Primeira Pessoa
Alice Rawsthorn: «O design é um consolo para a curiosidade e uma educação permanente»
Vera Sacchetti

Quando fala sobre design — aquilo que é, representa e para que serve —, Alice Rawsthorn é uma das vozes mais escutadas mundialmente, com uma grande intervenção e influência nos fóruns de debate e nas redes sociais. Crítica e colunista dos mais importantes jornais e revistas (Financial Times, International Herald Tribune e The New York Times Magazine), é autora de livros que se tornaram clássicos, entre os quais Design as an Attitude, que tem conhecido grande repercussão. Nesta entrevista exclusiva para a Electra, conduzida pela curadora e crítica de design Vera Sacchetti, Alice Rawsthorn fala da sua vida e da sua obra. E diz-nos como pensa o mundo e o futuro, mostrando, apesar de tantas ameaças e desafios, uma atitude optimista, que olha o design como «força omnipresente» e «agente de mudança».

alice rawsthorn

© Michael Leckie

O design está «inextricavelmente ligado, imerso em todas as coisas» que nos rodeiam, afirma a inigualável crítica Alice Rawsthorn. Ao longo da sua carreira, Rawsthorn escreveu para o Financial Times e o International Herald Tribune, e moldou uma discussão pública em torno do design que marcou o mundo nos últimos vinte anos. Os seus livros Hello World: Where Design Meets Life e, mais recentemente, Design as an Attitude exploram as manifestações dessa disciplina em diferentes escalas e por todo o planeta; a influência dos seus escritos foi sentida por toda a parte. Com presença em fóruns globais como a TED ou o World Economic Forum, em Davos, Rawsthorn tem contribuído para promover o design como uma força transformativa com potencial para causar um impacto global significativo. Também se dirige às gerações mais jovens, que formam grande parte dos seus mais de noventa mil seguidores no Instagram, e a acompanham nas publicações informativas e fascinantes que faz. O mais recente projecto de Rawsthorn, Design Emergency, nasceu em colaboração com Paola Antonelli, sua amiga e directora de I&D no MoMA, durante os primeiros meses de confinamento em 2020. De perfil de Instagram cresceu até se tornar livro, que será publicado na Primavera de 2022. Enquanto «mostruário da criatividade e do engenho que há no design», Design Emergency será talvez o projecto mais ambicioso de Rawsthorn, surgindo num momento que a pandemia tornou decisivo para todo o mundo. Como um guia para o tempo presente, conduz-nos ao longo do «processo global de re-design e reconstrução radicais das nossas vidas» que agora atravessamos, onde o design tem um papel importante a desempenhar.

Vera Sacchetti  Sei que não iniciou os seus estudos pelo design. Como foi que começou a escrever e como foi que iniciou o seu percurso até se tornar crítica?

Alice Rawsthorn  Sempre adorei ler e escrever histórias. Escrever e falar sempre foram a minha maneira de me expressar, e ler o que os outros escrevem dá-me imenso prazer. Além disso, a minha educação formal foi, de certa forma, feita de retalhos, pelo que ler e escrever serviram para me educar a mim mesma. Fui para a Universidade de Cambridge e comecei por estudar Direito. Nos anos 70, era costume dizer-se às raparigas inteligentes que fossem para Medicina ou Direito, o que era ridículo porque eram ambos, nessa altura, campos extremamente misóginos. Todas as minhas amigas que se tornaram médicas ou advogadas passaram por momentos difíceis. Eu queria especializar-me em direitos humanos, mas cheguei à conclusão de que estudar Direito e ser advogada não me dava o tipo de estímulo intelectual que eu sentia que me faltara na escola e que procurava desesperadamente na universidade. Felizmente, em Cambridge, é possível fazer cursos com duas partes e, na segunda parte, estudei História da Arte e da Arquitectura. O curso era incrivelmente antiquado. Estávamos no fim da década de 70, na era do punk, mas o curso de História da Arte de Cambridge tinha ficado preso no século XIX, ou pelo menos era o que me parecia. Não havia qualquer hipótese de estudar arte moderna ou contemporânea, mas foi uma magnífica introdução à história da arte e à arquitectura. Além disso, a faculdade possuía uma biblioteca espantosa, repleta de livros de arte, design e arquitectura de todo o mundo. Entre os periódicos subscritos, havia revistas italianas como a Domus e a Abitare. Era uma época particularmente dinâmica na Domus, editada por Alessandro Mendini e tendo Ettore Sottsass como director artístico. Estávamos na explosão do pós- -modernismo, e Mendini era um editor extraordinário, intelectualmente ágil, lesto. Raramente se discutia design na Grã-Bretanha dos anos 70, e nunca em termos culturais. Por isso, iniciei-me no design tal como Mendini o via: algo inextricavelmente ligado, imerso em todas as coisas com que estava obcecada na altura — cinema, literatura, política, psicologia, culturas urbanas, música, sociologia. É assim que penso no design desde então: uma disciplina imersiva envolvida em todos os aspectos das nossas vidas e uma força ubíqua que influencia tudo o que fazemos em todos os contextos possíveis. 

"É assim que penso no design desde então: uma disciplina imersiva envolvida em todos os aspectos das nossas vidas e uma força ubíqua que influencia tudo o que fazemos em todos os contextos possíveis."

mohammed Fayaz

Cartaz de Mohammed Fayaz para a marcha «Brooklyn Liberation» pelos direitos dos jovens afro-americanos trans e não-binários, 2021. Cortesia do artista.

hello world

Hello World: Where Design Meets Life
Capa de Irma Boom. Cortesia Alice Rawsthorn e Hamish Hamilton

VS  Depois de Cambridge, trabalhou como jornalista de assuntos contemporâneos, mas sem estar especificamente ligada ao design…

AR  Quando saí de Cambridge, consegui um lugar no programa de estágios dirigido pelo antigo proprietário do The Times. Era muito antiquado, mas foi uma iniciação pragmática e eficaz à prática jornalística. De seguida, escrevi para o Financial Times, durante quase vinte anos, sobre economia, política e assuntos empresariais. Fui correspondente em Paris e, de volta a Londres em meados dos anos 90, escrevi sobre indústrias criativas, que estavam em grande expansão no Reino Unido e eram uma força económica cada vez mais importante. Nunca tinham sido levadas a sério até então, pelo que foi uma excelente oportunidade para me colocar como pioneira de uma área ainda não coberta pelo FT e que estava muito alinhada com as minhas paixões. Durante esse período, consolidei o meu interesse pelas artes visuais, a arquitectura e o design. Passei uma semana a ler sobre a história do design na biblioteca de arte do Victoria and Albert Museum. Ao fim de quase vinte anos no FT, tinha a possibilidade de reinventar a minha função como jornalista, tornando-me crítica de design e arquitectura. Em 2006, comecei a trabalhar para o New York Times — ou aquilo que à época era o International Herald Tribune, a edição desse jornal para distribuição mundial —, onde fui crítica de design durante catorze anos. Tinha uma coluna semanal, o que foi uma oportunidade fantástica para mim, já que o IHT nunca tivera uma crítica de design, e por isso dava-me todo o espaço para escrever o que quisesse. Não estava constrangida pelos clichês habituais da escrita sobre o tema, muito focada no design de interiores, de produto ou de mobiliário. Podia escrever sobre isso, mas também podia escrever sobre a minha visão mais abrangente do design como força social, política e ecológica. Deixei explícito desde o início que precisaria de ter a liberdade de criticar o design quando necessário. Nessa altura, o que se escrevia sobre o tema tendia a concentrar-se no «bom design» e na sua promoção, o que era compreensível visto tratar-se de uma disciplina marginalizada. Mas eu estava convicta de que se queríamos ter uma discussão crítica sobre o design que fosse verdadeiramente robusta, era necessário abordar também os aspectos negativos — e os editores do IHT concederam-mo de bom grado. Sempre senti que assumia o meu papel de crítica de design como uma correspondente no estrangeiro, onde é preciso analisar absolutamente tudo o que acontece num dado momento. Uma das coisas que adoro na escrita sobre design é ter de mergulhar em tantos campos diferentes. É um consolo para a curiosidade e uma educação permanente, e tanto a prática como as possibilidades do design estão em constante mudança. O pensamento nunca se pode tornar rígido; é necessário reexaminá-lo continuamente, e isso é muito entusiasmante.

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