Mas também havia brechas na armadura da versão oficial — vislumbres de um Maio de 68 diferente, que não podia ser contido pelos clichês tão cuidadosamente mobilizados para manter a política à distância. As greves de trabalhadores que paralisaram o país durante semanas no Inverno de 1995, e depois as manifestações antiglobalização em Seattle e Génova, dissiparam a sensação de esquecimento que cobria o Maio de 68, despertando o vigoroso anticapitalismo adormecido durante os anos 80. Significa isto exactamente que se operara uma mudança no que era permitido ver, ouvir e dizer sobre um passado recente. As greves não só forçaram o governo a recuar no ataque às pensões de reforma dos trabalhadores dos transportes, como alteraram o grau e a escala em que os anos 60 poderiam habitar a imaginação e as memórias; transformaram o que era de facto entendido dando nomes diferentes ao que podia agora ser entendido de uma nova maneira.2
Creio que hoje acontece algo de muito semelhante: uma reconfiguração, em escala semelhante, da memória política dos anos 60 que faz com que certas figuras de renome se ausentem e outras, menos conhecidas talvez, se tornem visíveis. Ao reler o meu livro, percebi com surpresa que tinha feito uma quase profecia; escrevi eu então que havia de chegar o dia em que veríamos um agricultor autodidacta, como Bernard Lambert, ser uma figura mais adequada às aspirações e ao sucesso do Maio francês do que um Daniel Cohn-Bendit, e o que passou despercebido em Nantes teria um eco maior e mais directo nos anseios políticos contemporâneos do que tudo o que se viu no palco de Paris. Penso que, de facto, esse dia chegou. E nada tem a ver com as comemorações de mais um decénio. Tem muito mais a ver com a recente proliferação, à escala mundial, de lutas territoriais, lutas por terras, de movimentos que defendem a terra e quem a trabalha, movimentos que têm a particularidade de estar ancorados num lugar.
Nas Américas, desde a oposição à construção de uma barragem no rio Xingu, no Brasil dos anos 80, passando por Chiapas, até, recentemente, à tribo sioux de Standing Rock, que defende a sua terra contra a passagem de um oleoduto nos dois estados do Dakota, este tipo de movimento localizado tende a caracterizar-se por ter bases e liderança indígenas. Entretanto na Europa, no caso da ocupação (zad) que bloqueou a construção de um aeroporto internacional em propriedades rurais, perto de Notre-Dame-des-Landes, em França, ou na tentativa de impedir a construção de uma linha para comboios de alta velocidade através dos Alpes, no norte da Itália, os movimentos criaram-se através da união de pessoas de culturas e práticas muito diferentes, sem que um grupo social ou étnico tomasse a liderança. Em conjunto, porém, estes movimentos de defesa semi-secessionária do território parecem assinalar o nascimento de uma nova sensibilidade política. Mas também levantam questões sobre algumas ideias-feitas e imagens-feitas dos longos anos 60 — os anos de insurreição que medeiam entre a revolução cubana, em finais dos anos 50, e os meados dos anos 70. Foram estes movimentos que alteraram drasticamente a ideia, por exemplo, de que os acontecimentos dos anos 60 tiveram lugar apenas, ou principalmente, nas ruas das grandes cidades, Paris, Nova Iorque, Cidade do México, ou que os grafitti poéticos dos estudantes foram a melhor expressão do desejo de mudanças sistémicas sentido pelas populações. O movimento de Maio de 68 pode ter começado nas cidades, mas a sua inteligência e o seu futuro tendiam para a terra, e para a Terra.
Há poucos meses, num pequeno bocage dos arredores de Nantes, celebrou-se uma vitória histórica que lança nova luz sobre o que resta dos tempos de 68. Numa singular e improvável aliança, agricultores, okupas, autoridades eleitas, naturalistas e cidadãos uniram-se para impedir a construção de um aeroporto internacional em pouco mais de uma centena de hectares de terra agrícola, e conseguiram, de facto, vencer. Tinham forçado o Estado a recuar com um projecto que estava em marcha desde 1967. A espantosa duração desta luta, que se iniciou quando os agricultores da região onde devia construir-se um aeroporto se recusaram a vender as terras, e se foi expandindo à medida que aos agricultores se juntavam os moradores da cidade e, depois de 2008, os okupas, fez do movimento de Notre-Dame-des-Landes a mais longa batalha da história francesa moderna. Os violentos recontros, especialmente em 2012, entre os residentes da zad (zone à defendre), como veio a ser chamada, e a polícia que viera evacuar a zona, fizeram esquecer a longa história do movimento e o facto de alguns dos primeiros agricultores-activistas terem tido a sua formação política no movimento Paysans Travailleurs, activo na região de Loire-Atlantique nos anos 60 e 70 — um movimento de que o agricultor que já mencionei, Bernard Lambert, foi um dos fundadores. Este grupo, que se formou em resposta ao influxo muito directo e dirigido de capital industrial e financeiro na agricultura depois de 1965, via os agricultores ocupando a mesma posição estrutural dos trabalhadores urbanos em relação à modernidade capitalista. Empenhados em responder ao apelo de Lambert para «descolonizar as províncias» e criar um «poder regional real», o movimento Paysans Travailleurs foi também uma excepção ao criar novas práticas disruptivas fora do âmbito dos sindicatos nacionais já existentes. Nas palavras de Lambert, «on avait perdu l’habitude de demander à nos pères spirituels de Paris ce qu’il fallait penser des actions qu’on menait»3 (perdemos o hábito de perguntar aos nossos reverendos confessores de Paris o que pensar das nossas próprias acções).
Tudo indica que a zad se filia claramente nos anos 60; o movimento cresceu organicamente a partir da esquerda radical agrária inserida, nesse tempo, na região do Loire-Atlantique, na França ocidental. Para mais, a vitória da zad deu a outro movimento dos longos anos 60 uma nova visibilidade: a batalha que, durante dez anos, os criadores de ovelhas da região do Larzac, na França central, travaram contra a tentativa de expropriação das terras, por parte do Estado, para aí se estabelecer um campo de manobras do exército.
Em 1971, o governo francês decidiu ampliar um campo de manobras militares numa outra região agrícola relativamente pobre, isolada e despovoada — o Larzac, no département de Sud-Aveyron — com o argumento de que o projecto contribuiria tanto para a actividade comercial na região como para a defesa da Europa. Os agricultores do planalto — incluindo os extremamente pobres, que praticavam uma agricultura tradicional e de subsistência, e os agricultores «modernistas», com propriedades maiores — revoltaram-se e entraram em confronto com o exército. Pouco depois, um terceiro grupo, o dos paysans installés, começou a chegar ao Larzac em apoio ao movimento, ocupando — muitas vezes ilegalmente — as terras que o governo pretendia anexar e instalando-se em edifícios que eram propriedade do exército. Em 1973 realizou-se a primeira concentração massiva de apoiantes do movimento; como observou um participante, desde que há memória foi esta provavelmente a primeira vez que mais de cem mil pessoas se deslocaram propositadamente de todas as partes do país para se reunirem num determinado lugar. Numa dessas concentrações, no início dos anos 70, Bernard Lambert, dirigindo-se às multidões, evocara a Comuna de Paris de 1871 ao proclamar: «Jamais plus les paysans ne seront des Versaillais» (os camponeses nunca mais serão Versaillais4). Seguiram-se dez anos de hábeis e persistentes batalhas jurídicas, destinadas a retardar os projectos do exército. A certa altura, em 1978, um grupo de agricultores foi a pé do Larzac até Paris com os seus rebanhos, que entraram com eles na sala de audiências. Quando foi eleito em 1981, François Mitterrand sentiu-se na obrigação de ter um gesto de boa vontade para com a esquerda radical que havia trabalhado arduamente para salvar o Larzac, e manteve a promessa que fizera no planalto em 1974: o exército seria obrigado a abandonar o projecto de ampliação do campo militar.
Em meados de Janeiro de 2018, quando o governo anunciou que abandonava o projecto de construção de um aeroporto em Notre-Dame-des-Landes, o movimento dos anos 70 no Larzac voltou subitamente à memória de quem o vivera e entrou na agenda dos jornalistas de investigação, que não tinham idade para se recordar desse tempo. O Larzac revelava-se como um precursor imediato da zad, fora uma vitória à mesma escala, e, de certa maneira, era um modelo possível das formas como os residentes da zad, que vinham cultivando comunitariamente a terra, poderiam continuar a fazê-lo agora que já não haveria aeroporto. Subitamente, o Larzac surgia não apenas como uma fase tardia e secundária dos longos anos 60 mas como a sua sequência política, cujas aspirações mais profundas só podiam ser plenamente realizadas no presente sob a forma de uma experiência comunista a partir da zad. E, com o ressurgimento do Larzac, tornou-se possível perceber também uma década de lutas exemplares, quase homéricas, que teve início em 1966 quando os agricultores de Sanrizuka, nos arredores de Tóquio — activamente apoiados pela Zengakuren (federação nacional japonesa das estruturas estudantis), um movimento de extrema-esquerda —, se bateram contra a expropriação das suas terras de cultivo para dar lugar ao aeroporto de Narita. Foram estas as lutas que melhor caracterizaram os «anos 60 mundiais».
As lutas do Larzac e de Sanrizuka podem ser hoje consideradas as batalhas que, na segunda metade do século XX, reconfiguraram as linhas de conflito de toda uma época. Ou, dizendo de outro modo, os anos 60 são, para além de tudo o que tenham sido, um outro nome para o momento em que pessoas de todo o mundo começaram a perceber que a tensão entre a lógica do desenvolvimento e a lógica das bases ecológicas da vida se tornara a principal contradição do seu quotidiano. O que estes movimentos ajudaram a iniciar, e o que a zad confirma, é que a defesa das condições de vida no planeta passou a ser o novo e incontroverso patamar de significado de todas as lutas políticas.
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