Assunto
O trabalho na era do capitalismo digital
António Guerreiro

Anunciado muitas vezes ao longo do século XX, à medida que cresceu o espectro da «desocupação tecnológica», o fim do trabalho tornou-se um tema forte com a emergência das novas tecnologias digitais e com o desenvolvimento das máquinas inteligentes que substituem os humanos na produção. Este artigo percorre os vários anúncios do fim do trabalho (ou, pelo menos, do emprego), incidindo sobretudo num debate contemporâneo sobre a «crise do trabalho», que ora ganha uma feição utópica, ora traça um cenário apocalíptico.

Anunciado muitas vezes ao longo do século XX, à mediada que cresceu o espectro da «desocupação tecnológica», o fim do trabalho tornou-se um tema forte com a emergência das novas tecnologias digitais, com o desenvolvimento das máquinas inteligentes que substituem os humanos na produção. Este artigo percorre os vários anúncios do fim do trabalho (ou, pelo menos, do emprego), incidindo sobretudo num debate contemporâneo sobre a «crise do trabalho», que ora ganha uma feição utópica, ora traça um cenário apocalíptico.

Um livro publicado em 1995 nos eua e imediatamente traduzido em várias línguas, da autoria do economista e sociólogo Jeremy Rifkin, tornou-se um best seller e objecto de discussões e polémicas que atravessaram fronteiras nacionais e disciplinares. O livro tinha um título eloquente e categórico, The End of Work, o que acabou por ocultar o subtítulo que lhe dava o tom mais consistente de uma investigação desenvolvida ao longo de cerca de quatrocentas páginas: The Decline of the Global Labor Force and the Dawn of the Post-Market Era. A recepção crítica do livro foi de extremo a extremo, ora foi acusado de charlatanismo, ora obteve elogios superlativos, ao ponto de se considerar que ele anunciava — recolhendo e analisando uma abundância de dados e números relativos às transformações da sociedade do trabalho ao longo do século XX — «a mais colossal convulsão antropológica e sociológica que a humanidade jamais conheceu. Só a revolução neolítica pode comparar-se com ela em importância». Encontramos esta afirmação hiperbólica num posfácio à edição francesa do livro de Rifkin, da autoria do sociólogo Alain Caillé.

A tese de Rifkin é muito simples e, como veremos, não tem nada de novo, muito embora conheça diferentes modalizações: está em curso uma automatização integral e generalizada do trabalho que a informatização da sociedade iniciada nos anos 60 do século passado veio acelerar. As novas tecnologias da informação e das telecomunicações e, em geral, o desenvolvimento da «inteligência artificial» (um conceito criado no Verão de 1956, em Dartmouth, por ocasião de um encontro de investigadores nesta matéria) disseminaram progressivamente os robots e toda a espécie de máquinas inteligentes aos vários sectores da produção. Como resultado, estamo-nos a aproximar de um mundo sem trabalhadores, de uma redução tão drástica do trabalho humano que em meados do século XXI — nas previsões de Rifkin — só 5% da população adulta será necessária para assegurar o funcionamento do sector industrial. Tendo em conta a velocidade a que avança a automatização e a smartification (na infra-estrutura da sociedade automática devemos colocar o sistema global em rede chamado Internet), Rifkin sentiu-se apto a anunciar o fim próximo da sociedade do trabalho e o efectivo colapso do modelo de racionalidade económica que lhe corresponde.

Assim descrita no seu núcleo teórico fundamental, a tese de Rifkin não parece constituir grande novidade. Muito antes dele, já os sociólogos da Escola de Frankfurt tinham criado o conceito de «desocupação tecnológica». Mas o seu livro teve o efeito de desfazer com crueldade todas as ilusões que pudessem subsistir, mesmo depois de a automatização e os seus efeitos se revelarem visíveis. Na verdade, está instaurado um mecanismo de denegação e tudo continua a ser feito, em termos políticos, para preservar uma sociedade organizada em função da centralidade do trabalho, como se o pleno emprego continuasse a ser uma meta alcançável e o estado normal — e único — de funcionamento de uma economia. Assim sendo, o desemprego só pode ser uma anomalia que ocorre em tempo de «crise», como se a crise não fosse, afinal, o que vigora em permanência. Se a realidade mostra que este pensamento se tornou inadequado, então altera-se a visão da realidade através das palavras e dos conceitos: emprego e desemprego, no tempo da uberização, da precariedade, da intermitência e das invenções engenhosas de ocupação do tempo, já não abrangem o mesmo universo nem significam o mesmo que significaram na época iniciada pela automatização levada a cabo desde o taylorismo, aquela em que se deu uma substituição da potência física dos corpos e dos músculos pelas máquinas. Ora, Rifkin mostra que, com a automatização, a normalidade está do lado do desemprego e que nem tem sentido, nesta nova ordem, continuarmos a pensar que o par de categorias opostas, emprego–desemprego, tem ainda uma pertinência analítica e descritiva. Está criada uma entropia e ela é bem visível nos níveis de «desemprego» nas camadas jovens, mesmo entre aqueles que têm qualificações e estudos elevados. A inteligência artificial substitui-os com grande vantagem para os preços de produção. Em Outubro de 2014, um canal francês de televisão emitiu uma reportagem, citada por Bernard Stiegler em La Société automatique (2015), que se chamava «Vous serez peut-être remplacé par un robot en 2025».

A insistência numa ordem económica que tem sempre no seu horizonte o pleno emprego — ou que, pelo menos, sente a necessidade de salvar essa aparência a todo o custo — faz com que seja tão difícil introduzir inovações, tais como a redução do tempo de trabalho e novas formas de distribuir a massa de trabalho que ainda está por conta dos humanos. E aí temos, então, uma sociedade cada vez mais disfuncional quanto à questão do trabalho. Rifkin descreve-a desta maneira: de um lado está uma elite que tem de facto trabalho, mas, paradoxalmente, tem cada vez menos tempo (não dispor do seu tempo é o que define a condição proletária, por isso é que se deu uma proletarização da classe média); e há depois os outros, a massa de desempregados, de precários, de supranumerários, de camadas da população que, mesmo tendo trabalho, não sai da situação de pobreza. André Gorz, o sociólogo francês que é hoje uma referência fundamental no estudo das transformações do trabalho e suas consequências, escreveu que a mensagem ideológica da sociedade do trabalho e dos assalariados era a de que «pouco importa de que emprego se trata, o importante é ter um». A partir do momento em que o emprego, em si, já é uma conquista, a mensagem passou a ser: «Pouco importa o montante do salário, desde que tenha um emprego.»

"Segundo Rifkin, estamo-nos a aproximar de um mundo sem trabalhadores, de uma redução tão drástica do trabalho humano que em meados do século XXI só 5% da população adulta será necessária para assegurar o funcionamento do sector industrial."

Allan Sekula Work

Allan Sekula, Isto não é a China: Uma fotonovela, 1974 (detalhe)
© Allan Sekula Studio

A situação do fim do trabalho devido à automatização, tal como ela é descrita por Rifkin, causou uma enorme polémica porque ele traçou um cenário apocalíptico onde antes se tinha visto as condições de possibilidade para uma plena emancipação do homem e, finalmente, a instauração do «trabalho livre». Marx anunciou esta utopia no célebre «Fragmento sobre as máquinas», que faz parte dos Grundrisse, os manuscritos de 1857–58. É aí que ele utiliza a expressão inglesa «general intellect» para designar os novos factores do conhecimento e da inteligência (num sentido próximo daquilo a que hoje chamamos «informação») definindo uma nova «lei do valor». Segundo a hipótese de Marx, as máquinas tornar-se-iam tão eficazes que substituiriam os homens nas tarefas maquinais de produção de mercadorias, libertando-os assim do trabalho alienante e criando as condições para uma entrega ao conhecimento que faz aumentar a felicidade individual e colectiva. Um «cérebro humano colectivo» seria assim a figura de um novo e imenso poder.

As potencialidades do marxiano «general intellect» revelaram-se, ao longo do século xx, com um sentido bem diferente. E o «fim do trabalho», muito antes do livro de Jeremy Rifkin, foi sendo anunciado, mas sem a promessa de que iríamos alcançar uma utopia. As teses de Rifkin desenham a possibilidade de um cenário de catástrofe já antevisto por Hannah Arendt, em 1958, em A Condição Humana: «O que temos à nossa frente é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, privados da única actividade que lhes resta. Não podemos imaginar nada de pior.» Uma sociedade de trabalhadores sem trabalho é aquela que continua a funcionar segundo o modelo económico da sociedade de trabalho quando este, desmaterializado ou não, passou a ser feito por máquinas inteligentes.

"A mensagem ideológica da sociedade do trabalho era a de que «pouco importa de que emprego se trata, o importante é ter um». A partir do momento em que o emprego, em si, já é uma conquista, a mensagem passou a ser: «Pouco importa o montante do salário, desde que tenha um emprego.»"

Este desfasamento começa a revelar-se fatal. Talvez o dogma capitalista mais responsável pela insistência nas políticas da sociedade de trabalho seja o da «destruição criadora», formulado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter. A destruição criadora designa a força vital do capitalismo para se renovar e se reinventar incessantemente, fazendo até das suas crises cíclicas o motor para anular o antigo e criar outras formas de organizar a produção e o trabalho, de maneira a multiplicar o lucro. A ideia de uma destruição criadora implica também o postulado ideológico segundo o qual os empregos destruídos num sector são substituídos por outros, em novos sectores; e as tecnologias obsoletas são substituídas por outras que vão criar empregos, provocando apenas um dano colateral, um mal menor, que consiste em deixar para trás quem não tem capacidade de se actualizar e adaptar. As ideias de inovação e de empreendedorismo exaltadas pelo regime neoliberal são filhas da «destruição criadora» e servem de legitimação de uma ordem em que o desemprego estrutural está à vista, mas continua em vigor a lógica económica, política e social do pleno emprego. E isto significa que os sistemas sociais e políticos, assim como toda a máquina dos Estados, quase nada têm feito para assegurar a possibilidade de vivermos de outra maneira, ainda que esteja à vista que a sociedade do trabalho entrou em colapso. A manifestação mais aberrante deste estado de coisas é o facto de quem tem trabalho ter o seu tempo cada vez mais absorvido por ele, de tal modo que o burnout se tornou uma doença do nosso tempo. É a doença do bom cidadão trabalhador que, exausto e sem tempo, apresenta os seguintes sintomas: fadiga até ao limite do esgotamento, ansiedade, incapacidade de controlar o stress, despersonalização e impotência. Uma das objecções ao teletrabalho (que se impôs, graças à pandemia e contra a grande inércia que permanece neste campo) é precisamente o de que ele torna indestrinçáveis as fronteiras entre o trabalho e a vida, fazendo com que o trabalhador esteja sempre mobilizado ou, pelo menos, na condição de mobilizável. E em vez de gerir o tempo de trabalho conforme as suas conveniências, é toda a sua vida que é gerida à distância.

Ora, o livro de Rifkin, embora com alguns equívocos conceptuais (talvez o mais importante deles seja aquele que lhe é apontado por Stiegler: o de confundir trabalho com emprego), fornece no entanto dados seguros para percebermos o seguinte: se nas duas primeiras fases do capitalismo foi possível verificar a validade da «destruição criadora», se o fim do campesinato deu lugar ao operariado e o operariado deu lugar aos serviços terciários, na época da informática, da robotização, das máquinas inteligentes, todo o sector dos serviços foi eliminando o trabalho humano. Aquilo que na linguagem dos ciclos económicos do capitalismo se chama «retoma» ou «recuperação» deixou de coincidir com uma reposição dos níveis anteriores do emprego. Na verdade, o sistema já só recupera prosseguindo a sua lógica de eliminação de postos de trabalho. E só artificialmente, sustenta Rifkin, e à custa de estatísticas que jogam com definições inadequadas ou mesmo fraudulentas do que é hoje o emprego e o desemprego é que se consegue apresentar números que desmentem o desemprego estrutural. E quem julga que o emprego diminui aqui para se instalar ali, noutros lugares do planeta, está enganado, isso só acontece temporariamente, como mostra Rifkin.

Um episódio que ilustra bem a dificuldade em assumir esta nova condição e agir em conformidade tem como protagonista o multimilionário americano Nick Hanauer. Convidado a fazer uma conferência sobre desigualdade, em Maio de 2012, por uma instituição que organiza as TED Conferences, Hanauer teve a ousadia de dizer que as empresas não criam empregos, estes são criados por um «feedback loop» entre os clientes — os consumidores — e as empresas. Daí, a conclusão de que é falsa a ideia de que o aumento dos impostos sobre os ricos faz diminuir a criação de empregos. Estas afirmações provocaram tão fortes resistências que a instituição resolveu não difundir o vídeo da palestra, o que foi denunciado como censura por alguns jornais que, ao relatarem o que se tinha passado, amplificaram o discurso deste empresário.

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Konrad Klapheck, Alarme, 1991
Cortesia do artista e Galerie Lelong & Co.

"Quem hoje tem trabalho, vê o seu tempo cada vez mais absorvido por ele, de tal modo que o burnout se tornou uma doença do nosso tempo."

Mesmo quem ocupa os mais altos postos de trabalho, em que o «valor» é o conhecimento e a inteligência, está ameaçado. Bernard Stiegler, em La Société automatique, dá este exemplo elucidativo: Alan Greenspan, que foi presidente da Reserva Federal dos eua de 1987 a 2006, quando foi obrigado a justificar o facto de ter ignorado a especulação financeira que iria dar origem à crise que eclodiu em 2008, desculpou-se com os softwares sofisticados que tornam as operações imateriais, instantâneas, obscuras e sem fronteiras. Conclui Stiegler: afinal, aquele homem que ocupava a presidência de uma das instituições mais poderosas do planeta era um simples empregado e não sabia de nada, as máquinas sabiam muito mais do que ele que não passava de um proletário, embora muito bem pago, se considerarmos que a proletarização não é uma questão de dinheiro, mas de saber e de autonomia que ele confere.

Para percebermos que esta questão do fim do trabalho não é nova e as consequências da automatização começaram a ser avaliadas muito antes de termos chegado às novas tecnologias digitais e ao domínio dos big data, devemos mencionar o sociólogo francês Georges Friedmann, que em meados do século passado publicou dois estudos cujos títulos mostram bem o que se estava a configurar: Où va le travail humain? (1950) e Le Travail en miettes (1956). Friedmann foi um sociólogo e filósofo interessado pelos problemas levantados pela técnica e pelos efeitos da maquinaria cada vez mais sofisticada e poderosa no mundo do trabalho. E depois de Friedmann, geralmente considerado o fundador da sociologia do trabalho, temos André Gorz, e Habermas, e tantos outros que nos últimos setenta anos diagnosticaram o fim do trabalho ou a implosão da categoria do trabalho. A questão tornou-se tão actual e ganhou uma tal evidência que passou dos círculos especializados das ciências sociais e políticas para os ambientes mais profanos e pragmáticos. E foi assim que em 1995 teve lugar em São Francisco o primeiro State of the World Forum, onde estiveram presentes algumas centenas de pessoas poderosas, de todo o mundo, para discutir o que fazer no futuro com 80% da população que será inútil para o sistema de produção. Quase meio século depois de Friedmann, a questão do futuro do trabalho entrou tímida e esporadicamente na agenda política das potências ocidentais, instigadas sobretudo pelas pesquisas da sociologia. Mas, como sabemos, a resposta efectiva e pragmática continua a ser quase inexistente.

O fim do trabalho descrito por Rifkin tem um carácter apocalíptico, de desastre civilizacional. Não porque este economista tenha a nostalgia da antiga ordem do trabalho e da sociedade que lhe corresponde, mas porque não houve (e um quarto de século depois continua a não haver) preparação para este processo e acentuou-se o desfasamento entre a nova realidade tecnológica e a ordem social e política, incapaz de integrar nos seus cálculos a nova condição do trabalho automatizado e realizado por máquinas inteligentes.

Perspectiva oposta, cheia de esperança, é a dos autores do «Manifesto Aceleracionista», Nick Srnicek (do qual este dossier da Electra inclui um texto) e Alex Williams. Num livro de 2015, intitulado Inventing the Future: Postcapitalism and a World Without Work, desenvolvem a ideia de um futuro regime pós-capitalista, onde é superado o problema de escassez de trabalho que atinge uma camada cada vez maior da população. Já não se trata de descrever um fim, como fizeram Rifkin e muitos outros autores, mas de enunciar as condições sob as quais é possível vislumbrar um começo. E a esse começo chamam Srnicek e Williams «pós-trabalho». O trabalho ficou para trás e o objectivo é chegar ao pleno desemprego: «The goal of the future is full unemployment», é a frase do escritor de ficção científica Arthur C. Clarke que os arautos do pós-trabalho colocam como epígrafe de um dos capítulos do seu livro. Lembram eles que Keynes, nos anos 30 do século passado, profetizou que daí a um século trabalharíamos só quinze horas por semana. A profecia não se realizou e, pelo contrário, estamos hoje ligados ao trabalho de maneira mais permanente do que no tempo de Keynes. Um teórico destas questões, Anselm Jappe, escreveu num dos seus livros, As Aventuras da Mercadoria (Antígona, 2006), que, em média, o tempo de trabalho é hoje superior ao que era no século XIX.

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Konrad Klapheck, O sacrifício, 1982
Cortesia do artista e Galerie Lelong & Co.

Superar a sociedade do trabalho e instaurar o «pós-trabalho», não de acordo com as velhas utopias transgressivas e libertárias que reivindicavam o «direito à preguiça», mas aproveitando a logística e as ferramentas do capitalismo, é o programa teórico desenvolvido em Inventing the Future, onde se demonstra que as novas condições tecnológicas permitem essa reivindicação e tornam-na até uma via de salvação. Enquanto a crítica do trabalho sempre tinha significado uma crítica do capitalismo, os defensores de uma sociedade do pós-trabalho seguem um pensamento diferente: afirmam que é acelerando os ganhos proporcionados pelo capitalismo, instaurando a automatização total, que se alcança esse reino da liberdade que é o pós-trabalho. Evidentemente, não se chega lá sem antes serem cumpridas certas condições que os dois autores deste livro-manifesto enumeram. Entre elas está a eliminação de todos os entraves à automatização completa da economia (desde logo, o papel que nesses entraves têm desempenhado os sindicatos, colados aos modelos e às problemáticas da sociedade do trabalho), uma redução drástica do tempo de trabalho, a implantação de um rendimento básico universal que permita a cada cidadão sobreviver, quaisquer que sejam os seus recursos, a passagem dos empregos a um regime voluntário e não forçado. Tudo isto, assim resumido, pode parecer um programa completamente utópico e fora de toda a realidade. Mas a argumentação dos «aceleracionistas», tão discutível em muitos aspectos, tem a capacidade de nos fazer ver que é o regime de trabalho em que vivemos que está há muito tempo fora da realidade. Todas as conquistas tecnológicas e todos os avanços na automatização e na inteligência artificial não foram seguidos como se impunha e era lógico no plano da organização social e política. E a questão do emprego–desemprego continua a ser vista a partir das premissas da sociedade do trabalho que vigorou até ao final da segunda revolução tecnológica.

Há um optimismo tecnológico e uma felicidade antropológica no programa de Nick Srnicek e Alex Williams dos quais Bernard Stiegler não participa. O autor de La Société automatique propõe-se nesse livro pensar o futuro do trabalho sob a condição de um capitalismo que se tornou puramente computacional. E inicia essa tarefa convocando precisamente uma figura bem representativa: Bill Gates. No dia 13 de Março de 2014, relata Stiegler, Bill Gates declarou em Washington que a «software substitution» se vai estender a todos os domínios, das smart cities às fábricas da Mercedes, dos transportes ligeiros e pesados sem condutores aos supermercados sem caixas e sem pessoal de manutenção. O resultado, segundo Gates, é «uma diminuição drástica do emprego ao longo dos próximos vinte anos, ao ponto de este se tornar uma situação excepcional». É a partir destas declarações, que não têm nada de novo mas importam pelo lugar de onde vêm, que Stiegler vai analisar as consequências da automatização. Pessimista, ele diagnostica uma desintegração de todos os aspectos da vida social. Não é que tenha a pretensão de restaurar modelos antigos ou acredite na possibilidade de recuperar o pleno emprego. A grande questão que coloca é a de que as tecnologias digitais, a robotização generalizada, são um pharmakon, simultaneamente o veneno que mata e o remédio que cura. A automatização integral e a governamentalidade algorítmica não se tornaram apenas instrumentos com os quais se acede a um reino de felicidade, em que o homem se vê liberto de todas as corveias, mas são sistemas e estruturas que penetraram no interior do cérebro e fomentaram as condições da «miséria simbólica». Ao contrário dos «aceleracionistas», para quem a automatização é vista na sua dimensão meramente instrumental, para Stiegler a sociedade automática significa também a automatização dos espíritos e a prossecução de um modelo irracional. Por isso, a sua preocupação não é tanto o desaparecimento progressivo dos empregos na sociedade automática (situação que ele acha irreversível e que corrobora com imensos dados que prevêem um aumento do desemprego a atingir níveis altíssimos), mas a necessidade de estabelecer uma clara distinção entre emprego e trabalho. O emprego, que se tornou hegemónico na sociedade automática, pode desaparecer, não faz falta. Mas sobre as ruínas do emprego deve erguer-se o trabalho, «o verdadeiro trabalho» e não aquilo a que o antropólogo americano David Graeber, recentemente falecido, chamou «bullshit jobs», isto é, trabalhos de merda. O que é o «verdadeiro trabalho»? É o trabalho que não é pura e simplesmente o rosto cego, mecânico e automatizado de uma actividade remunerada. Stiegler, dotado de um sofisticado arsenal teórico, aplica-se a fazer a defesa da dimensão criativa do trabalho e a combater a lógica do emprego que revela o outro lado da automatização: a automatização dos espíritos. Neste aspecto, ele tenta pensar as consequências da «sociedade algorítmica», governada pelo poder e a lógica dos softwares, para além das análises tradicionais da sociologia do trabalho e dando a ver o que geralmente se esconde na narrativa tecnológico-digital. A sua visão não é pessimista à maneira de Rifkin, para quem o «fim do trabalho» é o início de um apocalipse social, mas à maneira de uma análise das profundezas que lê e interpreta a linguagem dos sintomas. Ele faz-nos perceber com toda a clareza que a questão do trabalho, das suas metamorfoses e do seu destino, é uma questão maior do nosso tempo e alimenta sonhos e pesadelos.