Um carismático e experiente operador de som de cinema, questionado sobre o que singulariza a paisagem sonora de Lisboa relativamente a outras cidades, respondeu com um desconcertante «Nada!». Lisboa não se distingue sonoramente porque todas as cidades soam cada vez mais da mesma maneira, dominadas pelo constante e monótono rumor do tráfego rodoviário. A hipérbole iconoclasta e algo cómica daquela resposta cumpria, contudo, uma função retórica — Vasco Pimentel, o experiente operador de som, acabaria por admitir a existência de nichos na cidade com sons característicos —, mas não deixa de ser surpreendente (e irónico) que alguns dos sons que parecem ser mais distintivos na cidade de Lisboa sejam ainda os da Ponte 25 de Abril. O zumbido gerado pela passagem constante dos automóveis nas grelhas metálicas do tabuleiro da ponte cria um bordão de tal modo peculiar e encantatório que inspirou e serviu para alimentar in situ e em tempo real a instalação audiovisual Shadow Soundings, do artista americano e pioneiro das chamadas «artes sonoras» Bill Fontana, exibida na Sala Oval do maat em 2017–18. O gesto do artista havia sido já ensaiado algumas vezes, desde os anos 80, na Golden Gate de São Francisco, uma ponte tantas vezes comparada com a de Lisboa, mas à qual, como admitiu Fontana, falta esse zumbido característico que naturalmente se propaga e pode ser escutado, tanto nas margens do Tejo, em Alcântara, como em muitas outras ruas da cidade sempre que as condições atmosféricas e acústicas o permitem. Num certo sentido, esse som funciona como aquilo a que o compositor canadiano Murray Schafer, teorizador das paisagens sonoras (soundscapes), chamou keynote sound, o som fundamental ou tónica, isto é, aquele som que marca a tonalidade de um local, mesmo quando é quase imperceptível ou passa despercebido no nosso quotidiano preocupado.1 Forçando talvez a interpretação desta teoria da «paisagem sonora», poderia pensar-se nele também num outro sentido, como «marca sonora» (soundmark), um som particularmente significativo para a identidade de uma determinada comunidade de ouvintes, como o é a sequência do Big Ben, o grande sino da torre de Westminster, em Londres. Contudo, na prática, o som da ponte não funciona assim para os lisboetas — passando até bastante despercebido a muitos deles —, sendo sobretudo um efeito acústico daquela construção metálica e da geomorfologia da cidade banhada pelo Tejo — embora seja verdade que há cerca de vinte e cinco anos a ele se lhe tenha acrescentado, temporariamente, um célebre «buzinão», que simbolizou sonoramente um acto de resistência, e mesmo de desobediência civil, perante uma medida impopular do governo de então. Isto significa que uma paisagem sonora pode ser pensada numa dimensão acústica e ecológica, como o conjunto dos sons de um determinado meio físico e social, mas também numa dimensão histórica, antropológica e cultural, que implica os modos de percepção, representação e de uso que revelam a teia complexa de trocas sociais e simbólicas tal como as sensibilidades estéticas de uma particular comunidade num determinado tempo histórico. Assim, quando nos pomos à escuta de uma cidade, quando nos tornamos sensíveis à sua paisagem sonora, podemos aceder a aspectos muitas vezes invisíveis, mas não menos tangíveis do espaço e da vida urbana ou, pelo menos, complementar aquilo que podemos ver com os dados de outras modalidades perceptivas (para além da audição, o tacto, a cinestesia ou a propiocepção) que revelam as múltiplas facetas da experiência da cidade. Essa paisagem revela os seus inúmeros acontecimentos, os movimentos, os encontros, os choques, os gestos, as resistências, as vozes e as entoações que se produzem ininterruptamente nos diferentes espaços urbanos. Na verdade, cada som que escutamos não nos remete apenas para a fonte sonora que lhe deu causa, também para o modo como tais acontecimentos sonoros se produziram e para os efeitos da sua propagação, reflexão, ressonância ou absorção num determinado meio ambiente. As qualidades de cada som — as formas do seu ataque, dos parciais e transiências, a sua massa, o seu grão, fluidez, brilho e clareza — são índices audíveis das interacções, dos ritmos, dos espaços e mesmo das emoções que nos afectam na experiência quotidiana da cidade.
Um carismático e experiente operador de som de cinema, questionado sobre o que singulariza a paisagem sonora de Lisboa relativamente a outras cidades, respondeu com um desconcertante «Nada!». Lisboa não se distingue sonoramente porque todas as cidades soam cada vez mais da mesma maneira, dominadas pelo constante e monótono rumor do tráfego rodoviário. A hipérbole iconoclasta e algo cómica daquela resposta cumpria, contudo, uma função retórica — Vasco Pimentel, o experiente operador de som, acabaria por admitir a existência de nichos na cidade com sons característicos —, mas não deixa de ser surpreendente (e irónico) que alguns dos sons que parecem ser mais distintivos na cidade de Lisboa sejam ainda os da Ponte 25 de Abril.
"O zumbido gerado pela passagem constante dos automóveis nas grelhas metálicas do tabuleiro da ponte cria um bordão de tal modo peculiar e encantatório que inspirou e serviu para alimentar in situ e em tempo real a instalação audiovisual Shadow Soundings, do artista americano e pioneiro das chamadas «artes sonoras» Bill Fontana."
Ao atravessarmos hoje a cidade de Lisboa «con le orecchie più attente che gli occhi» — para seguir a injunção feita por Luigi Russolo em 1913, no seu famoso manifesto L’Arte dei rumori —, podemos escutar os sons que emergem desse fundo de rumores rodoviários e que se destacam como «sinais acústicos» (signals) dos diferentes acontecimentos sonoros. Numa cidade de tradição católica como Lisboa ouvem-se ainda, não obstante a tendência laicizante da modernidade e os ruídos da civilização industrial, os sinos das múltiplas igrejas, concentradas sobretudo no centro histórico, mas espalhadas um pouco pelo resto de uma cidade que há século e meio era ainda um conjunto de quintas de fidalgos e propriedades rurais pertencentes a ordens religiosas. É certo que hoje os vários toques dos sinos passam mais despercebidos, não só pelo facto de serem mascarados pelo ruído crescente do tráfego, rodoviário e aéreo, e das betoneiras que reconfiguram a cidade, como também por se terem tornado ininteligíveis aos ouvidos contemporâneos, quando outrora as badaladas, os repiques, os toques a rebate ou os dobrados fúnebres nos campanários marcavam tanto a paisagem sonora metropolitanocomo a ordem temporal, social e política do quotidiano.
1. Ver The Tuning of the World, Nova Iorque: Knopf, 1977.
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