O iconoclasmo sublime de John Divola
O consagrado fotógrafo norte-americano John Divola preparou, para esta edição de Electra, um conjunto de trabalhos inéditos, que pertencem a uma série, ainda em curso de realização, no interior duma base aérea militar, no deserto da Califórnia. Essa base foi desactivada logo no rescaldo da Guerra Fria, permanecendo, desde então, como uma autêntica cidade em ruínas. Não é a primeira vez que John Divola, que está representado nos mais importantes museus e colecções, intervém artisticamente em espaços abandonados para registar fotograficamente o resultado. Como Afonso Dias Ramos mostra no ensaio de apresentação da sua obra, estas explorações visuais, feitas durante a pandemia, retomam as estratégias artísticas do seu caminho inicial. Perfaz-se assim um surpreendente arco de quase meio século, que constitui também uma revisitação da história da arte contemporânea. As imagens reveladas neste «Furo» usam a ruína para recolocar a fotografia em relação directa e com a pintura, a escultura e instalação, declinando desta forma uma distinção entre testemunha e participante, intervenção e documento.
John Divola nasceu em 1949, em Los Angeles. Estudou na California State University, Northbridge, e realizou o mestrado na UCLA com Robert Heinecken, figura maior da cena artística californiana que, a par de John Baldessari e Ed Ruscha, apelava ao uso da câmara fotográfica como meio de subversão do discurso artístico. Em meados dos anos 70, e sem estúdio próprio, Divola começou a percorrer as ruas em busca de casas devolutas. Entrava nelas, depois vandalizava o interior com spray, tinta e fósforos, e registava fotograficamente o resultado da intervenção plástica. A sabotagem conceptual da distinção entre a prática documental e artística valeu- -lhe a aclamação imediata da crítica, e lançou cinquenta anos de um dos trabalhos mais distintivos na arte contemporânea, alinhando de um modo muito particular a fotografia à prática da pintura, escultura, performance e instalação. Divola é professor de fotografia na University of California, Riverside, desde 1988. Realizou mais de duzentas exposições colectivas e oitenta individuais internacionalmente, e tem obras entre as mais importantes colecções de arte, como o MoMA, MET e Whitney Museum em Nova Iorque, Centro Pompidou em Paris, Getty Museum e LACMA em Los Angeles, Smithsonian em Washington, Museu Metropolitano de Arte de Tóquio ou o V&A em Londres. Publicou sete livros: Continuity (1997), Isolated Houses (2000), Dogs Chasing My Car In The Desert (2004), Three Acts (2006), Vandalism (2018), Chroma (2020) e Terminus (2021). Neste «Furo», Divola apresenta à Electra inéditos de uma série em curso, sob o título Blue With Exceptions [Azul com excepções], realizada nos últimos dois anos numa base militar desactivada no deserto da Califórnia.
What are those blue remembered hills […] That is the land of lost content, I see it shining plain, The happy highways where I went And cannot come again.1
A. E. Housman, «A Shropshire Lad», 1896
O livro mais recente de John Divola, Terminus (2021), reuniu uma série de fotografias a preto e branco realizadas desde 2015 numa instalação militar desactivada na Califórnia, a George Air Force Base, a cem quilómetros de Los Angeles, na orla sudoeste do Deserto de Mojave. Contando inicialmente com autorização oficial para fotografar os exteriores, a maior parte deste projecto acabou por resultar da sua exploração clandestina dos interiores das seiscentas unidades de habitação abandonadas desde que a base militar foi encerrada em 1992. As intervenções artísticas dentro dos edifícios dilapidados, com posterior registo das cenas modificadas, perfazem um longo círculo no interior do percurso de Divola — e, por extensão, na história da fotografia e da arte contemporânea —, retomando as suas estratégias iniciais, depois de meio século de um trabalho em Los Angeles que enveredara por registos bem distintos, vincando o contraste entre projectos, de séries sobre casas isoladas a sequências de cães perseguindo o seu carro pelo deserto, do uso de câmaras robóticas em paisagens ao uso do temporizador para produzir auto-retratos em fuga. Um caso raro no panorama artístico do nosso tempo, este diálogo com a obra inicial não procurava reciclar fórmulas antigas, mas antes emular esse impulso experimental que o destacou como um dos primeiros artistas conceptuais a questionar os limites da fotografia, recusando os padrões de neutralidade então dominantes, e usando a cor de modo exuberante quando o preto e branco era a forma mais séria de arte. Este procedimento remonta aos anos 70, mas encontrou novas possibilidades nesta base aérea, com um trabalho que, agora como dantes, assenta fundamentalmente na recusa da distinção entre testemunha e participante, entre documento e intervenção, cruzando a prática fotográfica com as outras artes visuais, numa exploração sobre percepção, espaço e superfície. O salto no tempo, porém, não foi acidental. O trabalho demorado na instalação militar, segundo a tradição documental, ocorreu em paralelo com um regresso ao arquivo privado no estúdio — John Divola voltou-se para os negativos do livro Chroma (2018), em experiências novas com o pigmento saturado e artificial das obsoletas impressões cibacromáticas; e refamiliarizou-se com as lendárias séries nas quais intervinha em casas abandonadas, Vandalism (1974–1975) ou Zuma (1977–1978), à medida que estas foram sujeitas a um processo de digitalização e republicação.
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