Figura
Hans Magnus Enzensberger
Alfonso Berardinelli

O encontro e o diálogo já antigo entre o crítico e ensaísta italiano Alfonso Berardinelli e o poeta, ensaísta e romancista alemão Hans Magnus Enzensberger é um exemplo de afinidade electiva cheia de consequências, por exemplo num livro que tem a autoria de ambos: Che noia la poesia. Pronto soccorso per lettori stressati (2006). Este texto de Berardinelli sobre o Enzensberger ensaísta prolonga esse fecundo encontro.

gerhard richter

Gerhard Richter, Leitura, 1994 © Gerhard Richter (0243)

Poeta filósofo, iluminista céptico, repórter intelectual, crítico da cultura e da sociedade, experimentador de formas e géneros literários, Hans Magnus Enzensberger é, inegavelmente, um polígrafo. E para muitos dos seus leitores talvez seja, acima de tudo, um ensaísta. Na sua obra, consoante o caso, o centro pode estar em qualquer parte: num poema, numa montagem narrativa de documentos, numa recolha de ensaios. A autobiografia, porém, é reduzida ao mínimo. Predomina claramente o discurso público, que oscila entre análises detalhadas e documentadas e um tipo irónico de oratória, muitas vezes em forma de elogio e defesa — ou, pelo contrário, de denúncia e sátira.

Nascido em 1929 em Kaufbeuren, nos Alpes suábios da Baviera, Enzensberger é, sem dúvida, o escritor alemão mais ecléctico e cosmopolita da sua geração. Toda a sua obra exibe as marcas de um enciclopedismo cultural e literário muito próprio. Entre os seus escritos mais conhecidos contam-se os poemas de Mausoléu (1976) e O naufrágio do Titanic (1978), a montagem de documentos O breve Verão da anarquia (1972), sobre a Guerra Civil de Espanha, as reportagens de Ai, Europa (1987) e os livros de ensaios A grande migração (1992) e Perspectivas sobre a guerra civil (1993).

Poeta-ensaísta. Poeta e ensaísta. Para exercitar o seu talento literário, Enzensberger precisou sempre de conhecimentos, competências, reflexões, emoções intelectuais, agressividade crítica. Os seus ensaios foram mostrando, cada vez mais, uma escansão, uma tessitura rítmica, uma tonalidade vocal um pouco teatral e ironicamente oratória. As poesias e poemas, por seu turno, apresentam muitas vezes uma construção aforística e dialéctica.

A variedade, a pluralidade, a mobilidade dos pontos de vista, das formas de conhecimento, dos saberes, das linguagens, dos métodos, dos estilos e dos géneros de discurso tornam a produção literária de Enzensberger difícil de definir e etiquetar. A sua obra, como a de qualquer autor, pode ser dividida em diferentes fases. Não é fácil definir todas, mas uma primeira fase vai certamente da sua estreia poética, em 1957, com Defesa dos lobos, até ao início dos anos 70. No centro deste período encontramos duas obras ensaísticas que já se tornaram clássicas: Particularidades (1962) e Política e crime (1964), bem como a fundação da revista Kursbuch.

Os ensaios de Particularidades seguem dois eixos principais: a indústria da consciência e a relação entre poesia e política. São problemas e interesses que ligam o trabalho inicial de Enzensberger tanto a Adorno como a Brecht. Temas herdados — mas Enzensberger procurou ir mais além, superando as definições e as fórmulas precedentes. No ensaio sobre a indústria da consciência, encontramos, desde a primeira página, um jovem Enzensberger declaradamente marxista. No entanto, «a indução social da consciência e a sua mediação apenas se tornam problemas quando assumem uma dimensão industrial. A indústria da consciência é um produto dos últimos cem anos».

O precedente imediato do discurso de Enzensberger é o longo capítulo dedicado à indústria cultural na Dialéctica do Iluminismo, de Horkheimer e Adorno. Mas ao substituir-se o termo «indústria cultural» pelo termo «indústria da consciência» propõe-se algo diferente e mais amplo. Se nos deixarmos desencaminhar por uma consideração predominantemente tecnológica e comercial dos mass media, esqueceremos o conjunto de instituições, profissões e actividades que participam na construção social daquilo a que chamamos consciência:

A moda, o conjunto das actividades formativas, a instrução religiosa e o turismo ainda não são reconhecidos como sectores da indústria da consciência nem investigados enquanto tal. Além disso, seria oportuno estudar, no caso da nova física, da psicanálise, da sociologia, da demoscopia e de outras disciplinas, o modo industrial como é induzida uma consciência «científica». Mas o mais grave é que ainda não nos demos conta com suficiente clareza de que o pleno desenvolvimento da indústria da consciência está iminente — ou, antes, de que esta está em vias de apoderar-se do seu núcleo central: a educação. Por ora, a industrialização do ensino está apenas no início: mas enquanto nos alongamos em debates sobre programas e sistemas escolares, sobre a escassez de docentes e os ciclos de ensino, foram já aperfeiçoados meios técnicos de tal modo avançados que tornam anacrónico qualquer belo discurso sobre a reforma da escola.

O facto (irreversível) de a indústria da consciência ser «a verdadeira indústria-chave do século XX» é ilustrado pela prioridade de que goza no exercício do poder: «Sempre que se verifica um golpe de Estado, uma revolução ou uma insurreição, o novo regime já não começa por apoderar-se das vias de tráfego e da indústria pesada, mas das estações de rádio, das tipografias e dos centros de telecomunicações.»

Enzensberger propõe uma análise que não cria nenhum álibi para os países onde, como na República Democrática Alemã e em toda a Europa de Leste sovietizada, o sequestro das consciências não é obra da indústria privada, mas da indústria pública e do Estado. A divisão da Alemanha em dois blocos, capitalista e socialista, permitia a Enzensberger ver o fenómeno em toda a sua extensão. É tido em conta não apenas o diagnóstico de Horkheimer e Adorno, fundado na experiência americana, mas também o que escreveu Orwell a propósito dos métodos comunistas de destruição das verdades de facto.

"Os ensaios de Particularidades seguem dois eixos principais: a indústria da consciência e a relação entre poesia e política. São problemas e interesses que ligam o trabalho inicial de Enzensberger tanto a Adorno como a Brecht."

Uma análise pessimista termina, porém, com um programa e um desafio. Desde o início e daí em diante, Enzensberger ocupa-se das diferentes ramificações da indústria da consciência. Dedicará ensaios ao jornalismo, ao turismo (incluindo o «turismo da revolução»), ao Partido Comunista de Cuba, às sempre novas tecnologias mediáticas, ao sistema educativo e à burocracia escolar, à ideologia dominante do progresso, às manipulações interessadas da ideia de ciência e às mais recentes utopias biotecnológicas, que tomaram o lugar das velhas utopias políticas. No segundo livro de ensaios dos anos 60, Política e crime, um pouco menos importante que o primeiro, mas literariamente mais variado, Enzensberger descreve e estuda o regime ditatorial de Rafael Trujillo em Santo Domingo; o banditismo na Chicago dos anos 20; a camorra napolitana dos anos 50; o obscuro homicídio de uma rapariga, Wilma Montesi, em Roma, pela mesma altura; a execução, em 1945, do soldado americano Edward D. Slovik, «desertor inocente»; e dedica, por fim, dois ensaios aos «sonhadores do absoluto», às «belas almas do terror» na Rússia dos finais do século XIX e inícios do século XX. Aqui, os pontos de referência são sobretudo alguns livros importantes para a formação de Enzensberger: O Homem Revoltado (1951), de Albert Camus, As Origens do Totalitarismo (1951), de Hannah Arendt, Massa e Poder (1960), de Elias Canetti, e A Obsolescência do Ser Humano (1956), de Günther Anders. O papel central cabe ao ensaio «Reflexões diante de uma gaiola de vidro», título que se refere ao julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961.

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