Só se pode confiar na bondade se ela já tiver respirado o mesmo ar que o mal.
Nick Cave, 1996
Nick Cave pertence a uma geração para quem o rock’n roll ainda estava envolto numa aura mítica e os seus praticantes eram semideuses e não meras celebridades. Embora não tenha ainda ascendido ao Olimpo, onde tronam as mega stars da pop, como Elvis Presley, John Lennon, Bob Marley ou David Bowie, Nick Cave é, por profissão, uma estrela de rock, com tudo o que isso implica de megalomania, exibicionismo, transgressão e excesso. O seu percurso, seguido por milhões de fãs, está amplamente documentado na vintena de discos que gravou ao longo da sua carreira, nas letras das suas canções, integralmente transcritas em azlyrics.com, em dezenas de entrevistas, documentários, filmes e concertos disponíveis no YouTube. Porém, o que o torna singular no universo da pop é o talento literário, que o coloca diretamente na esteira gloriosa dos monstros sagrados, Bob Dylan e Leonard Cohen.
Vi-o pela primeira vez na segunda metade dos anos 80, no Pavilhão dos Desportos, no parque Eduardo VII. Julgo que foi a sua estreia em Portugal, na altura já com os Bad Seeds, formados após a dissolução dos Birthday Party, a sua primeira banda. A violência histriónica do concerto, o ruído quase insuportável, agravado pelo feedback estridente da guitarra eléctrica, faziam plenamente jus à sua ténue mas crescente reputação de banda neogótica pós-punk. Nick Cave, com o uniforme característico, que nunca mais abandonou — fato escuro e camisa aberta com colarinhos por cima das abas do casaco, como um Travolta fora da lei — deambulava possuído pelo palco, atirava-se para o chão e declamava aos berros ao microfone sob pano de fundo de uma furiosa barragem de som.
O concerto ao vivo, celebração, êxtase e catarse colectiva, sempre foi o momento supremo para os amantes do rock. Fui ver Nick Cave movido pela curiosidade e não fiquei seu fã de imediato, como me aconteceu por exemplo com os Talking Heads, amor à primeira vista. Recordo o concerto de Nick Cave como uma pura agressão aos sentidos, mas com algo de ameaçador e assombrado, inquietante e propriamente demoníaco, que ficou registado no meu espírito e deu origem à longa relação que, desde essa altura, tenho mantido com a música e a poesia de Nick Cave.
Nick Cave é poeta, poeta lírico e satírico, poeta de sonhos e orações, e contador de histórias: histórias de violência e crime tingidas de humor negro, histórias de traição e morte, histórias de pobres diabos perdidos nas veredas da vida, histórias de casamentos falhados e de homens famintos de sexo e acima de tudo, melancólicas histórias de amor. É também prosador, autor de dois romances And the Ass Saw the Angel, e The Death of Benny Munro, este último a saga frenética de um vendedor ambulante viciado em sexo, que comprei por impulso de coleccionador e acabei por ler de uma assentada. Produziu dois filmes que documentam o seu processo criativo, 20 000 Days on Earth e One More Time With Feeling. O imaginário de Nick Cave está repleto de violência, perversão, dor, remorso e culpa, sentimentos que nas canções redime pela arte e aligeira pelo humor. Interroguei-me por vezes se Cave não canaliza obscuramente o inconsciente colectivo da Austrália, que antes de se tornar num paraíso cool do surf, do shiraz e da cozinha de fusão, foi uma prisão e um desterro, colonizada a golpe de chicote por soldados e criminosos. Mas decidi que não, rejeitei essa hipótese primária. A inspiração é mais profunda. Jorra directamente da busca espiritual, na fronteira precária entre o bem e o mal.
O meu segundo contacto com Nick Cave foi o seu álbum The Good Son, que saiu em 1990. Comprei o disco pela capa: a inesperada fotografia de Cave ao piano, rodeado por quatro louras angélicas meninas de saiote, musas perversas que lhe sopravam inspiração. Nada na memória da violência primal do seu primeiro concerto me preparava para as majestosas e épicas baladas que abrem esse disco — Foi na Cruz, The Good Son, The Weeping Song — e a maravilhosa Lament, um dos primeiros exemplo da canção de amor na sua discografia, género que Cave viria depois a praticar com virtuosismo e mestria. I’ll miss your urchin smile, your orphan tears / Your shining prize, your tiny cries / Your little fears / I’ll miss your fairground hair / Your seaside eyes / Your vampire tooth, your little truth / And your tiny lies1.
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