Registo
Um poder trágico
Carla Benedetti

Nestes primeiros meses de 2022, as celebrações do centenário do nascimento de Pier Paolo Pasolini estão a multiplicar-se exponencialmente: universidades, centros culturais, revistas, bibliotecas, programas de rádio, museus, autarquias, editoras e produtoras de cinema dedicam ao artista encontros, iniciativas especiais, conferências, exposições, projecções, debates, documentários e uma série de novas publicações. E tal não acontece apenas em Itália. Talvez nenhum outro escritor italiano tenha sido alvo de tantos festejos, excepto Dante, celebrado no ano passado por ocasião dos setecentos anos da sua morte. O que impressiona, porém, não é só a quantidade de iniciativas dedicadas a Pasolini, mas também o fervor que as acompanha. Como explicar tudo isto?

PAsolini

© Fotografia: Scala, Florença / DUfoto

Pasolini é certamente uma das presenças artísticas mais preciosas da cultura italiana do século XX. Mas não é esta a única razão: a sua obra diz-nos muito ainda hoje, e não apenas aos estudiosos, mas também a muitos outros — aos velhos e, sobretudo, aos jovens —, graças ao seu poder sentimental. É o poder ao mesmo tempo artístico e ético de quem soube afrontar o mal do seu e do nosso tempo, e que por isso ainda é capaz de inspirar ideais.

Pasolini foi poeta, romancista e cineasta: três artistas num só. E em todos estes campos chegou ao topo, de tal modo que se se tivesse exprimido apenas num deles continuaria a ser recordado. Se se tivesse limitado a realizar filmes como Accattone, O Evangelho Segundo São Mateus, A Raiva, Salò ou Os Cento e Vinte Dias de Sodoma — para mencionar apenas os maiores, ou pelo menos aqueles de que mais gosto —, Pasolini seria igualmente celebrado como um dos nomes cimeiros do cinema italiano, ao lado de Rossellini e de Fellini. E se apenas tivesse escrito poemas, seria igualmente o grande poeta que se estreou, com apenas vinte anos, com os Poesie a Casarsa, e depois As Cinzas de Gramsci, Poesia in forma di rosa, Transumanar e Organizar. E o mesmo se pode dizer dos seus romances, Ragazzi di vita, Amado mio e Petróleo, este último o seu grande experimento romanesco, publicado postumamente, porque o autor foi assassinado antes de poder acabá-lo.

Mas há ainda um quarto Pasolini, que saía do campo estritamente estético para afrontar questões políticas e civis. Dirigia-se ao grande público a partir das páginas de revistas e jornais, com intervenções que definia como «corsárias» — aludindo à chamada «guerra de corso» com que os navios pequenos e velozes dos corsários assaltavam a poderosa marinha mercante inimiga. Pasolini lançava-se em empresas igualmente ímpares com o seu pequeno barco, a palavra. A sua palavra tinha uma qualidade muito particular, sempre ditada pela obrigação de dizer tudo o que tinha de ser dito, simplesmente porque era a verdade, mesmo quando inoportuna, de exprimir posições diferentes das da maioria, ou até de dizer verdades que podiam pôr em risco a sua vida.

Com este tipo de palavra, que eu defino como «parresiástica»1, Pasolini distanciou-se muito da figura do intelectual comprometido, engagé, de que Jean-Paul Sartre fora o exemplo e o modelo. E distanciou-se não num aspecto secundário, mas num aspecto capital, que se prende justamente com o vínculo à verdade, que Pasolini vivia como algo sagrado. Sartre, como é sabido, escolheu calar uma parte da verdade sobre a União Soviética de então, porque eram os tempos da Guerra Fria e denunciar abertamente os crimes de Estaline poderia levar a um enfraquecimento da causa comunista. Com esta escolha, ditada por razões tácticas ou de prudência, é evidente que a verdade foi subordinada à oportunidade política. Pasolini, pelo contrário, preferiu sempre a verdade à oportunidade, mesmo quando dizê-la poderia pôr em perigo a sua reputação ou a sua vida.

É exemplar o seu artigo «O romance das chacinas», publicado no Corriere della Sera a 14 de Novembro de 1974, onde afirmava saber os nomes dos responsáveis pelos massacres que tinham fustigado a Itália naqueles anos: bombas em bancos, nas estações e nos comboios, com um grande número de mortos. A primeira chacina foi a da Piazza Fontana, em Milão, a 12 de Dezembro de 1969; a última a da estação de Bolonha, a 2 de Agosto de 1980 (cinco anos após a morte de Pasolini). Cada massacre produzia um grande choque no país, como hoje acontece com os atentados terroristas. Naquele caso, porém, quem estava por detrás dos ataques não era o terrorismo islâmico internacional, mas grupos de poder no interior do próprio Estado italiano, empenhados em gerar medo e obter vantagens para conservar, assim, o seu poder. É a chamada «estratégia da tensão». As chacinas eram atribuídas não aos verdadeiros responsáveis, mas aos comunistas, num primeiro momento, e mais tarde aos fascistas. Os verdadeiros mandantes, a «cúpula», como lhes chama Pasolini, permaneciam ocultos.

Eis como começava o artigo, que é um dos «escritos corsários» mais conhecidos:

Eu sei.
Eu sei os nomes dos responsáveis daquilo a que se tem chamado golpe […].
Eu sei os nomes dos responsáveis da chacina de Milão de 12 de Dezembro de 1969.
Eu sei o nome dos responsáveis das chacinas de Brescia e de Bolonha, dos primeiros meses de 1974.
Eu sei os nomes da «cúpula» que manipulou […].2

Precisamente um ano depois, Pasolini foi assassinado. No artigo afirma saber os nomes, mas não ter provas, e acusa toda a classe política italiana, incluindo a oposição — o Partido Comunista da época, que se calou, mesmo tendo provas, seguindo justamente o critério da oportunidade política e não o da verdade.

Pasolini descreveu com lucidez o rosto destrutivo do capitalismo tardio, os efeitos negativos da sociedade de consumo sobre a vida das pessoas, a tal ponto que foi por vezes definido como um «profeta» que previu o que aconteceria daí a pouco, e não apenas na sociedade italiana. Na realidade, Pasolini não previu, apenas viu o que outros intelectuais e políticos da época pareciam não ver, ou não querer ver. Viu a ascensão de um «novo poder» tolerante e, ao mesmo tempo, criminoso, responsável pela maior «mutação antropológica» jamais ocorrida na modernidade, destruindo estruturas morais da sociedade, transformando os cidadãos em consumidores e os pobres em consumidores frustrados, produzindo infelicidade e violência. Pasolini define este processo como um «genocídio cultural»: uma espécie de «aculturação » semelhante à que fora sofrida por muitos povos colonizados.

1. Cf. Carla Benedetti, «Confissão ou parrésia? Pasolini, Foucault e o discurso de verdade», Rostos do si: autobiografia, confissão, terapia, Gianfranco Ferraro, M. Faustino, B. Ryan (eds.), Lisboa: Vendaval, 2019. O parresiasta era uma figura fundamental na pólis grega. Como escreve Michel Foucault, que dedicou diversos estudos à parrésia antiga, o parresiasta é aquele que «escolhe o discurso sincero em vez da persuasão, a verdade em vez da falsidade ou do silêncio, o risco de morrer em vez da vida e da segurança, a crítica em vez da adulação e o dever moral em vez dos ganhos pessoais ou da apatia moral» (M. Foucault, Discurso e Verdade na Grécia Antiga).
2. Pier Paolo Pasolini, Escritos Corsários, Cartas Luteranas — Uma antologia, Francisco Roda (ed.), trad. de José Colaço Barreiros, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 64.

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