A electricidade chegava à capital de Portugal nesse início do século XX. Junto ao rio que os barcos atravessavam, transportando o carvão que uma unidade termoeléctrica precisava para laborar, a Central Tejo foi, durante meio século, a grande fábrica produtora da energia eléctrica que abastecia a cidade e a região da Grande Lisboa. Nela trabalhavam fluxos contínuos de operários que faziam da fuligem a sua respiração e a sua ameaça. A técnica mudava o trabalho e tudo o resto se mudava com eles. Mudava a vida e a morte. Mudava a física e a metafísica. Mudava a sociedade e a poesia, como se vê com Pessoa. Mudava a economia e a arte.
No arquivo histórico da Fundação EDP, conserva-se uma fundamental colecção de fotografias, da autoria de Kurt Pinto, sobre a Central Tejo, o trabalho que aí se fazia e os trabalhadores que arduamente o faziam. Olhamos essas imagens, onde as pessoas e as caldeiras são cenários umas das outras, e vemos inscrito nelas o sofrimento do trabalho duro atravessado pela exaltação da modernidade técnica.
Esses rostos que posaram para eternizar o instante, esses corpos cansados pelo esforço, esses fatos sujos de carvão e de óleo são imagens-símbolo de uma revolução antropológica. Há nestes homens ameaçados, que literalmente ganhavam o pão com o suor do seu rosto, uma pungente inocência.
É como se, ao olhá-los agora, da distância aberta por um tempo que correu vertiginosamente, eles não nos autorizassem ainda outro pensamento que não seja o que temos perante uma beleza secreta e sacrificial, cujo outro nome é o de uma dignidade perseguida pelo esplendor trágico com que, nesse Epidauro industrial, faziam face à némesis, a fúria vingativa que os deuses destinam aos que ousam desafiá-los com a sua húbris, mesmo inconsciente e involuntária.
O encontro entre o homem e a máquina que estas fotografias também testemunham é a renovação daquele mito com que os gregos deram a Prometeu (etimologicamente, «o que vê antes») a audácia sacrílega de roubar o fogo dos deuses. Desde a Primeira Revolução Industrial, essa ligação entre o trabalho e a técnica não mais parou de se soldar, como se fossem a prótese um do outro. Mas houve ainda quem visse no homem moderno, não um novo Prometeu, mas um novo Fausto, que, pela posse e o privilégio da técnica, vendeu a alma ao diabo.
Muitas vezes, os contrários coincidem e confirmam-se naquilo que não os destrói. Na década que começou em 1930, Ernst Jünger publicou O Trabalhador – Domínio e Figura e Walter Benjamin editou as três versões de A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. Vendo o mundo de lugares tão diferentes e com olhares tão opostos, estes dois homens, que pensaram agudamente o seu tempo e o que nele acontecia de novo, pondo-o em confronto com os passados de que o passado se faz, mostraram um acordo imprevisto e atónito sobre uma questão fundamental do presente deles e que se ampliou enormemente no nosso: o domínio avassalador, imperativo e operativo da técnica — e o seu papel central na configuração dos homens, das funções existenciais, dos papéis sociais e das condutas quotidianas.
Para o escritor de direita e para o pensador de esquerda, revolucionários de duas revoluções radicalmente divergentes, que se tornaram, um e outro, símbolos e rostos de duas culturas altivas e hostis, a técnica não é neutra, instrumental ou apenas utilitária.
Com o inquietante vulto de Heidegger a passar entre eles, sabem que a técnica é ontologicamente fundadora de um outro ser e de um outro ente, de uma outra arte e de uma outra cultura, de um outro espaço e de um outro tempo, de um outro modo e de um outro mundo. A técnica exerce o seu poder planetário, nivelando, homogeneizando, uniformizando, massificando, dessacralizando, desnaturalizando, desculturando, ressacralizando, refundando, reconstituindo. A técnica, com a sua soberania omnisciente, omnipotente e omnipresente, muda a relação do homem com a natureza, com os outros homens e consigo mesmo. Muda o passado, o presente e o futuro. A técnica irrealiza a realidade e realiza a irrealidade.
A técnica fala uma língua nova que todos passaram a falar. A técnica enfrenta e vence os obstáculos que lhe fazem frente, arrastando todos os vestígios na sua aura. Para os dois autores alemães, com a técnica, a figura do trabalhador passou a ser outra e o trabalho não seria nunca mais o mesmo. Já nos Manuscritos Económico-Filosóficos, Karl Marx havia predito: «Como o trabalhador desceu à categoria de máquina, a máquina pode vir a ser sua concorrente.»
O trabalhador tornou-se o sujeito e o objecto da técnica, o seu produtor e o seu produto. É o seu amo e o seu escravo, o seu herói e o seu mártir. É a sua vítima e o seu apóstolo, o seu espião e o seu detective. É o seu doente e o seu médico, o seu militante e o seu dissidente. É o seu pontífice e o seu crente. O trabalho é o altar e o trabalhador o oficiante. É no trabalho que o trabalho se torna o seu corpo.
Este tem sido, desde há um século e meio, um debate feito de debates persistentes e peremptórios. Hermínio Martins, em Tecnologia, Modernidade e Política, defende que, entre os séculos XIX e XX, a literatura sociológica sobre o tema pode ser reconhecida e distinguida pela sua filiação em duas famílias-tradições ideais-típicas: a Prometeica e a Fáustica. Explica o grande sociólogo português:
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