ciência qualquer medida deve ser precisa — à semelhança do metro, do quilograma, e por aí adiante. Se tivermos uma fronteira precisa e estabelecida, podemos medir e comparar sistematicamente as diferenças entre o Holoceno e o Antropoceno. Por exemplo, Jaia Syvitski conduziu um estudo do AWG para demonstrar, entre outras coisas, que o consumo total de energia humana nos setenta e quatro anos que passaram desde 1950 excedeu o consumo total de energia humana nos 11 600 anos anteriores, correspondentes ao Holoceno. Estas comparações são esclarecedoras — mas perderiam a sua efectividade e relevância sem uma fronteira temporal para o Antropoceno que seja estável, aceite e usada de forma sistemática.

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