Furo
Fernando Pessoa: o poeta que andava sempre bem vestido
Richard Zenith

Escritor, tradutor, crítico e investigador, Richard Zenith nasceu nos Estados Unidos da América e vive em Portugal há mais de três décadas. O seu trabalho permanente e exaustivo sobre a obra de Fernando Pessoa tornou-o um dos maiores especialistas mundiais do grande poeta dos heterónimos.

No ano em que recebeu o Prémio Pessoa 2012, dizia Richard Zenith: «O que é muito complicado na elaboração de uma biografia de Fernando Pessoa é, precisamente, encontrar um fio narrativo. A sua vida essencial não é feita de factos, acontecimentos. É muito difícil escrever uma vida que era sobretudo interior. Pessoa vivia entre a Terra e o Além.»

Foi esta biografia que Zenith escreveu e que este ano será dada a conhecer ao mundo. Para a escrever, tinha a seu favor os longos anos de estudo dedicados ao espólio do poeta genial e o muito que foi descobrindo e sabendo dele. Por ser de Pessoa e por ser de Zenith, esta biografia monumental está a gerar uma enorme expectativa.

O capítulo que, em pré-publicação, apresentamos nesta edição de Electra antecipa e revela o que é Pessoa: Uma Biografia. Nela, o escrupuloso rigor das fontes alia-se à sábia subtileza das interpretações, numa narrativa com um fio forte, fluente e fascinante, que ecoa as vozes múltiplas do biografado e capta os movimentos dessa magnífica máquina de melancolia montada por quem um dia se perguntou: «Por que fiz eu dos sonhos / A minha única vida?»

Nas páginas que aqui divulgamos, é-nos mostrada uma imagem-síntese de Pessoa: a imagem física («o poeta que andava sempre bem vestido»), os modos como ganhava a vida, os laços familiares, os vínculos sociais, intelectuais e literários, o claro enigma da sua sexualidade, o lugar real e mítico de Lisboa, a complexa relação vida-obra.

Há quase uma década, Zenith falava do futuro: «Mas depois de acabar a biografia de Pessoa, se esta não acabar comigo primeiro…»

A biografia acabou de ser escrita sem ter acabado com aquele que a escreveu. Essa vitória 2021 sobre a morte é também a de Fernando Pessoa. O poeta continua e continuará vivo e, por isso, a sua vida vale a pena ser minuciosamente, exemplarmente, inspiradamente contada. Foi o que fez Richard Zenith.

Este capítulo faz parte de Pessoa: Uma Biografia, obra que será publicada pela Liveright/Norton (EUA), Penguin (Reino Unido) e Quetzal (Portugal). Para esta publicação na Electra, excluí a maior parte das notas da versão em livro (essencialmente informação bibliográfica), ao mesmo tempo que adicionei outras notas para clarificar referências a pessoas e acontecimentos mencionados em capítulos anteriores.

R. Z.

Noé Sendas

Noé Sendas, da série Invisible Flowers, 2021
Cortesia do artista

Em 27 de Janeiro de 1932, depois de muitos meses sob uma cortês ameaça de acção judicial, Pessoa acertou finalmente as contas com um escritório de advocacia que representava Lourenço & Santos, na época a mais elegante alfaiataria de Lisboa. Embora se achasse com frequência sem um tostão, fiando-se na generosidade dos amigos para pagar a conta do almoço, o poeta nunca economizou em roupa ou livros. A verba em atraso com o alfaiate tinha atingido os 200 escudos (o equivalente a 150 dólares na actualidade).1 Devia ainda 150 escudos à Livraria Portugália relativos a livros sobre ordens e tradições esotéricas adquiridos no Verão anterior, mas nos meses seguintes também haveria de conseguir saldar essa dívida.

Portugal suportou os piores efeitos da Grande Depressão em 1931, mas como a economia portuguesa continuava a depender essencialmente da agricultura o desemprego nunca ultrapassou os 6% (em comparação com 30% na Alemanha e 15% no resto da Europa) e no ano seguinte já se notava uma tímida recuperação. O estado deplorável das finanças de Pessoa também mostrava ténues sinais de estar a melhorar, graças a uma nova fonte de rendimento. Além de escrever cartas em inglês e francês, estava a traduzir poesia e prosa de Eliezer Kamenezky, judeu russo que tinha aprendido português no Brasil, onde pregou, de 1915 a 1919, as vantagens do vegetarianismo e do não materialismo. Entre as dezenas de artigos publicados sobre ele na imprensa brasileira há um que lhe chamou «apóstolo da vida simples». Personagens como Kamenezky, mais plausíveis em obras de ficção do que na vida real, sentiam-se instintivamente atraídas por Pessoa, e este por elas.

Kamenezky nasceu em 1888, um par de meses antes de Pessoa, em Lugansk, na Ucrânia, então parte da Rússia. Ainda na juventude começou a praticar o naturismo, a ter uma alimentação saudável e a distanciar--se das coisas mundanas, levando uma vida de nómada na Europa Ocidental e no Médio Oriente. Alto e de túnica branca, com longos cabelos soltos e abundante barba preta, parecia um profeta bíblico. Em 1914 tentou levar a sua doutrina anti-materialista para os Estados Unidos, mas encontrou poucos ouvintes receptivos, pelo que se dirigiu para sul, para a Argentina e o Brasil. Em 1920 viajou de barco para Lisboa, onde se instalou, mantendo essa imagem de figura exótica que, no entanto, se foi diluindo com o decurso dos anos. Em 1930, altura em que contratou Pessoa como tradutor, era um próspero negociante de antiguidades, porcelana e objectos de arte.2

Foi em Portugal que Kamenezky começou a escrever poesia a sério, com a ajuda de Maria O’Neill, poeta, jornalista, vegetariana, espírita e, em 1921, membro fundador da Sociedade Teosófica de Portugal. Corrigia-lhe o português escrito e deve ter dactilografado os poemas que eram passados a Pessoa, que lhes introduzia alterações antes de os traduzir para inglês e, em alguns casos, francês. Por volta de 1927 Kamenezky ditou a O’Neill as suas Memórias de um Judeu Errante, obra posteriormente intitulada Peregrinando. Pessoa traduziu mais de trezentas páginas desta autobiografia, que nunca foi publicada em português ou inglês. Kamenezky também escreveu — e Pessoa traduziu — dezenas de poemas em prosa.

Durante vários anos, Pessoa frequentou regularmente a sombria loja de antiguidades de Kamenezky, situada no Bairro Alto, na Rua São Pedro de Alcântara, mesmo em frente do jardim homónimo.3 Ia lá para recolher e deixar o trabalho de tradução, mas também para simplesmente falar com o proprietário. A lenda medieval do Judeu Errante, condenado a vaguear pelo Mundo até ao Segundo Advento de Cristo, tinha sempre fascinado Pessoa, que começou a escrever a sua própria versão da história enquanto frequentava o Curso Superior de Letras, e agora conhecia um homem que durante a maior parte da sua vida tinha sido um verdadeiro judeu errante.

Os planos de Kamenezky para disseminar a sua poesia em inglês e francês nunca chegaram a realizar-se, mas em Março de 1932 publicou Alma Errante, um livro de poemas para o qual convenceu Pessoa a escrever um prefácio. Quem melhor do que um colega poeta para comentar o nosso trabalho? Deve ter sido este o raciocínio de Kamenezky, mas Pessoa escreveu um denso ensaio sobre o judaísmo e a influência dos judeus no mundo. O texto começava debatendo o materialismo «essencial» do povo judaico, discernível no «patriotismo tradicionalista», na «especulação cabalística» e no idealismo social manifesto em doutrinas que iam do igualitarismo ao naturismo (aqui um cumprimento a Kamenezky). Embora responsabilizasse a tirania czarista pela Revolução Russa, Pessoa argumentava que os «judeus orientais», e os judeus russos em particular, tinham desenvolvido e propagado, por causa da tremenda opressão a que haviam sido sujeitos, um «igualitarismo místico» que foi abraçado pela «estupidez europeia» do proletariado, dando azo ao surgimento do comunismo.

noé sendas

Noé Sendas, da série Invisible Flowers, 2021
Cortesia do artista

"O misticismo judaico, segundo Pessoa, era uma inevitável reacção, ou contraponto, ao materialismo judaico, e Eliezer Kamenezky era o exemplo perfeito de judeu místico."

O misticismo judaico, segundo Pessoa, era uma inevitável reacção, ou contraponto, ao materialismo judaico, e Eliezer Kamenezky era o exemplo perfeito de judeu místico. Sobre os poemas dele, Pessoa disse apenas que não eram intelectuais, mas «infantilmente sinceros» e sem eloquência, embora concedesse que não se poderia esperar que um estrangeiro escrevesse com elegância em português, «uma das mais completas, subtis e opulentas línguas do mundo».

O antigo interesse de Pessoa pela teoria de uma conspiração judaica organizada para dominar o mundo estava completamente ausente desta discussão sobre judeus e judaísmo.4 O que subsistia era o tipo de racismo essencialista que perfilhava: na opinião do poeta português, cada etnia — fosse judaica, russa, francesa ou indiana — possuía um conjunto de características único que a distinguia de qualquer outro grupo social. Estas características não eram, contudo, nem genéticas nem completamente estáticas: dependiam de uma complexa teia de circunstâncias sociológicas, geográficas e históricas. O ensaio assinalava de maneira bastante significativa que os judeus tinham tanto direito como qualquer outro povo de defender-se e afirmar-se.

Perto do final do prefácio, Pessoa chamava uma vez mais a atenção, mas apenas indirectamente, para a poesia informe e pouco densa de Kamenezky, afirmando que toda a literatura judaica é «essencialmente incoordenada e difusa», pelo que nenhum poeta judeu, por maior que seja, seria capaz de escrever uma composição com a progressão lógica de, digamos, uma ode grega, dividida em estrofe, antístrofe e epodo. «E, é claro, nenhum judeu seria capaz de escrever este prefácio», afirmava em modo de conclusão. Uma vez que Pessoa descendia de judeus pelo lado paterno, a frase final tem o efeito de uma piada, levando a pensar se o ensaio que se acabava de ler não passava de um exercício divertido em termos de raciocínio lógico e persuasão intelectual, não exprimindo nenhuma verdade mais profunda do que o inegável brilho da sua argumentação.

[...]

*Tradução de Salvato Teles de Menezes

1. Valor que poderia hoje, entrando em linha de conta com as taxas de inflação, corresponder a 400 euros. (N. do T.)

2. Alguns anos mais tarde, haveria de participar em vários filmes portugueses, interpretando papéis de russo. Morreu em 1957 e foi enterrado no Cemitério Israelita de Lisboa. 

3. O homem que, em 1951, ficou com a loja de Kamenezky relataria, cerca de cinquenta anos mais tarde, que Pessoa, depois de ter bebido demasiado, fazia às vezes uma sesta na minúscula cave (na qual era impossível estar de pé), escrevinhando poemas nas paredes. Depois da morte de Pessoa, com a passagem dos anos, as lendas sobre o poeta foram-se tornando cada vez mais ousadamente disparatadas.

4. Em 1921, Pessoa planeava traduzir para português Os Protocolos dos Sábios de Sião, obra que pretendia ser a reprodução das actas de uma reunião secreta de dirigentes judeus na qual se teria discutido a estratégia para dominar o mundo. Tendo circulado inicialmente na Rússia por volta de 1903, Os Protocolos, embora se tivesse provado ser um documento fraudulento, foi promovido por antissemitas, como Henry Ford nos Estados Unidos. O livro haveria de ser subscrito por Adolf Hitler em Mein Kampf.

noé sendas

Noé Sendas, da série Invisible Flowers, 2021
Cortesia do artista