Livro de Horas
Era tudo teatro
Jelena Bogavac

«Alguém disse ontem que se o ano de 2020 fosse um país seria a Sérvia» — lê-se neste intenso e belo diário, escrito na capital da Sérvia, num tempo em que a pandemia tomou conta de tudo. De Belgrado, vê-se o mundo. A sua autora, Jelena Bogavac, é encenadora, dramaturga, escritora, poeta, performer, editora, com participação activa nos mais importantes festivais internacionais de teatro contemporâneo. A partir da sua experiência pessoal, familiar, artística e intelectual, Jelena observa, pensa e conclui: «A vida está a acontecer agora. E o depois nem sequer está próximo.» «O grande medo é substituído pela grande loucura.» Neste diário, onde isto se afirma, os dias estão tão presentes que não precisam de ser numerados. São os dias dela e da sua cidade — são os nossos dias e dos nossos lugares, às vezes sem lugar.

Belgrado. A segunda onda da epidemia. Novas medidas anti-epidémicas. Mais um confinamento. As pessoas estão mais ou menos loucas. O grande medo é substituído pela grande loucura. Alguém disse ontem que se o ano de 2020 fosse um país seria a Sérvia. Pequena grande verdade que nos faz rir.

Todas as noites há manifestações de protesto diante do Parlamento. Há dois grupos de manifestantes. O primeiro é uma juventude pacífica que se senta na rua, com máscaras, a cantar, de mãos dadas, e a gritar: «Senta-te, não deixes que te dêem a volta!» O outro é um grupo de manifestantes violentos, provocam conflitos, viram contentores de lixo e agridem a polícia. Uns são «estudantes» e os outros «a direita». Estão todos furiosos com o presidente, com o governo e com a primeira-ministra. A única diferença entre eles é a abordagem. Acontece o mesmo em quase todas as cidades da Sérvia. A situação está escaldante, digamos assim.

O risco que correm é enorme. Os hospitais já estão cheios. O sistema de saúde está por um fio. A loucura e a revolta substituíram o desespero.

Como é que chegámos a isto? A este caos que provavelmente antecede um cataclismo ainda maior.

No início da pandemia, antes de terem sido tomadas as primeiras medidas, o chefe de Estado reuniu um grupo de especialistas médicos. Falaram connosco com sorrisos no rosto. Disseram piadas. Disseram que o coronavírus era o vírus mais engraçado do mundo. Médicos com formação especializada aconselharam--nos a ir a Milão fazer compras porque por lá os preços deviam ter caído. Isto numa altura em que morriam cem pessoas por dia em Itália. Os nossos especialistas, o nosso presidente e a nossa primeira-ministra riam. O país foi tranquilizado e esclarecido no pequeno ecrã. O coronavírus não atacaria os sérvios.

Poucos dias depois, foi transmitida uma conferência de imprensa. Os mesmos intervenientes, mas desta vez empalidecidos. Explicaram-nos que nunca tinham dito que o vírus era engraçado. Pelo contrário, é letal. Mas só para os velhos. Só mata reformados, para as outras pessoas é inofensivo. Mas somos todos letais para os reformados, por isso fomos aconselhados a não nos aproximarmos deles. O presidente sublinhou e implorou: caros cidadãos idosos, peço-vos que não sobrecarreguem os nossos cemitérios! Fiquem longe das vossas famílias, isolem-se!

Depois quase chorou. E depois nomeou todos os cemitérios de que conseguiu lembrar-se e voltou a pedir aos reformados que não os sobrecarregassem.

Os reformados, que são a maioria dos seus eleitores e que adoram o presidente mais do que a Deus porque o ouvem em quase todos os canais disponíveis, são pessoas obedientes. Assustaram-se como crianças. Expulsaram os filhos de casa, compraram lixívia e álcool puro e começaram a limpá-la. O estado de emergência começou. Veio o recolher obrigatório com controlo policial. O isolamento. As medidas anti-pandémicas mais restritivas da Europa. Na Páscoa estávamos em confinamento, longe dos nossos velhos para quem somos letais. Estávamos todos sozinhos. Foi assustador. Aconteceu o mesmo no Dia do Trabalhador.

"Alguém disse ontem que se o ano de 2020 fosse um país seria a Sérvia."

marina abramovic

Marina Abramovic, Nuvens negras a caminho, ca. 1970 © Marina Abramovic Archives

Quatro dias de confinamento. Os nossos pais mudaram. Liguei a uma psiquiatra para lhe perguntar o que fazer com a minha mãe, que estava a afundar-se numa depressão. Entre outras coisas, a psiquiatra disse-me: «Em toda a minha vida tratei uns cinco mil pacientes, mas nestes últimos dias já me ligaram seis mil.» Todas as pessoas que foram psicologicamente desafiadas espoletaram um processo de loucura provocado pelo medo. É um país de reformados maníacos em confinamento.

Todos os dias às oito da noite havia um aplauso organizado dedicado aos profissionais de saúde. Depois uma pequena pausa e a seguir as pessoas batiam panelas e assobiavam às autoridades e às suas medidas de terror. Começou a haver fugas de informação dos centros de saúde, revelando que os números oficiais relativamente às mortes por coronavírus eram manipulados e que a situação era muito pior do que nos diziam. O país esteve em confinamento durante 60 dias e as pessoas estavam à beira de um colapso nervoso. Mas nem toda a gente. Às 20h30, os membros do partido do poder subiam às coberturas dos prédios para porem a «Marcha sobre o Drina» a trovejar em sofisticados sistemas de som. Em honra do seu presidente e contra as pessoas revoltadas.

A certa altura, já era impossível distinguir quando acabava o aplauso, quando começavam as panelas e quando se ouvia a «Marcha sobre o Drina». Toda a gente aplaudia, batia panelas e gritava das oito às nove conforme lhes apetecia. Eu deixei de ir à varanda. O meu filho de 12 anos fingia estar a dormir, longe das janelas.

Era tudo teatro. Um guião cujo objectivo era levar os cidadãos assustados a enlouquecer no seu isolamento.

Aproximavam-se as eleições. Num país controlado por um único partido e pelo seu presidente, num país onde a oposição, coberta de alcatrão e penas, há muito foi banida de todos os meios de comunicação social, reduzida a pó, difamada e agredida. Uma grande parte da oposição iniciou um boicote antes da pandemia. Depois o presidente reduziu o census para representação no Parlamento e alguns partidos mais pequenos entusiasmaram-se com a ideia de que poderiam entrar. A corrida ia começar! Mais uma peça sombria de teatro amador, uma avassaladora e rastejante representação melodramática, para os amantes de pantominas e de sketches humorísticos. Com o terrível objectivo de dar visibilidade ao poder. Escola de teatro amador de província. E nós encalhados, os profissionais sem envolvimento político, enquanto outros esbanjavam recursos teatrais sem qualquer freio moral.

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Marina Abramovic, Nuvens à sombra, ca. 1970 © Marina Abramovic Archives

"Era tudo teatro. Um guião cujo objectivo era levar os cidadãos assustados a enlouquecer no seu isolamento."

Mesmo antes das eleições, um mês antes, a epidemia abrandou. Eles aceleraram ao máximo. O presidente, a primeira-ministra e a equipa de sorridentes especialistas informavam-nos, todos os dias, que estávamos a vencer o vírus à velocidade da luz! E depois houve aquele dia em que nos disseram que o vírus fora vencido e que os especialistas estavam de férias. E que éramos livres! Tão incrível revelação aqueceu-nos os corações! Corremos uns para os outros para um abraço há muito desejado. O derby da liga sérvia foi autorizado num estádio com lotação esgotada. Concertos, cafés, discotecas… estava tudo aberto. Era a febre das eleições. Juntaram as pessoas, animaram-nas. Isso não importa, todos sabemos que a política é uma farsa, mas o mais importante é que somos livres! O Teatro podia renascer. Os palcos de Verão foram abertos num estalar de dedos. Actuei numa das minhas peças anti-regime favoritas, diante de uma sala cheia de belgradinos furiosos. Viajei para Kragujevac, uma bonita cidade duzentos quilómetros a sul de Belgrado. E também ali aquele espectáculo encenado por mim teve casa cheia. Em todos os aspectos parecia que a vida recomeçava. Que a Sérvia florescia depois de uma paralisação já esquecida.

[...]

*Tradução de Isabel Pettermann