Registo
Terrenos e territórios dos longos anos 60
Kristin Ross

Os efeitos do Maio de 68 podem ser encontrados em muitas formas actuais de luta e de insurreição, onde se manifesta uma nova consciência política, prova de que esse movimento que eclodiu em Paris há precisamente 50 anos teve uma enorme força mobilizadora e não pode ser reduzido a uma dimensão inócua: é o que mostra a historiadora americana Kristin Ross.

EEGSG

 

 

Nos finais dos anos 90 — começava eu então a pensar o Maio de 68 — prevalecia em França uma interpretação do movimento que pode resumir-se a isto: o capitalismo moderno, longe de representar uma traição a Maio, representaria afinal os seus mais profundos anseios. Das razões políticas que levaram centenas de milhares de pessoas de todas as classes a descer à rua e a fazer uma greve geral que paralisou o país, não se falava. Os três alvos políticos das manifestações — gaullismo, capitalismo e imperialismo — estavam esquecidos. A greve mais importante da história do sindicalismo francês foi reduzida a um fait-divers banal; o maior movimento da história moderna em França era visto agora como uma rapaziada de estudantes sem consequências de maior, que fracassara afinal. E a todo um conjunto de insurreições à escala mundial, tão dispersas pelos confins do mundo que definiram uma conjuntura, como Immanuel Wallerstein não se cansa de realçar — a oposição internacional ao imperialismo americano e à guerra do Vietname — substituiu-se um internacionalismo de pacotilha que as hormonas ou a biologia explicariam, e se cristalizava numa faixa etária: a «geração global da revolta libertária»1.

Como foi possível esvaziar um momento de agitação política tão disseminada, confiná-lo a ser uma simples fase no inevitável processo da modernização capitalista? Os meus livros pretendem ser uma intervenção sobre situações particulares, e o objectivo, nessa altura, não era tanto separar o verdadeiro do falso na narrativa sobre aqueles anos, procurando estabelecer alguma verdade objectiva e desapaixonada, mas, sim, captar o que motivou certos relatos e escrever a história dessas motivações. Porque, na verdade — e a questão reside nisto — qualquer análise, qualquer evocação, qualquer representação dos anos 60 envolve o presente ou transmite um juízo sobre a a situação actual. É isto que dá força (e sempre deu) ao que chamamos os anos sessenta. Quando somos confrontados com um qualquer enquadramento, com uma qualquer imagem dos anos 60, ou até com uma alusão passageira, temos de nos colocar a pergunta: por que lutamos hoje, o que defendemos agora?

A doxa do Maio de 68, com a qual me confrontava no final da década de 90, e as imagens e frases que a reforçavam, foram construídas sobretudo durante os anos 80 e a tempo do vigésimo aniversário, por uma confluência de forças. Na linha da frente estavam os grandes meios de comunicação, apoiados pela própria instituição francesa da comemoração — de novo muito activa, aliás, como escrevi — e pelos arrependidos da esquerda convertidos aos imperativos do mercado. A presença destes últimos, os ungidos dos media, prontos a exibir, num abrir e fechar de olhos, a renúncia aos seus erros de juventude num tom que oscilava vertiginosamente entre a vaidade de si mesmos e o arrependimento mais abjecto, ainda era muito evidente no trigésimo aniversário. Vejo agora, e não era claro para mim na altura, que ao imenso trabalho ideológico realizado nesses anos para construir a memória oficial veio somar-se uma espécie de americanização da memória do Maio de 68 francês. A França, afinal, andava nesse tempo interessada em acomodar-se à ascendência de uma ortodoxia neoliberal americana, que via na igualdade um corpo de princípios que podiam ser interpretados por um tribunal e não o que ela é de facto: uma questão profundamente política. Nos Estados Unidos, uma ofensiva generalizada contra a igualdade, sob a capa de uma crítica do igualitarismo, começara a fazer da igualdade um sinónimo de uniformidade, de restrição ou alienação da liberdade, ou de um ataque ao livre funcionamento do mercado. Num tal clima político, a vasta aspiração política à igualdade que foi o movimento de Maio — a união entre a contestação intelectual e a luta dos trabalhadores — teria de ser esquecida, ou afogada num mar de imagens «contra-culturais» mais reminiscentes de Haight-Ashbury que da fábrica ocupada da Sud-Aviation.

Como foi possível esvaziar um momento de agitação política tão disseminada, confiná-lo a ser uma simples fase no inevitável processo da modernização capitalista?

vreveqrv

 

 

Mas também havia brechas na armadura da versão oficial — vislumbres de um Maio de 68 diferente, que não podia ser contido pelos clichês tão cuidadosamente mobilizados para manter a política à distância. As greves de trabalhadores que paralisaram o país durante semanas no Inverno de 1995, e depois as manifestações antiglobalização em Seattle e Génova, dissiparam a sensação de esquecimento que cobria o Maio de 68, despertando o vigoroso anticapitalismo adormecido durante os anos 80. Significa isto exactamente que se operara uma mudança no que era permitido ver, ouvir e dizer sobre um passado recente. As greves não só forçaram o governo a recuar no ataque às pensões de reforma dos trabalhadores dos transportes, como alteraram o grau e a escala em que os anos 60 poderiam habitar a imaginação e as memórias; transformaram o que era de facto entendido dando nomes diferentes ao que podia agora ser entendido de uma nova maneira.2

Creio que hoje acontece algo de muito semelhante: uma reconfiguração, em escala semelhante, da memória política dos anos 60 que faz com que certas figuras de renome se ausentem e outras, menos conhecidas talvez, se tornem visíveis. Ao reler o meu livro, percebi com surpresa que tinha feito uma quase profecia; escrevi eu então que havia de chegar o dia em que veríamos um agricultor autodidacta, como Bernard Lambert, ser uma figura mais adequada às aspirações e ao sucesso do Maio francês do que um Daniel Cohn-Bendit, e o que passou despercebido em Nantes teria um eco maior e mais directo nos anseios políticos contemporâneos do que tudo o que se viu no palco de Paris. Penso que, de facto, esse dia chegou. E nada tem a ver com as comemorações de mais um decénio. Tem muito mais a ver com a recente proliferação, à escala mundial, de lutas territoriais, lutas por terras, de movimentos que defendem a terra e quem a trabalha, movimentos que têm a particularidade de estar ancorados num lugar.

Nas Américas, desde a oposição à construção de uma barragem no rio Xingu, no Brasil dos anos 80, passando por Chiapas, até, recentemente, à tribo sioux de Standing Rock, que defende a sua terra contra a passagem de um oleoduto nos dois estados do Dakota, este tipo de movimento localizado tende a caracterizar-se por ter bases e liderança indígenas. Entretanto na Europa, no caso da ocupação (zad) que bloqueou a construção de um aeroporto internacional em propriedades rurais, perto de Notre-Dame-des-Landes, em França, ou na tentativa de impedir a construção de uma linha para comboios de alta velocidade através dos Alpes, no norte da Itália, os movimentos criaram-se através da união de pessoas de culturas e práticas muito diferentes, sem que um grupo social ou étnico tomasse a liderança. Em conjunto, porém, estes movimentos de defesa semi-secessionária do território parecem assinalar o nascimento de uma nova sensibilidade política. Mas também levantam questões sobre algumas ideias-feitas e imagens-feitas dos longos anos 60 — os anos de insurreição que medeiam entre a revolução cubana, em finais dos anos 50, e os meados dos anos 70. Foram estes movimentos que alteraram drasticamente a ideia, por exemplo, de que os acontecimentos dos anos 60 tiveram lugar apenas, ou principalmente, nas ruas das grandes cidades, Paris, Nova Iorque, Cidade do México, ou que os grafitti poéticos dos estudantes foram a melhor expressão do desejo de mudanças sistémicas sentido pelas populações. O movimento de Maio de 68 pode ter começado nas cidades, mas a sua inteligência e o seu futuro tendiam para a terra, e para a Terra.

Há poucos meses, num pequeno bocage dos arredores de Nantes, celebrou-se uma vitória histórica que lança nova luz sobre o que resta dos tempos de 68. Numa singular e improvável aliança, agricultores, okupas, autoridades eleitas, naturalistas e cidadãos uniram-se para impedir a construção de um aeroporto internacional em pouco mais de uma centena de hectares de terra agrícola, e conseguiram, de facto, vencer. Tinham forçado o Estado a recuar com um projecto que estava em marcha desde 1967. A espantosa duração desta luta, que se iniciou quando os agricultores da região onde devia construir-se um aeroporto se recusaram a vender as terras, e se foi expandindo à medida que aos agricultores se juntavam os moradores da cidade e, depois de 2008, os okupas, fez do movimento de Notre-Dame-des-Landes a mais longa batalha da história francesa moderna. Os violentos recontros, especialmente em 2012, entre os residentes da zad (zone à defendre), como veio a ser chamada, e a polícia que viera evacuar a zona, fizeram esquecer a longa história do movimento e o facto de alguns dos primeiros agricultores-activistas terem tido a sua formação política no movimento Paysans Travailleurs, activo na região de Loire-Atlantique nos anos 60 e 70 — um movimento de que o agricultor que já mencionei, Bernard Lambert, foi um dos fundadores. Este grupo, que se formou em resposta ao influxo muito directo e dirigido de capital industrial e financeiro na agricultura depois de 1965, via os agricultores ocupando a mesma posição estrutural dos trabalhadores urbanos em relação à modernidade capitalista. Empenhados em responder ao apelo de Lambert para «descolonizar as províncias» e criar um «poder regional real», o movimento Paysans Travailleurs foi também uma excepção ao criar novas práticas disruptivas fora do âmbito dos sindicatos nacionais já existentes. Nas palavras de Lambert, «on avait perdu l’habitude de demander à nos pères spirituels de Paris ce qu’il fallait penser des actions qu’on menait»3 (perdemos o hábito de perguntar aos nossos reverendos confessores de Paris o que pensar das nossas próprias acções).

Tudo indica que a zad se filia claramente nos anos 60; o movimento cresceu organicamente a partir da esquerda radical agrária inserida, nesse tempo, na região do Loire-Atlantique, na França ocidental. Para mais, a vitória da zad deu a outro movimento dos longos anos 60 uma nova visibilidade: a batalha que, durante dez anos, os criadores de ovelhas da região do Larzac, na França central, travaram contra a tentativa de expropriação das terras, por parte do Estado, para aí se estabelecer um campo de manobras do exército.

Em 1971, o governo francês decidiu ampliar um campo de manobras militares numa outra região agrícola relativamente pobre, isolada e despovoada — o Larzac, no département de Sud-Aveyron — com o argumento de que o projecto contribuiria tanto para a actividade comercial na região como para a defesa da Europa. Os agricultores do planalto — incluindo os extremamente pobres, que praticavam uma agricultura tradicional e de subsistência, e os agricultores «modernistas», com propriedades maiores — revoltaram-se e entraram em confronto com o exército. Pouco depois, um terceiro grupo, o dos paysans installés, começou a chegar ao Larzac em apoio ao movimento, ocupando — muitas vezes ilegalmente — as terras que o governo pretendia anexar e instalando-se em edifícios que eram propriedade do exército. Em 1973 realizou-se a primeira concentração massiva de apoiantes do movimento; como observou um participante, desde que há memória foi esta provavelmente a primeira vez que mais de cem mil pessoas se deslocaram propositadamente de todas as partes do país para se reunirem num determinado lugar. Numa dessas concentrações, no início dos anos 70, Bernard Lambert, dirigindo-se às multidões, evocara a Comuna de Paris de 1871 ao proclamar: «Jamais plus les paysans ne seront des Versaillais» (os camponeses nunca mais serão Versaillais4). Seguiram-se dez anos de hábeis e persistentes batalhas jurídicas, destinadas a retardar os projectos do exército. A certa altura, em 1978, um grupo de agricultores foi a pé do Larzac até Paris com os seus rebanhos, que entraram com eles na sala de audiências. Quando foi eleito em 1981, François Mitterrand sentiu-se na obrigação de ter um gesto de boa vontade para com a esquerda radical que havia trabalhado arduamente para salvar o Larzac, e manteve a promessa que fizera no planalto em 1974: o exército seria obrigado a abandonar o projecto de ampliação do campo militar.

Em meados de Janeiro de 2018, quando o governo anunciou que abandonava o projecto de construção de um aeroporto em Notre-Dame-des-Landes, o movimento dos anos 70 no Larzac voltou subitamente à memória de quem o vivera e entrou na agenda dos jornalistas de investigação, que não tinham idade para se recordar desse tempo. O Larzac revelava-se como um precursor imediato da zad, fora uma vitória à mesma escala, e, de certa maneira, era um modelo possível das formas como os residentes da zad, que vinham cultivando comunitariamente a terra, poderiam continuar a fazê-lo agora que já não haveria aeroporto. Subitamente, o Larzac surgia não apenas como uma fase tardia e secundária dos longos anos 60 mas como a sua sequência política, cujas aspirações mais profundas só podiam ser plenamente realizadas no presente sob a forma de uma experiência comunista a partir da zad. E, com o ressurgimento do Larzac, tornou-se possível perceber também uma década de lutas exemplares, quase homéricas, que teve início em 1966 quando os agricultores de Sanrizuka, nos arredores de Tóquio — activamente apoiados pela Zengakuren (federação nacional japonesa das estruturas estudantis), um movimento de extrema-esquerda —, se bateram contra a expropriação das suas terras de cultivo para dar lugar ao aeroporto de Narita. Foram estas as lutas que melhor caracterizaram os «anos 60 mundiais».

As lutas do Larzac e de Sanrizuka podem ser hoje consideradas as batalhas que, na segunda metade do século XX, reconfiguraram as linhas de conflito de toda uma época. Ou, dizendo de outro modo, os anos 60 são, para além de tudo o que tenham sido, um outro nome para o momento em que pessoas de todo o mundo começaram a perceber que a tensão entre a lógica do desenvolvimento e a lógica das bases ecológicas da vida se tornara a principal contradição do seu quotidiano. O que estes movimentos ajudaram a iniciar, e o que a zad confirma, é que a defesa das condições de vida no planeta passou a ser o novo e incontroverso patamar de significado de todas as lutas políticas.

Os anos 60 são, para além de tudo o que tenham sido, um outro nome para o momento em que pessoas de todo o mundo começaram a perceber que a tensão entre a lógica do desenvolvimento e a lógica das bases ecológicas da vida se tornara a principal contradição do seu quotidiano.

weff

 

 

erver

Autocolantes da campanha contra a construção do aeroporto em Notre-Dame-des-Landes

 

Sanrizuka, Larzac e a zad têm em comum uma série de práticas e de características além da utilização da ocupação como forma de acção directa — e além do seu envolvimento directo na produção de meios de subsistência. Uma dessas práticas é o acto de defender em si mesmo, incorporado na antiga figura do paysan e na palavra que o designa — e etimologicamente significa aquele que defende um território. A ideia de defesa, naturalmente, predomina também numa palavra que há dois anos entrou no dicionário da língua francesa: zad, ou zone à defendre. Os agricultores japoneses de Sanrizuka, como já antes os camponeses norte-vietnamitas durante a guerra com os Estados Unidos, foram ao ponto de se enterrar em túneis e trincheiras subterrâneas para impedir a entrada das grandes máquinas de construção civil na sua zona. Numa altura em que o esforço de modernização, liderado pelo Estado, tornou a industrialização acelerada o único valor nacional do Japão, os agricultores reagiram com a convicção de que o aeroporto destruiria os valores essenciais à vida. Em Notre-Dame-des-Landes, depois de 2008, aos agricultores que se recusaram a vender as suas terras uniram-se a população da cidade vizinha e um novo grupo: okupas, e futuros posseiros. Com a chegada dos primeiros okupas de terras, a ZAD (zone d’aménagement différé) tornou-se zad (zona a defender) — e o acrónimo recebeu um novo sentido de combate, dado pelos opositores ao projecto: o que foi perímetro administrativo designava agora um conjunto de precárias linhas de batalha, e o acto de defender substituiu a decisão que mais frequentemente somos chamados a tomar nos dias de hoje — resistir. A história destes movimentos mostra que defender é uma acção mais geradora de solidariedade do que resistir. A resistência significa que a luta, se alguma vez existiu, já foi perdida e só nos resta resistir, impotentes, ao poder esmagador que o adversário agora detém. Por outro lado, defender implica que, do nosso lado, já existe qualquer coisa que possuímos, que valorizamos, que prezamos, e pela qual vale a pena lutar. Os afro-americanos de Oakland e de Chicago, nos anos 60, já o sabiam quando o Black Panther Party for Self-Defense proclamou os bairros negros e a negritude em si mesma como valores dignos de serem defendidos. A atribuição de valor, como a palavra que designa esse acto, tem interesse e força porque representa uma forma de transvaloração: atribuímos um valor porque esse valor não se mede pelo valor dos mercados, dos imperativos de Estado, ou das hierarquias sociais. No caso do Larzac, um porta-voz de Michel Debré, então ministro da Defesa, caracterizou a zona escolhida para a ampliação do campo militar como um planalto calcário desolado, povoado, segundo disse, por «alguns camponeses, não muitos, que vagamente criam umas ovelhas e vivem praticamente na Idade Média»5. Quanto às terras destinadas ao aeroporto de Notre-Dame-des-Landes, eram sempre descritas, nos primeiros documentos governamentais, como quase desertas.

Muitas vezes o gesto de defesa inicia-se quando se atribui um valor, especialmente um valor excessivo, ao que não se pensava que o tivesse — à maneira, como já antes escrevi, dos communards de Paris em 1871 e do seu «luxo comunitário»6. Ao atribuirmos valor, ao designarmos como digno de ser defendido o que não pertence à hierarquia de valores existente, não pedimos equivalência ou justiça dentro de um sistema que já existe, como o sistema de mercado (é o que fazemos quando exigimos uma distribuição mais justa). Não pedimos a parte que nos cabe na divisão pré-estabelecida do bolo. Luxo comunitário significa que todos têm direito não só à parte que lhes cabe, mas à parte que lhes cabe do melhor. Quando se atribui valor, põe-se em questão justamente os modos pelos quais se mede a prosperidade, o que a sociedade reconhece e aprecia, o que a sociedade considera como riqueza.

E o que se defende, claro está, muda com o tempo. Voltando ao Larzac, a Sanrizuka e à zad de Notre-Dame-des-Landes, estas são o que os maoistas costumavam chamar «as longas lutas» — lutas que se transformam ao mesmo tempo que perduram, e cuja duração surpreendentemente longa tem tudo a ver com o facto de a causa que defendem não ser negociável. Um aeroporto é construído ou não é. As terras de cultivo ou são cultivadas ou tornam-se outra coisa: urbanizações, por exemplo, ou um campo de treino militar. Se antes o que era defendido podia ser um ambiente sem poluição, uma terra de cultivo, ou até mesmo um modo de vida, o que se defende aqui, à medida que a luta se aprofunda, inclui todos os novos laços sociais, laços afectivos, solidariedades, novas relações físicas com o território, todas as complexidades da vida criadas por essa luta.

E é a solidariedade, é a fusão de grupos e indivíduos muitas vezes tão diversos, que caracterizam movimentos como estes. A improvável aliança de Sanrizuka surgiu do encontro entre agricultores, que começaram por defender o seu modo de vida mas aprenderam a verdadeira violência de que o Estado era capaz, e os estudantes e operários radicais que nunca haviam pensado onde e como se produzia o seu sustento. A força do movimento do Larzac estava na diversidade de pessoas e de ideologias que congregou: activistas antimilitaristas e pacifistas (objectores de consciência), separatistas da Occitânia, partidários da não-violência, revolucionários que queriam derrubar o estado burguês, anticapitalistas, anarquistas e outros esquerdistas, para além de ecologistas. Mas se o Larzac reuniu de facto uma diversidade de grupos sociais e tendências políticas sob a mesma bandeira, nunca se pôs em questão a liderança fundamental das famílias de agricultores, que sempre tinham encabeçado o movimento. Os simpatizantes que apoiavam politica e financeiramente os agricultores — geralmente à distância, mas esporadicamente em grandes manifestações de centenas de milhares de pessoas que se deslocavam ao planalto — apoiavam a ligação visceral dos agricultores à sua terra e ao seu ofício. Na zad, porém, nenhum desses grupos esteve ou está numa posição de liderança; e este facto, por si, criou um movimento muito diferente e muito interessante, que, no seu desejo de manter unidas as diversas mas iguais componentes que o compõem, exige, como diz um zadaista, «mais tacto do que táctica»7.

A Mauvaise Troupe, um colectivo de autores da zad, chamou art de la composition a esta arte de criar e manter a solidariedade por largos períodos de tempo e perante inúmeros desafios, a partir dos encontros improváveis entre pessoas de diferentes ideologias, identidades e crenças. Nada no modo como estas pessoas se unem e permanecem unidas ao longo do tempo se converte numa ortodoxia final — pelo contrário, cria-se um ecletismo interno contínuo. Composição é apenas outra palavra para o inesperado encontro de dois mundos muito diferentes e para a comunidade assim criada. Uma versão efémera dessa composição ocorreu não apenas em Nantes, mas também no cenário mais conhecido de Nanterre. Henri Lefebvre costumava dizer que o Maio de 68 só aconteceu porque os estudantes de Nanterre eram obrigados a atravessar os bidonvilles de argelinos para chegar à universidade. A proximidade vivida por esses dois mundos — um campus funcionalista e os bairros de lata dos imigrantes — e as trajectórias que levaram os estudantes a organizar-se nos bidonvilles e os argelinos a trabalhar nos estaleiros de construção civil dentro do campus, encontros precários e efémeros, com todas as incertezas, desejos, empatias, ignorância e desilusões que sempre marcam tais encontros, estão no centro da subjectividade política que emergiu no Maio de 68. São o laboratório de uma nova consciência política.

*Tradução de Maria Jorge de Freitas

1. A expressão foi criada pela autora no artigo «Establishing Consensus: May ’68 in France as Seen from the 1980s», Critical Inquiry, vol. 28, 3, Spring 2002. NdT
2. Cf. Kristin Ross, May ’68 and its Afterlives, Chicago: University of Chicago Press, 2002.
3. Bernard Lambert citado em: Bernard Lambert, Françoise Bourquelot and Nicole Mathieu, «Paroles de Bernard Lambert: un paysan révolutionnaire», Strates 4, 1989, p. 6.
4. Designação dada pela Comuna de Paris ao governo provisório de Adolphe Thiers, que se retirara para Versalhes, e aos seus apoiantes. NdT
5. «Les paysans cultiveront le Larzac jusqu’en 2083», Le Monde, 18 de Julho de 2013.
6. Cf. Kristin Ross, Communal Luxury, London: Verso, 2015.
7. Collectif Mauvaise Troupe, Contrées: Histoires croisées de la zad de Notre-Dame-des-Landes et de la lutte No TAV dans le Val Susa: Éditions de l’éclat, 2016. Edição inglesa: The Zad and NoTAV: Territorial Struggles and the Making of a New Political Intelligence, tradução e introdução de Kristin Ross, London: Verso, 2018, p. XXII.