Assunto
Antigo, novo, renovação
François Hartog

Ninguém melhor do que o autor de Chronos, L’Occident aux prises avec le Temps, o grande historiador François Hartog, poderia escrever sobre o modo como surgiu e como evoluiu a noção de novo e de moderno; ou como se estabeleceu a oposição, que iria resultar numa querela de séculos, entre o Antigo e o Moderno; ou quando o novo passou a suscitar um olhar positivo. Este modo de investigação histórica que deve muito à filologia, como se pode ver neste artigo, é uma marca do método historiográfico de Hartog.

Os Gregos são conhecidos por respeitarem o «princípio de antiguidade»1. Vem-nos logo à memória, entre milhares de exemplos, o «velho Nestor» dos poemas homéricos, com a sua propensão para as intervenções um pouco longas e para a evocação das suas memórias, mas unanimemente respeitado; o conselho dos anciãos (Gerousia) em Esparta; ou o seu equivalente, nas Leis de Platão, o conselho nocturno. Quanto aos Romanos, sempre apregoaram o valor que atribuíam ao mos majorum, os costumes e as leis não escritas transmitidas pelos seus antepassados. Recordavam regularmente as virtudes da Roma de outrora, sobretudo quando a República estava à beira do colapso e Roma desabava sob o peso das suas vitórias.

Os Gregos opunham os palaioi (os antigos, os velhos, os de antigamente) aos neôteroi (forma comparativa de neos), os mais jovens. Estes são descritos em relação aos primeiros como «mais novos». Mas este mesmo comparativo é também utilizado para designar uma rebelião ou uma revolução, e o verbo neôterizein significa «tomar novas medidas», isto é, fazer uma revolução. Não se deve deduzir daqui indícios de uma valorização excessiva do que é recente; pelo contrário, devemos resguardar-nos ao máximo do novo! A respeito dos antigos, várias estratégias eram possíveis, mas aos antigos não respondiam os «novos» ou os «modernos». Sempre houve antigos, mas ainda não havia modernos. Afirmar ser mais jovem e querer ser reconhecido como tal implica demarcar-se do grupo daqueles que vieram antes, que nos precederam, que são mais velhos: os antigos, portanto. Mas mesmo marcando o seu território, nem por isso os mais jovens deixam de ocupar o lugar dos antigos. Simplesmente, durante uma geração eles vêm depois, mas não estão lá para «fazer algo novo».

Ernst Robert Curtius mostrou que o neologismo modernus só apareceu no final do século v. Formado a partir do advérbio modo, «recentemente» — como hodiernus, «de hoje», o era a partir de hodie —, o adjectivo modernus, recente, resvala para o sentido de agora, actual, do presente2. No século vi, Cassiodore recorreu ao nome antiquitas para o aplicar ao passado romano (antigo) e valorizar a sua exemplaridade para os saecula moderna, ou «nosso tempo» (nostra tempora). Dois séculos mais tarde, a época de Carlos Magno poderá intitular-se, pela boca de alguns dos seus representantes, de século moderno. A entrada em circulação da noção de moderno tornou possível um deslocamento. Com efeito, o moderno deixou de ser apenas, ou simplesmente, aquele que vem depois. Ao afirmar-se como de agora, ele fica como que desalinhado e instaura um hiato (senão mesmo uma fenda) em relação ao que vem antes, o antigo. É este hiato que permite encarar positivamente o novo, que já não tem de ser desvalorizado à partida ou visto como suspeito precisamente por ser novo. Mas nada estava ainda definitivamente decidido no século vi ou mesmo no século viii.

Com a entrada em cena de modernus, o binómio Antigos-Modernos está lançado, assim como as querelas que vão pontuar, ou melhor, fazer a sua história. Não houve, certamente, apenas uma querela, uma longa e contínua querela da renovação Alta Idade Média até ao fim do século XVII, mas querelas, com formas e problemáticas muito diferentes. Estes Modernos são ainda os primeiros modernos, homens do seu tempo, que se contentam em marcar uma fronteira (móvel) com os Antigos: uma fronteira do presente. A partir do final do século XVIII, os segundos modernos serão habitados pelo futuro: para serem plenamente de hoje, terão de se virar para o futuro. De hoje, porque já de amanhã. Contudo, pelo simples facto de apelarem a esta forma de binómio, de atribuir a uns a posição de Antigos e a outros a posição de Modernos, os sucessivos protagonistas serão, durante muito tempo, como duelistas que voltam a resolver as suas velhas querelas no mesmo campo.

José Loureiro

José Loureiro, Vira, 2019 © Fotografia: Bruno Lopes

 

"Com a entrada em cena do neologismo modernus, o binómio Antigos‑Modernos está lançado, assim como as querelas que vão pontuar, ou, melhor, fazer a sua história."

ANTIGO E NOVO TESTAMENTO

Troquemos a Grécia e Roma pela Palestina. Num mundo em que a tradição é o valor primordial e em que, sobretudo nos meios farisaicos, respeitar a Lei à letra era o sinal mais seguro de piedade, Jesus vem anunciar uma «nova aliança», que é, antes de mais, uma ruptura. Esta reivindicação vai perturbar de forma duradoura a relação entre o antigo e o novo tal como se havia fixado até então nas sociedades mediterrânicas: a ordem do tempo foi virada do avesso3.

Um novo tempo demarca-se do tempo antigo «normal»: o do precedente, da tradição, dos antepassados, da imitação, da história como mestre de vida, mas também o do presente a fruir, como o único momento sobre o qual temos controlo, o presente tal como é visto pelos estóicos e pelos epicuristas. O tempo antigo é também o que é interrogado através dos presságios, com recurso à adivinhação e aos oráculos. Inspirado por Apolo, é suposto que o adivinho veja aquilo que é, aquilo que foi e aquilo que será, pois para aqueles dotados de uma visão sinóptica, já tudo está aí. Há o que ainda não aconteceu, mas nada de novo, em sentido estrito.

Com os primeiros cristãos, pelo contrário, surge o novo e afirma-se, pela primeira vez, que o novo tem precedência sobre o antigo. De facto, a «nova aliança» anunciada visava substituir a primeira: a que foi concluída com Moisés, que se torna então a antiga aliança4. Com o novo vem um «Novo Testamento», que, ao mesmo tempo, fará da Bíblia o «Velho Testamento». O momento inaugural desta transformação ocorre na Última Ceia, quando, depois do pão, Jesus pega num cálice de vinho, dá graças e passa-o aos discípulos, dizendo: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós.»5

Na Carta aos Hebreus6, diz-se que Jesus concluiu uma nova aliança com Israel, acrescentando este comentário: «Ao falar de uma aliança nova, Deus declara antiquada a primeira; ora, o que se torna antiquado e envelhece está prestes a desaparecer.»7 Como «mediador de uma nova aliança», ele redime pela sua morte as «transgressões» que se seguiram à primeira aliança e permite que os chamados recebam «a herança eterna prometida». Imediatamente a seguir, vem este esclarecimento de ordem jurídica: «Quando há testamento, é necessário comprovar a morte do testador, pois um testamento só entra em vigor depois da morte e não tem efeito enquanto vive o testador.»8 Em grego, a mesma palavra, diathekê, significa aliança e testamento (o que acontece também em hebraico). Mas percebe-se aqui como se passa da aliança para o testamento: do momento da aliança para o tempo posterior, que será (para sempre) regido por ela. A sua memória torna-se o legado que deve ser acolhido e transmitido. A antiga aliança marca, assim, a «morte» de Moisés, o primeiro testador, ao passo que a nova aliança se torna um Novo Testamento pela «morte» de Jesus Cristo, que ocupa o lugar de (último) testador. O «Novo» remete o «Antigo» para o passado e inaugura um presente radicalmente novo. À sua maneira, São Paulo põe em cena esta mesma divisão quando se declara «ao serviço de uma nova aliança», não já «literal» (a da Lei), mas «espiritual», «porque a letra mata, enquanto o espírito dá vida»9. A letra está morta, pertence ao passado e está ultrapassada, enquanto o espírito «dá vida» no tempo novo que acaba de ser inaugurado.

A ruptura com a tradição é, portanto, proclamada e reivindicada. As nume- rosas provocações de Jesus e, depois, dos apóstolos, de Paulo em particular, a respeito dos «fariseus», dos «escribas», dos «judeus» são prova disso. Mas, ao mesmo tempo, esta ruptura não deixa de se afirmar como verdadeira fidelidade e real continuidade. Porque foram precisamente os que se dizem guardiões da Lei que a traíram, fechando-se na letra e ignorando o espírito, ficando cegos pela letra por serem incapazes de ouvir a verdade daquilo que ela enuncia. Escritos no seio da própria tradição, multiplicando as citações dos profetas, cujas profecias são cumpridas pelas acções de Jesus, os evangelhos não se cansam de demonstrar que tudo o que foi escrito pelos profetas referia-se, na verdade, a Jesus.

1. Pierre Roussel, «Essai sur le principe d’ancienneté dans le monde hellénique du Vº siècle av. J.-C. à l’époque romaine», Mémoire de l’Académie des Inscriptions et Belles Lettres, 43, 2, 1951, pp. 123–228.
2. Ernst Robert Curtius, La littérature et le Moyen Age latin, Paris: PUF, 1956, p. 399; La Querelle des anciens et des modernes XVIIe-XVIIIe siècles, Paris: Gallimard, 2001, pp. 801–849.
3. François Hartog, Chronos. L’Occident aux prises le temps, Paris: Gallimard, 2020.
4. O primeiro a anunciar uma nova aliança (por vir) foi Jeremias: «imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo […], a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados» (31:33–34).
5. Lc 22:20.
6. A Carta aos Hebreus, anónima, por volta de 70, foi incluída no cânone do Novo Testamento a partir do momento em que foi colocada depois das cartas de Paulo.
7. Heb 8:13.
8. Ibid., 9:15–17.

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