Editorial
Prometeu e Fausto
José Manuel dos Santos e António Soares

Era o tempo em que o futuro era um ismo. A técnica dava ao trabalho humano uma epopeia moderna. Era o tempo em que, no arranque dessa faísca verbal que é a Ode Triunfal, Fernando Pessoa punha, na voz paroxística, paradoxal e imparável de Álvaro de Campos, esta exclamação metálica:

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Depósito de Nafta, Central Tejo, Lisboa

Depósito de Nafta, Central Tejo, Lisboa
© Fundação EDP

A electricidade chegava à capital de Portugal nesse início do século XX. Junto ao rio que os barcos atravessavam, transportando o carvão que uma unidade termoeléctrica precisava para laborar, a Central Tejo foi, durante meio século, a grande fábrica produtora da energia eléctrica que abastecia a cidade e a região da Grande Lisboa. Nela trabalhavam fluxos contínuos de operários que faziam da fuligem a sua respiração e a sua ameaça. A técnica mudava o trabalho e tudo o resto se mudava com eles. Mudava a vida e a morte. Mudava a física e a metafísica. Mudava a sociedade e a poesia, como se vê com Pessoa. Mudava a economia e a arte.

No arquivo histórico da Fundação EDP, conserva-se uma fundamental colecção de fotografias, da autoria de Kurt Pinto, sobre a Central Tejo, o trabalho que aí se fazia e os trabalhadores que arduamente o faziam. Olhamos essas imagens, onde as pessoas e as caldeiras são cenários umas das outras, e vemos inscrito nelas o sofrimento do trabalho duro atravessado pela exaltação da modernidade técnica.

Esses rostos que posaram para eternizar o instante, esses corpos cansados pelo esforço, esses fatos sujos de carvão e de óleo são imagens-símbolo de uma revolução antropológica. Há nestes homens ameaçados, que literalmente ganhavam o pão com o suor do seu rosto, uma pungente inocência.

É como se, ao olhá-los agora, da distância aberta por um tempo que correu vertiginosamente, eles não nos autorizassem ainda outro pensamento que não seja o que temos perante uma beleza secreta e sacrificial, cujo outro nome é o de uma dignidade perseguida pelo esplendor trágico com que, nesse Epidauro industrial, faziam face à némesis, a fúria vingativa que os deuses destinam aos que ousam desafiá-los com a sua húbris, mesmo inconsciente e involuntária.

O encontro entre o homem e a máquina que estas fotografias também testemunham é a renovação daquele mito com que os gregos deram a Prometeu (etimologicamente, «o que vê antes») a audácia sacrílega de roubar o fogo dos deuses. Desde a Primeira Revolução Industrial, essa ligação entre o trabalho e a técnica não mais parou de se soldar, como se fossem a prótese um do outro. Mas houve ainda quem visse no homem moderno, não um novo Prometeu, mas um novo Fausto, que, pela posse e o privilégio da técnica, vendeu a alma ao diabo.

Muitas vezes, os contrários coincidem e confirmam-se naquilo que não os destrói. Na década que começou em 1930, Ernst Jünger publicou O Trabalhador – Domínio e Figura e Walter Benjamin editou as três versões de A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. Vendo o mundo de lugares tão diferentes e com olhares tão opostos, estes dois homens, que pensaram agudamente o seu tempo e o que nele acontecia de novo, pondo-o em confronto com os passados de que o passado se faz, mostraram um acordo imprevisto e atónito sobre uma questão fundamental do presente deles e que se ampliou enormemente no nosso: o domínio avassalador, imperativo e operativo da técnica — e o seu papel central na configuração dos homens, das funções existenciais, dos papéis sociais e das condutas quotidianas.

Para o escritor de direita e para o pensador de esquerda, revolucionários de duas revoluções radicalmente divergentes, que se tornaram, um e outro, símbolos e rostos de duas culturas altivas e hostis, a técnica não é neutra, instrumental ou apenas utilitária.

Com o inquietante vulto de Heidegger a passar entre eles, sabem que a técnica é ontologicamente fundadora de um outro ser e de um outro ente, de uma outra arte e de uma outra cultura, de um outro espaço e de um outro tempo, de um outro modo e de um outro mundo. A técnica exerce o seu poder planetário, nivelando, homogeneizando, uniformizando, massificando, dessacralizando, desnaturalizando, desculturando, ressacralizando, refundando, reconstituindo. A técnica, com a sua soberania omnisciente, omnipotente e omnipresente, muda a relação do homem com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo. Muda o passado, o presente e o futuro. A técnica irrealiza a realidade e realiza a irrealidade.

A técnica fala uma língua nova que todos passaram a falar. A técnica enfrenta e vence os obstáculos que lhe fazem frente, arrastando todos os vestígios na sua aura. Para os dois autores alemães, com a técnica, a figura do trabalhador passou a ser outra e o trabalho não seria nunca mais o mesmo. Já nos Manuscritos Económico-Filosóficos, Karl Marx havia predito: «Como o trabalhador desceu à categoria de máquina, a máquina pode vir a ser sua concorrente.»

O trabalhador tornou-se o sujeito e o objecto da técnica, o seu produtor e o seu produto. É o seu amo e o seu escravo, o seu herói e o seu mártir. É a sua vítima e o seu apóstolo, o seu espião e o seu detective. É o seu doente e o seu médico, o seu militante e o seu dissidente. É o seu pontífice e o seu crente. O trabalho é o altar e o trabalhador o oficiante. É no trabalho que o trabalho se torna o seu corpo.

Este tem sido, desde há um século e meio, um debate feito de debates persistentes e peremptórios. Hermínio Martins, em Tecnologia, Modernidade e Política, defende que, entre os séculos XIX e XX, a literatura sociológica sobre o tema pode ser reconhecida e distinguida pela sua filiação em duas famílias-tradições ideais-típicas: a Prometeica e a Fáustica. Explica o grande sociólogo português:

Kurt Pinto

© Fundação EDP

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© Fundação EDP

A tradição Prometeica liga o domínio técnico da natureza a fins humanos e sobretudo ao bem humano, à emancipação da espécie inteira e, em particular, das «classes mais numerosas e pobres» (na formulação saint-simoniana). A tradição Fáustica esforça-se por desmascarar os argumentos Prometeicos, quer subscrevendo, quer procurando ultrapassar (sem solução clara e inequívoca) o niilismo tecnológico, condição pela qual a técnica não serve qualquer objectivo humano para além da sua própria expressão.

Se estes debates tinham uma actualidade ascendente naqueles anos 30 em que o mundo, sem saber, se preparava para uma barbárie inimaginável, cujo horror foi metodicamente construído, com acção ou omissão, cumplicidade ou cobardia, sob várias formas e modos, eles vêm ter ao nosso tempo, o de uma designada Quarta Revolução Industrial, com uma intensidade, uma validade e uma evidência que os tornam um salvo conduto para o futuro.

Pensar a técnica e o trabalho, nas suas mutações, pensando as suas causas e consequências, é pensar o que somos, o que sabemos e o que fazemos. É pensar a vida actual e o mundo contemporâneo, na instabilidade gerada pelas muitas rupturas e revoluções, sem desconhecer a vertigem provocada pelos seus efeitos. Pensar isso é pensar um pensamento que não pára de nos fugir.

Inteligência artificial, robotização, teletrabalho, telescola, telereuniões, teleconferências, tele-espectáculos, telegestão, telecontrolo, televigilância, veículos sem condutor, desmaterialização do trabalho, formação contínua, com a euforia tecnológica que geram, mas também com o desemprego, a sazonalidade, a inadaptação, a precariedade, a instabilidade, a incerteza, o solipsismo, a angústia e a ansiedade que provocam, são peças que se movem no xadrez digital que o nosso tempo joga consigo mesmo e com o futuro.

Tudo isto, que já estava presente, desde há tempos, tornou-se, para muitos, mais notório e nítido durante o confinamento total ou parcial obrigado pela covid-19, com o trabalho à distância do local de trabalho e na proximidade da casa e da vida privada. O que, por via dessas mudanças forçadas e intensivas, tem acontecido é a revelação de um movimento que existia e assim se densifica e impõe. É, afinal, a chegada abrupta e ampliada daquilo que já cá estava em germe. E ninguém sabe o que vai suceder nos próximos anos, num mundo que passou a ter medo de si próprio e numa sociedade cada vez mais atomizada, embora se julgue, com orgulho vão e presunção errada, cada vez mais conectada.

Pensar o trabalho, nesta passagem do seu presente para o seu futuro, é o propósito da secção «Assunto» da edição 10 de Electra. Este é um tema cuja complexidade — com tudo o que é nela ainda impensado e até mesmo impensável — o torna interminável e inacabado. Pensar as mudanças que, neste campo de batalha onde tantas coisas se decidem, estão a alterar radicalmente a vida individual e colectiva é apenas começar um trabalho que será sempre feito como work in progress.

Num mundo-espectáculo com tantas certezas categóricas e com tão grande falta de consciência do inapropriado e improdutivo disso, as interrogações e as perguntas que lhe dão voz são, afinal, a forma que concede ao tema do trabalho a sua actualidade, assente na mudança contínua, e a sua abertura ao incerto, ao desconhecido e ao imprevisível. A par de tantas outras, eis algumas:

Em que momento estamos no trânsito do trabalho para o pós-trabalho? Como vamos trabalhar e como é que isso muda o mundo e as pessoas? O novo modo de trabalhar é uma inesperada libertação ou uma inescapável submissão?

Qual o efeito dos novos sistemas de trabalho sobre os trabalhadores, a sua identidade e a sua vida profissional, psíquica, familiar, social, afectiva, sanitária? Em que medida e com que consequências as novas formas de organização e execução do trabalho condicionam e mudam a política e a geopolítica? Que efeitos terão sobre as garantias e liberdades fundamentais, sobre a guerra e a paz? Que democracias e que ditaduras teremos no porvir?

Que é ser reaccionário ou ser progressista neste domínio? Que é hoje ser contemporâneo perante as transformações que fazem do trabalho outro trabalho? Face aos novos sistemas metodológicos e funcionais de trabalho, quando é que a nossa disposição e atitude se podem dizer sincrónicas ou anacrónicas? Qual vai ser o regime de direitos dos trabalhadores? De que maneira vão o socialismo e o neoliberalismo olhar para esta revolução e com que consequência sobre o pensamento em que se fundamentam? Como vai ser, ou não ser, o sindicalismo do futuro? Qual é a nova relação entre trabalho e emprego? E entre trabalho e desigualdade? E entre trabalho e deslocalização? Quais os efeitos e impactos do futuro trabalho sobre a futura educação? De necessário, o trabalho passou a ser contingente? De permanente, completo e seguro, passou a efémero, parcial e precário?

Qual é a evolução do capitalismo com estes novos fundamentos, meios e objectivos postos na economia, na sociologia e na psicologia do trabalho? Como vai ser, depois disto, a «ideologia empresarial»? Que sentido tem falar hoje de classes e de luta de classes? Como vão ser lidos, à luz deste novo mundo, os filósofos, economistas, sociólogos, historiadores, cientistas e doutrinários políticos que configuraram a nossa modernidade? A partir de agora, que globalização haverá, nos seus avanços e recuos? Este trabalho novo favorece a internacionalização e com que vantagens e inconvenientes? Quais vão ser as novas relações entre trabalho e lazer, vida pessoal e vida profissional, vida activa e vida contemplativa? De que regressos o trabalho se vai fazer (regresso ao campo, regresso a casa, regresso à escola, regresso ao passado)? Qual é e qual vai ser a relação entre trabalho, ecologia e alterações climáticas? Qual será a nova ética do trabalho?

Neste dossier, necessariamente incompleto e provisório, sobre o trabalho, o intuito é o de lançar para a arena das ideias móveis algumas daquelas que nos servem de diapasão para afinar os vários instrumentos de que a grande orquestra do trabalho se faz.

Falar do trabalho é falar de uma realidade e de uma utopia. É falar de um valor material e de um valor moral; de uma história e de uma sociologia; de uma economia e de uma filosofia; de uma ideologia e de uma religião; de uma literatura e de uma arte. É falar do que nos ocupa a vida e do que, às vezes, nos leva à morte.

No princípio e no fim da vida de cada um, o trabalho fala do nosso nascimento e da nossa morte: trabalho de parto e trabalho de luto. E o trabalho do sonho liga-os e desliga-os, dando-lhes uma forma maior e mais fugidia do que a deles.

Da Bíblia a Marx, de Platão a Keynes, de Sísifo a Camus, de Hércules a Sartre, do budismo a Max Weber, de Rousseau a Dickens, de Locke a Zola, de Hobbes a Fourier, de Adam Smith a Hegel, de Tomás de Aquino a Hannah Arendt, de Kant editoriala João Paulo II, de Campanella a Foucault, de Condorcet a Eça de Queiroz, de Nietzsche a Bakunin, de Thomas More a Proudhon, dos Situacionistas a Freud, de Eisenstein a Visconti, de Lewis Hine a Fritz Lang, de Frederick Taylor à Beat Generation, de Giuseppe Pellizza da Volpedo ao grupo Krisis, de Marcuse a Frank Capra, de Charlie Chaplin a Bernard Stiegler, de Tocqueville a Pierre Rosanvallon, de Adorno a Thomas Piketty, o trabalho foi sendo afirmação e negação.

Conta a Bíblia:

E Deus disse em seguida ao homem: Porque […] comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias da tua vida. […] Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado: porque és pó e pó te hás de tornar.

O Livro do Génesis

Define a física: o trabalho é uma força aplicada a um corpo produzindo o seu deslocamento.

Diz a economia: o trabalho é o factor de produção mais importante. O trabalho pressupõe esforço visando um objectivo, consciência e intencionalidade.

Explica a história: a palavra «trabalho» vem da palavra latina tripalium, instrumento de tortura e de castigo para os escravos. O trabalho era, nesse tempo, depreciado e depreciativo. Para os gregos antigos, só o ócio criativo era digno do homem livre. Esta concepção adaptou-se, mas persistiu na era medieval. A ética protestante vem dar ao trabalho um valor moral fundamental. No século xix, sobretudo com a Revolução Industrial, o trabalho ganhou uma importância central nas nossas sociedades. Na sociedade burguesa, o trabalho passou a gerar boa consciência e boa reputação, em vez de má consciência e má-reputação, trocando assim o seu lugar axiológico com o do ócio, que durante séculos tinha mais boa fama e boa fortuna.

A partir das últimas décadas do século xx, com as novas revoluções tecnológicas digitais, o trabalho e o que dele pensamos passou a estar em trânsito para um mundo ainda desconhecido, aqui ou ali relanceado pelo nosso olhar curioso ou inquieto. Uma coisa é certa: ao longo dos tempos, o trabalho, a maneira de o conceber e de o praticar, modulou as grandes mudanças políticas, sociais e culturais.

Simone de Beauvoir afirma:

É pelo trabalho que a mulher em grande parte atravessou a distância que a separava do homem, é só o trabalho que lhe pode garantir uma liberdade concreta.

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© Fundação EDP

O trabalho também está no centro das questões da igualdade e da desigualdade de género.

Visto como condenação e salvação, submissão e libertação, prisão e liberdade, virtude e defeito, causa e bandeira, união e divisão, produto e mercadoria, força e fraqueza, prazer e sofrimento, identidade e alienação, pobreza e riqueza, movimento e paragem, o trabalho passou da poesis à práxis que nos transforma. E agora é já — e cada vez mais — da passagem do trabalho ao pós-trabalho que se fala.

Do provérbio cómico, com sabor cervantino, «O homem que trabalha perde um tempo precioso» ao slogan tornado trágico «Arbeit macht frei» [O trabalho liberta], posto à entrada dos campos de concentração e extermínio nazi, o trabalho está no centro das grandes questões humanas. Continuará a ser assim no futuro?

Vindos de um tempo que, apesar de exausto, ainda não está extinto, chegam até a nós os rostos nus dos trabalhadores da Central Tejo, que Kurt Pinto captou com uma sensibilidade feita de curiosidade cúmplice. Olhamo-los e sabemos que é verdadeira a afirmação de Emmanuel Levinas de que o rosto do outro fala e é nele que principia a nossa responsabilidade e o nosso dever de lhe corresponder. Aqui, com este dossier sobre o trabalho, são ainda essa responsabilidade e esse dever que não se afastam de nós.

stes dias de uma estranheza dramática, temos encontrado nos sinais que recebemos dos nossos leitores a confirmação da necessidade, da urgência e da validade de um debate aberto e profundo, que tem a vontade de conhecimento e o desejo de compreensão como motores. Ao pensarmos o trabalho e a técnica, pensamos o tempo que os muda e nos muda.

E já que a técnica está no centro deste Editorial e desta edição que ele introduz, damos a esse falar da técnica um falar da nossa revista, registando, neste lugar em que a conversa com o leitor é um início, o facto de a Electra passar a ter um site próprio e um perfil no Instagram.

Reafirmamos aquilo que dissemos, desde a sua apresentação: esta é uma revista pensada e realizada a partir de uma ideia editorial que é inseparável de uma ideia visual, com um design gráfico e uma direcção de arte especialmente concebidos para a impressão em papel. Por isso dizemos: Electra é uma revista que se lê e que se vê! E acrescentamos: Electra é uma revista que se lê e que se guarda.

No entanto, esta revista como projecto editorial, com vocação internacional, passou agora a integrar estes dois instrumentos digitais de divulgação e projecção global, que reflectem, prolongam e reforçam a sua matriz conceptual e o seu ambiente estético, tornando-a ainda mais firmemente igual a si mesma e consistentemente diferente de outras. É a isto que se chama identidade e alteridade, autonomia e heteronomia, que são o verso e reverso da moeda onde se inscreve o rosto da Electra, que continua a perguntar: Que poderemos dizer que seja certo?

É esta a pergunta que tentamos continuar a responder.

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