Se o mundo fosse claro, a arte não existiria.
Albert Camus
Se reunissem todas as frases que eu disse, perceberiam
que sou um idiota e deixariam de fazer-me perguntas.
Andy Warhol
A matriz da arte contemporânea, a sua «cena primitiva», que é o urinol de Marcel Duchamp, foi objecto de uma exclusão que permite a referência a uma manifestação da estupidez que é a «estupefacção». O pasmo que desde então muitas obras de arte foram capazes de provocar nos espectadores torna pertinente e até necessária a evocação da estupidez tanto na recepção crítica como no confronto do público com a arte contemporânea.
Se o mundo fosse claro, a arte não existiria.
Albert Camus
Se reunissem todas as frases que eu disse, perceberiam
que sou um idiota e deixariam de fazer-me perguntas.
Andy Warhol
Estupefacções necessárias
O dicionário etimológico da língua italiana, na entrada «estupidez», remete para uma outra palavra: «estupefacção». Estúpido é aquele que, confrontado com um elemento novo, não é capaz de assimilá-lo e se limita a ficar estupefacto1. A estupidez é, portanto, inimiga da inovação, pois só aceita e contempla aquilo que o senso comum já aprovou. O estúpido precisa de certezas e não tolera a dúvida, o seu olhar está sempre voltado para o passado, através do qual avalia e julga o presente. Aceitando a bondade desta definição, é lícito perguntar qual o papel que teve (e tem) a estupidez no mundo da arte, e de que modo interagiu com a inteligência. Os leitores perdoar-me-ão se citar, como primeiro exemplo, uma obra bem conhecida, central para qualquer discurso sobre a arte contemporânea.
Em 1917, Marcel Duchamp pede a uma amiga para entregar na sede do Grand Central Palace de Nova Iorque a obra de um tal Richard Mutt: um urinol, virado ao contrário e assinado. A Society of Independent Artists, de que Duchamp é membro, rejeita a obra, embora os estatutos da associação previssem que qualquer pessoa, pagando uma soma muito modesta, poderia participar. A exposição é inaugurada a 10 de Abril daquele ano, com mais de duas mil obras. Fountain, de Richard Mutt, graças à sua exclusão, supera-as a todas, tornando-se um ícone da arte contemporânea2.
Mas que teria acontecido se a Society of Independent Artists tivesse aceitado a obra de Mutt-Duchamp? E se o júri — nascido, de resto, com a intenção de modernizar o panorama da arte — possuísse uma dose suficiente de ironia para compreender o significado do ready made? Em suma, qual teria sido o resultado se não tivessem sido tão estúpidos? É difícil dizer. Provavelmente, alguém se teria, ainda assim, escandalizado, mas também é possível que, na grande confusão de uma exposição tão rica, aquele objecto tivesse sido visto como uma simples provocação, suscitando hilaridade, ou, quem sabe, acabando mesmo por passar despercebido. Se a provocação tivesse falhado, talvez Duchamp tivesse regressado à sua antiga paixão, o xadrez3. Finalmente, quanto à arte contemporânea, quem sabe por que outros caminhos teria enveredado. Ao invés, a operação conceptual de Duchamp pôde contar, desde o início, com uma estupidez necessária, ou até mesmo obrigatória, em relação à qual devêssemos mostrar, talvez, uma certa gratidão. A comissão que rejeitou Fountain mereceria ao menos ser citada, a título próprio, como co-autora desta já mítica performance conceptual4.
Mas a história não acaba aqui. Também hoje os artistas podem contar com o contributo de quem ainda é capaz de ficar estupefacto e indignado — não com as novidades no mundo da arte, mas ainda, à distância de cem anos, com a performance de Duchamp, maldizendo-a e atribuindo-lhe a responsabilidade de uma destruição dos chamados valores fundadores da arte:
Inúmeros escritos foram dedicados ao urinol de Duchamp. Recordemos aqui que a pia de loiça, inclinada num ângulo de 90º, parece à primeira vista a paródia perversa da concha que contém Afrodite, nascida da espuma marinha e do esperma do deus. Da sua beleza, sob o jacto de urina, não restam senão «ruínas». Mas substituir o sémen divino pelos dejectos do corpo humano equivale a propor que a geração já não tem nada que ver com Eros e regressou à cloaca primitiva. A imundície do jacto e a espuma da urina são a afronta dirigida à venustidade [Clair, 2004: 28].
A crítica à suposta banalidade da arte contemporânea nasce de um clamoroso mal-entendido, que a identifica com a estupidez, com a vacuidade e a ausência de significado. A banalidade da Pop Art é, antes, exactamente o contrário: um excesso de sentido, uma abertura a todos os significados possíveis.
Moralistas, passadistas e nostálgicos acometidos de estupefacção, indignados com o caminho em que a arte contemporânea, por culpa de Duchamp, foi fatalmente lançada, choram ainda hoje o desaparecimento de um valor essencial, indissociavelmente ligado ao conceito de verdade: a beleza. A verdade da beleza, para esta escola de pensamento, consiste no respeito pela regra, que serve de garantia da moralidade da obra. Quanto à beleza da verdade, creio que se trata do comprazimento de quem observa os fenómenos que o circundam e ignora, preguiçosa e deliberadamente, a sua inevitável e fértil complexidade5. Para os anacronistas estúpidos, a arte era, em tempos, a expressão do «sémen divino», capaz de produzir somente beleza (Afrodite); mas hoje só é capaz de produzir banalidade. Aquilo que escapa aos passadistas é que, desde sempre, a suposta beleza de uma obra não tem nada que ver com as suas características intrínsecas, mas com o olhar de quem a observa e julga. Tenho a forte suspeita de que se Jean Clair tivesse vivido na época de Caravaggio teria preferido a pintura de Annibale Carracci, achando escandaloso o grande traseiro de cavalo que ocupa o primeiro plano na Conversão de São Paulo (1601). Estou pronta a apostar que para o crítico passadista, pelo contrário, Caravaggio encarna um ideal de beleza absoluto, capaz de transmitir, através da técnica da luz e da sombra, a dimensão espiritual da arte6.
Além de Marcel Duchamp, os passadistas também implicam sempre com Andy Warhol:
A arte moderna foi uma magnífica utopia de Baudelaire a Pound, de Manet a Picasso, mas de Warhol em diante foi banalizada, degradada, reduzida à repetição oca de um certo espírito Duchamp. Na chamada arte contemporânea, a provocação reduz-se a uma simples exibição de lugares comuns extraordinariamente banais7.
A crítica à suposta banalidade da arte contemporânea nasce de um clamoroso mal-entendido, que a identifica com a estupidez, com a vacuidade e a ausência de significado. A banalidade da Pop Art é, antes, exactamente o contrário: um excesso de sentido, uma abertura a todos os significados possíveis. Quando muito, a banalidade é simplesmente a condição límbica de um objecto, antes de alguém descobrir as suas potencialidades. Talvez as palavras de um dos protagonistas da grande época da Pop Art, Claes Oldenburg, não tenham sido bem compreendidas: «Sou a favor de uma arte que vai buscar as suas formas à vida, que se contorce e se estende impossivelmente, e acumula e cospe e escorre, e é doce e estúpida [itálico meu] como a própria vida» [Calvesi e Boatto, 2008: 27]. Para Oldenburg, a estupidez (da arte ou da vida) provoca uma espécie de síndrome de Stendhal em versão contemporânea: uma fulguração estética, mas fora do museu, no meio dos dejectos, nos supermercados, pelas ruas ou nos restaurantes de fast food. O seu gigantesco hambúrguer (Floor Burger, 1962), justamente por causa da sua banalidade, deixa espaço (como O Grande Vidro de Marcel Duchamp) a todas as leituras possíveis. Com a Pop Art começa uma época bem descrita por esta frase de Andy Warhol: «O mistério tinha desaparecido. Mas a diversão acabara de começar» [Warhol, 2004: 45]. «O mistério», entendido aqui como a sacralidade da arte, como uma verdade revelada apenas a uns poucos eleitos, tinha desaparecido e as portas da arte escancaravam-se à banalidade da vida quotidiana, em toda a sua contraditória e divertida riqueza [Restany, 2007]. A origem do adjectivo «banal» torna a frase de Warhol ainda mais pertinente. A palavra deriva do francês banal, isto é, «que pertence ao ban» (palavra próxima de «bando»), ou seja, a uma circunscrição feudal. O termo banal alude, portanto, a uma extensão ao povo de algo que pertence ao senhor feudal. No pensamento passadista, o senhor feudal da arte é aquele que tem o poder de estabelecer aquilo que é arte e aquilo que não pode sê-lo. O ready made Dada e Pop, pelo contrário, declara a potencial inclusão no mundo da arte de tudo o que seja capaz de produzir um discurso, mostrando a beleza de que é capaz justamente em virtude da banalidade. A persistência do conceito de beleza na arte contemporânea é um fenómeno objectivo. A batalha a que tem dado, desde sempre, origem não é entre quem a invoca e quem a quer destruir, mas entre quem pretende defender as suas fronteiras e quem, pelo contrário, através da inovação, as estende a novos territórios [Danto, 2008]. Podemos dizer que os grandes inovadores da arte, de Caravaggio a Pollock, quiseram deliberadamente criar qualquer coisa de feio, isto é, diferente da ideia de belo imposta pelas respectivas épocas, demonstrando que a fealdade, no fim de contas, não é mais do que a beleza do futuro.
Os artistas são estúpidos?
A arte coloca-se para além das categorias da estupidez e da inteligência, mostrando-se decididamente mais interessada em definições mais pertinentes e, sobretudo, mais eficazes no que respeita ao mercado. As acções e as declarações dos artistas, fora das fronteiras da arte, podem parecer insensatas e estúpidas, pois só são compreensíveis graças a códigos de acesso internos ao sistema. O público, ao transpor a soleira de uma galeria de arte ou de um museu, sabe que tudo o que esses espaços contêm tem de ser arte, ao passo que aquilo que deixa atrás das costas não o é. Dentro da «moldura» da arte [Goffman, 2013], as regras do senso comum mudam e, por isso, os comportamentos e os juízos do público não podem ser os adoptados no mundo exterior:
Todos os jogos pressupõem a aceitação temporária, se não de uma ilusão (esta última palavra não significa, de resto, nada mais do que entrada em jogo: in-lusio), pelo menos de um universo fechado, convencional e, sob determinados aspectos, fictício. O jogo pode não consistir, já, em desenvolver uma actividade ou viver um destino num contexto imaginário, mas em tornarmo-nos nós mesmos numa personagem ilusória e comportarmo-nos de modo correspondente. [A personagem] nega, altera, abandona temporariamente a própria personalidade para fingir uma outra [Caillois, 1981: 36].
Um exemplo: imaginemos que encontramos, na rua, um homem vendado e vestido de negro, parado em frente a um muro. Alguém pouco distante lança sobre ele, com força, bolas de borracha. O homem de negro não tenta evitá-las, ficando ligeiramente encolhido. Em seu redor, um grupo de pessoas assiste à cena com um ar interessado, mas não intervém para ajudá-lo. Imaginemo-nos, agora, numa galeria de arte, em frente a um vídeo de 1970 em que o body artist americano Vito Acconci encena a performance Three Adaptation Studies.
[...]
*Tradução de Bernardo Ferro
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