Em 27 de Janeiro de 1932, depois de muitos meses sob uma cortês ameaça de acção judicial, Pessoa acertou finalmente as contas com um escritório de advocacia que representava Lourenço & Santos, na época a mais elegante alfaiataria de Lisboa. Embora se achasse com frequência sem um tostão, fiando-se na generosidade dos amigos para pagar a conta do almoço, o poeta nunca economizou em roupa ou livros. A verba em atraso com o alfaiate tinha atingido os 200 escudos (o equivalente a 150 dólares na actualidade).1 Devia ainda 150 escudos à Livraria Portugália relativos a livros sobre ordens e tradições esotéricas adquiridos no Verão anterior, mas nos meses seguintes também haveria de conseguir saldar essa dívida.
Portugal suportou os piores efeitos da Grande Depressão em 1931, mas como a economia portuguesa continuava a depender essencialmente da agricultura o desemprego nunca ultrapassou os 6% (em comparação com 30% na Alemanha e 15% no resto da Europa) e no ano seguinte já se notava uma tímida recuperação. O estado deplorável das finanças de Pessoa também mostrava ténues sinais de estar a melhorar, graças a uma nova fonte de rendimento. Além de escrever cartas em inglês e francês, estava a traduzir poesia e prosa de Eliezer Kamenezky, judeu russo que tinha aprendido português no Brasil, onde pregou, de 1915 a 1919, as vantagens do vegetarianismo e do não materialismo. Entre as dezenas de artigos publicados sobre ele na imprensa brasileira há um que lhe chamou «apóstolo da vida simples». Personagens como Kamenezky, mais plausíveis em obras de ficção do que na vida real, sentiam-se instintivamente atraídas por Pessoa, e este por elas.
Kamenezky nasceu em 1888, um par de meses antes de Pessoa, em Lugansk, na Ucrânia, então parte da Rússia. Ainda na juventude começou a praticar o naturismo, a ter uma alimentação saudável e a distanciar--se das coisas mundanas, levando uma vida de nómada na Europa Ocidental e no Médio Oriente. Alto e de túnica branca, com longos cabelos soltos e abundante barba preta, parecia um profeta bíblico. Em 1914 tentou levar a sua doutrina anti-materialista para os Estados Unidos, mas encontrou poucos ouvintes receptivos, pelo que se dirigiu para sul, para a Argentina e o Brasil. Em 1920 viajou de barco para Lisboa, onde se instalou, mantendo essa imagem de figura exótica que, no entanto, se foi diluindo com o decurso dos anos. Em 1930, altura em que contratou Pessoa como tradutor, era um próspero negociante de antiguidades, porcelana e objectos de arte.2
Foi em Portugal que Kamenezky começou a escrever poesia a sério, com a ajuda de Maria O’Neill, poeta, jornalista, vegetariana, espírita e, em 1921, membro fundador da Sociedade Teosófica de Portugal. Corrigia-lhe o português escrito e deve ter dactilografado os poemas que eram passados a Pessoa, que lhes introduzia alterações antes de os traduzir para inglês e, em alguns casos, francês. Por volta de 1927 Kamenezky ditou a O’Neill as suas Memórias de um Judeu Errante, obra posteriormente intitulada Peregrinando. Pessoa traduziu mais de trezentas páginas desta autobiografia, que nunca foi publicada em português ou inglês. Kamenezky também escreveu — e Pessoa traduziu — dezenas de poemas em prosa.
Durante vários anos, Pessoa frequentou regularmente a sombria loja de antiguidades de Kamenezky, situada no Bairro Alto, na Rua São Pedro de Alcântara, mesmo em frente do jardim homónimo.3 Ia lá para recolher e deixar o trabalho de tradução, mas também para simplesmente falar com o proprietário. A lenda medieval do Judeu Errante, condenado a vaguear pelo Mundo até ao Segundo Advento de Cristo, tinha sempre fascinado Pessoa, que começou a escrever a sua própria versão da história enquanto frequentava o Curso Superior de Letras, e agora conhecia um homem que durante a maior parte da sua vida tinha sido um verdadeiro judeu errante.
Os planos de Kamenezky para disseminar a sua poesia em inglês e francês nunca chegaram a realizar-se, mas em Março de 1932 publicou Alma Errante, um livro de poemas para o qual convenceu Pessoa a escrever um prefácio. Quem melhor do que um colega poeta para comentar o nosso trabalho? Deve ter sido este o raciocínio de Kamenezky, mas Pessoa escreveu um denso ensaio sobre o judaísmo e a influência dos judeus no mundo. O texto começava debatendo o materialismo «essencial» do povo judaico, discernível no «patriotismo tradicionalista», na «especulação cabalística» e no idealismo social manifesto em doutrinas que iam do igualitarismo ao naturismo (aqui um cumprimento a Kamenezky). Embora responsabilizasse a tirania czarista pela Revolução Russa, Pessoa argumentava que os «judeus orientais», e os judeus russos em particular, tinham desenvolvido e propagado, por causa da tremenda opressão a que haviam sido sujeitos, um «igualitarismo místico» que foi abraçado pela «estupidez europeia» do proletariado, dando azo ao surgimento do comunismo.
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