Ressonâncias Afectivas: A pesquisa criativa de Ângela Ferreira
Ângela Ferreira foi pioneira ao trazer para a arte contemporânea alguns temas e motivos que hoje estão omnipresentes e fazem mover o debate cultural. Ocupando-se, há mais de três décadas, no seu trabalho, das questões do passado colonial, do presente pós-colonial e do futuro que agora começa a desenhar-se, mantém grande consistência e coerência na sua produção artística, que, por isso, tem obtido reconhecimento nacional e internacional. Neste número da Electra, Ângela Ferreira dá a conhecer as suas pinturas realizadas, para memória futura, a partir de murais apresentados em exposições anteriores. No ensaio que escreveu para este «Portfolio», a curadora e historiadora de arte Nomusa Makhubu diz: «Há uma ressonância afectiva para cada um dos componentes do Pan African Unity Mural: subjazem aí perda, conflito, tragédia, mas também optimismo e esperança. É algo aparentado com aquilo a que Tina Campt chamou “frequências afectivas”. Ver o que não costumamos ver, prestar atenção às ressonâncias entre cada imagem e objecto é experienciar como “imagens sublimemente serenas enunciam políticas aspiracionais”.» As imagens que Ângela Ferreira aqui mostra são, por isso, um lugar em que a visibilidade, a inclusão e a centralidade são restituídas ao que habitou longamente as periferias invisíveis da amnésia, da exclusão e do desconhecimento.
No início da sua biografia, diz Miriam Makeba:
Olho para uma ribeira e vejo-me a mim mesma: uma sul-africana nativa a fluir de maneira irresistível por árduos obstáculos, polindo-os até que, um dia, desapareçam — uma corrente nascida de uma origem esquecida rumo a um fim que nunca será.1
Makeba não estava restringida por um sentido estrito de pertença nacional, pela acumulação gananciosa e sufocante de propriedade, ou pelo trabalho cativo numa terra capturada. O seu «fluir», para tomarmos literalmente a metáfora, polia paisagens mapeadas, repartidas, vedadas, queimadas e consumidas, como a água que transforma pedras rugosas em seixos. Expressão do anti-racismo abnegado de Makeba, esta metáfora dilui origens e destinos definitivos, desafiando a tirânica organização imperial do espaço. Vermo-nos como correntes em movimento sem origem nem destino imediatamente discerníveis é como dizer «as coisas nunca assentam e nunca deviam assentar». Desta maneira, os sítios físicos que parecem estáticos são fluxos infinitos de narrativas inquietas, convergentes, ressonantes, produzidas por relações e ligações entre pessoas. É nesta noção de que os espaços não são apenas habitados, mas também criados, vividos e sentidos que se firma a obra de Ângela Ferreira.
Estendendo-se ao longo de três décadas de pesquisa prática, é um trabalho que foca lugares específicos, colhendo experiências vividas que os ligam às pessoas. Embora escultora de formação, Ângela Ferreira não se centra tanto nos objectos quanto nas relações espaciais entre objectos, ideias e histórias. Gera um movimento de navegação por múltiplos lugares, produzindo ambientes onde é possível sentir a volatilidade do poder na produção dos espaços.2 Pan African Unity Mural [Mural da União Pan-Africana, 2018] pode ser considerado uma confluência introspectiva de investigações passadas e presentes em torno de acontecimentos e personalidades específicos. Ao reflectir no trabalho de Ângela Ferreira, sinto-me atraída pela ressonância afectiva animada pelas narrativas entrelaçadas. Edifícios, casas, torres e outros espaços reverberam como canções, e re-soam histórias de exílio, perda, luta e resistência.
Veja-se, por exemplo, a casa em Dalaba, na Guiné-Conacri, que Sékou Touré ofereceu a Makeba em 1967, e onde ela morou quando exilada da África do Sul e expulsa dos Estados Unidos. Nos desenhos de Ângela Ferreira, a casa de Makeba é içada com cabos que vão de um ponto a outro, como se a casa fosse movível e pudesse ser deslocada para locais diferentes, fazendo lembrar que o lar não está confinado apenas a um local físico e que as recordações dos sítios a que chamamos «o nosso lar» nos acompanham para onde formos. Vem-me à memória um documentário que mostra Makeba vagueando pela sua casa, olhando para os padrões no chão e no tecto, cantando e recordando a sua terra. É este o significado de Dalaba: a ressonância sentida por Makeba perante as pinturas da paisagem sul-africana, aonde ela não podia regressar. Mas Dalaba era a afirmação da sua insubordinação e da urgência da independência africana. Para os guineenses, ao contrário dos sul-africanos, «onde quer que estejam, esse sítio é deles, é a sua terra»3. Dalaba é também o lugar onde Makeba perdeu a sua filha, Bongi, e o seu neto. A casa assinala as árduas transições da independência africana — é um lugar que representa muitos outros lugares e encontros. Afinal, Makeba, ou Mãe África, como era carinhosamente chamada, era cidadã de muitos países, simbolizando a solidariedade pan-africana.
Como um reflexo, esta ressonância é igualmente sentida ao olhar para o modelo da casa em Maputo onde Ângela Ferreira morou. Está também içado, evocando os espectros do colonialismo nos estilos arquitectónicos e na não-fixidez do lar tal como o vê o colonizador, e assinalando conceitos territoriais como os de nativo, estrangeiro, colono — gerações lançadas em situações sociais que concretizam a diferença. Mas somos levados a observar mais a fundo e através disto, de modo a ouvir e desvendar as ressonâncias que não sentimos imediatamente: aquilo que imaginamos quando pensamos na essência do lar — família, comunidade, parentesco — , atravessando por vezes fronteiras visíveis e invisíveis. Os cabos que sustentam os edifícios intersectam- se numa reprodução da torre que surge no Pan American Unity Mural, um fresco pintado em 1940 pelo mexicano Diego Rivera com a afro-americana Thelma Johnson Streat, entre outros. A torre, como qualquer mecanismo de engenharia que transforme um lugar, é um ponto de convergência entre humano e máquina num dado espaço. Embora as barragens sejam símbolos de progresso e modernidade, a barragem de Shasta, na Califórnia, na qual se usaram guindastes controlados por uma torre como esta, foi construída numa terra de onde se expulsou pela força comunidades indígenas. Oculta as vidas que aí se viveram e os mortos que aí se sepultaram. A tensão sentida é a do ruído silenciado da construção destrutiva, do trabalho extractivo e das famílias deslocadas.
Esta representação conturbada do trabalho e das famílias deslocadas ecoa no mural do Projecto Comunitário de Artes na Casa Comunitária de Salt River, na Cidade do Cabo. É deste mural que provêm os dez desenhos em Pan African Unity Mural.4 Nele, cativa-me a imagem do comboio a descer a linha, perfurando a paisagem congestionada. Traz reminiscências da peça Stimela, de Hugh Masekela, de 1974, em que ele diz:
Há um comboio que vem da Namíbia
[e do Malawi,
Há um comboio que vem da Zâmbia
[e do Zimbabué,
Há um comboio que vem de Angola
[e de Moçambique,
Do Lesoto, do Botswana, da Suazilândia,
De todo o interior do Sul e do Centro de África.
Este comboio leva jovens e velhos,
[homens africanos
Recrutados para virem e trabalharem a contrato
Nas minas do mineral dourado de Joanesburgo
E da metrópole em volta, dezasseis ou mais
[horas por dia, E receberem quase nada.
Bem lá no fundo, nas entranhas da Terra,
Enquanto escavam e perfuram aquela poderosa
[pedra, esquiva e brilhante
[…]
Ou quando se sentam nas suas casernas
[e nos seus albergues
Fétidos, suados, imundos, pulguentos,
Pensam naqueles que amam e que talvez
[nunca voltem a ver
Porque podem já ter sido expulsos à força
De onde os deixaram pela última vez,
Ou assassinados gratuitamente pela calada
[da noite
Por bandos que vagueiam e saqueiam
[e que não têm uma origem particular.
Dizem-nos
Que pensam nas suas terras e nos seus rebanhos
Que lhes foram roubados.
A voz provocadora de Masekela ecoa ao longo dos tempos na sua condenação da brutalidade do extractivismo e do sistema de trabalho migrante que cruza fronteiras geográficas. No mural, onde a linha-férrea declina, os trabalhadores reúnem-se e congregam ferramentas. É através desta união que recuperam a ligação às famílias de que foram separados: uma criança põe estas ferramentas em contacto com um lápis segurado por uma mãe que carrega lenha à cabeça. A transmissão de conhecimento representada no mural desperta a rebelião jovem em solidariedade com os trabalhadores. Uma jovem lê um livro com as palavras «Liberdade ou Morte, a Vitória É Certa», um slogan associado aos cartazes e crachás do Congresso da Juventude Sul-Africana (SAYCO) e do Congresso da Juventude do Cabo (CAYCO). Estes cartazes prestavam homenagem aos protestos dos jovens em 16 de Junho de 1976 contra a Educação Bantu, o ensino de qualidade inferior prestado pelo Governo do apartheid às pessoas negras. No mural, imagens de trabalhadores com panfletos do Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (COSATU) e da Frente Democrática Unida (UDF) surgem numa paisagem de albergues, fábricas, torres de arrefecimento, minas e barracas dos townships, os guetos segregados — o legado de um regime que usurpou o espaço em prol do controlo e da acumulação. O mural evoca o slogan marxista «Proletários de Todos os Países, Uni-vos!» e «Trabalhadores do Mundo, Uni-vos!», defendendo como crucial para os trabalhadores uma solidariedade trans-nacional pan-africana contra o capitalismo global, que atravessa todas as fronteiras.
O Pan African Unity Mural coloca diversos lugares em proximidade, reunindo a Cidade do Cabo, Maputo, a Califórnia, Boston, Argel, Conacri, entre outros. O movimento é fulcral nesta instalação, uma convergência de múltiplas narrativas através do espaço e do tempo. É algo que define a política moderna, onde o poder é a capacidade de controlar a relação que as pessoas estabelecem com o espaço e o seu movimento nele, seja forçado ou voluntário, e seja num contexto de territorialização ou ocupação colonial, segregação, apropriação de terras, privatização ou reclamação.
A história da vida de um homem em fuga como Jorge dos Santos, de seu nome verdadeiro George Wright, reflecte a brutalidade do racismo estrutural que despoja as pessoas e as encurrala num sistema carcerário de trabalho forçado. Wright foi condenado a três décadas de prisão depois de ter assassinado uma pessoa por 1.25 dólares para um bilhete de autocarro, quando a sua carteira tinha sido roubada. Esta reviravolta numa existência, de resto, banal levou Wright a passar o resto da vida como fugitivo, atravessando então variados pontos geográficos: dos Estados Unidos para a Argélia, França, Guiné- -Bissau e Portugal. É significativo que no mural este movimento seja representado por meio do avião DC-8 Delta que Wright, juntamente com outros, sequestrou em 1972. Símbolo de estar-em-trânsito, o avião é simultaneamente o local do crime e o meio de fuga para a Argélia, para junto dos membros dos Panteras Negras aí exilados e, por fim, para uma vida recatada em Portugal. Enquanto o comboio simboliza o sistema de trabalho migrante (e a fantasia imperial de Cecil Rhodes de uma ligação Cabo-Cairo), o avião assinala as contradições da globalização — a compressão do espaço-tempo que escora os crimes do capitalismo. A narrativa de Wright é fascinante precisamente porque faz luz sobre os indivíduos extraordinários que reivindicam o direito a uma vida plena a despeito das limitações colocadas por políticas espaciais opressivas.
Há uma ressonância afectiva para cada um dos componentes do Pan African Unity Mural: subjazem aí perda, conflito, tragédia, mas também optimismo e esperança. É algo aparentado com aquilo a que Tina Campt chamou «frequências afectivas». Ver o que não costumamos ver, prestar atenção às ressonâncias entre cada imagem e objecto é experienciar como «imagens sublimemente serenas enunciam políticas aspiracionais»5. Muitas vidas convergem neste espaço: dos trabalhadores, de Miriam Makeba, de Jorge dos Santos, de Ângela Ferreira, e muitas outras que são invisíveis. No seu interior, o «fluir por árduos obstáculos», a resistência contra limiares rígidos e divisivos canalizada em narrativas, aponta a preponderância da relacionalidade e a necessidade de encontrar, ouvir e sentir o inesperado.
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