Primeira Pessoa
Carlo Ginzburg: O historiador como detective
António Guerreiro

Entrevista a Carlo Ginzburg, onde o historiador italiano fala do seu percurso intelectual e dos «casos» e acasos que marcaram toda a sua investigação e o tornaram um dos nomes mais importantes, à escala mundial, da historiografia contemporânea. Mas também o contexto em que esteve inserido desde a infância, no centro do riquíssimo ambiente cultural e literário italiano do pós-guerra, é evocado nesta conversa.

Martino Lombezzi Carlo Ginzburg

© Martino Lombezzi

Carlo Ginzburg é um dos mais importantes historiadores contemporâneos, autor de uma obra imensa que produziu um efeito revolucionário na historiografia, não só pelo uso que fez de requintados instrumentos metodológicos e de análise vindos de outras áreas disciplinares (a antropologia, a retórica, a filologia, a narratologia, etc.), fazendo da escrita da história um campo de saber unitário, mas também por ter ido buscar os seus objectos de estudo a «casos» singulares, a factos e pessoas (melhor seria dizer «personagens») que, à margem da grande gesta dos poderosos, fora do horizonte onde a historiografia tradicional encontra os heróis e os protagonistas, se tornam exemplares e adquirem uma universalidade análoga à de certas personagens de romance. É o caso do moleiro friulano do século XVI chamado Menocchio, dotado de uma cultura mais elevada que a da classe a que pertence, e que sofreu os processos da Inquisição, tendo sido condenado à morte por heresia. Menocchio, de seu verdadeiro nome Domenico Scandela, é o «protagonista» de uma das obras-primas de Carlo Ginzburg: Il formaggio e i vermi [O queijo e os vermes], publicado em 1976. Como a outros dos seus livros, a este também se pode aplicar com precisão uma velha frase tantas vezes submetida a um uso indevido: «Lê-se como um romance.»

Os processos analíticos introduzidos pela «micro-história», como foi designada a corrente historiográfica a que o nome de Ginzburg está indelevelmente associado e da qual foi o principal teórico e praticante, motivam fortemente esta dimensão narrativa e exigem uma especial atenção ao factor estilístico e retórico na escrita da história. Não é por acaso que o autor de História Nocturna (1989) diz nesta entrevista que o trajecto que o levou à micro-história é sinalizado por duas grandes figuras dos estudos literários do século XX: Leo Spitzer e Erich Auerbach, o autor de Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. Não menos importante na sua tarefa de historiador, onde é essencial a tensão entre morfologia e história, é a influência (se assim podemos dizer) que nela exerce a figura singularíssima do historiador de arte e fundador de «uma ciência sem nome» chamado Aby Warburg.

Mas a imersão numa escrita narrativa muito consciente dos seus processos (não apenas próprios da literatura, mas também do cinema), com uma forte dimensão auto-reflexiva, deve ser também compreendida em chave biográfica, reclamando a história familiar de Carlo Ginzburg. Nascido em Turim, em 1939, a sua mãe é a escritora Natalia Ginzburg (1916–1991), um dos nomes maiores da literatura italiana do século XX. E o seu pai, Leone Ginzburg, nascido em Odessa (1909–1944), de uma família judia que emigrou para o Ocidente, primeiro para Berlim e depois para Turim, foi escritor, professor, tradutor de literatura russa, fundador da editora Einaudi, herói da resistência ao fascismo. Viu a sua carreira académica interrompida por se ter recusado a prestar juramento de fidelidade ao regime e acabou por ser detido e torturado na prisão, onde morreu com 39 anos na sequência das torturas a que tinha sido submetido. Carlo tinha apenas cinco anos, vividos sob o signo da perseguição fascista e anti-semita à sua família. Esta circunstância, perceberá ele bastante tarde, quando já era um historiador internacionalmente consagrado, explica a sua decisão de se dedicar ao estudo dos processos da Inquisição e dos de bruxaria, quando ainda era estudante na Universidade de Pisa, em cuja Escola Normal Superior foi titular de uma cátedra até 2010 (mas o seu percurso académico teve também etapas importantes em universidades americanas). E a sua inserção no mundo literário, que se dá originalmente no ambiente familiar, prolongou-se no círculo de escritores onde se moveu, tais como Italo Calvino e Cesare Pavese. Carlo Ginzburg não é apenas um importante historiador italiano, é também uma figura central da riquíssima história cultural e intelectual da Itália do pós-guerra.

Uma das grandes originalidades da investigação historiográfica de Carlo Ginzburg é a incidência na cultura popular, na cultura oral, nos comportamentos religiosos e nos hábitos das «classes subalternas» (uma noção que remete para Gramsci, outro dos nomes fundamentais no seu percurso intelectual). Às vezes de maneira bem explícita, criticou a visão muito aristocrática da cultura que, na sua perspectiva, sempre limitou o trabalho dos historiadores. A questão da «tarefa do historiador» está implícita em todo o seu trabalho e é desenvolvida em termos teóricos em alguns dos seus ensaios. Quando uma vez lhe perguntaram o que significa ser hoje um historiador, respondeu: «Primeiro que tudo, é necessário nadar contra a corrente.»

ANTÓNIO GUERREIRO  Alguns dos seus livros lêem-se como narrativas, aproximam a historiografia de um género literário. No entanto, sempre contestou a ideia, defendida num âmbito teórico pós-moderno, de que não há fronteiras nítidas entre narração de ficção e narração historiográfica…

CARLO GINZBURG  No decurso desta polémica com alguns sectores académicos pós-modernistas que defendem a continuidade entre a história ficcional e a historiografia dei-me conta de que na nossa tradição a relação entre a narrativa de ficção e a narrativa histórica foi sempre de competição pela representação da realidade, já que a ficção também tem uma relação com a realidade. Temos, por um lado, Homero, e por outro Heródoto. Mas Heródoto é impensável sem Homero. Pensemos em Balzac quando diz: «Eu serei o historiador do século XIX.» E assim lançou um desafio aos historiadores, que pode ser recíproco. Procurei trabalhar sobre temas específicos, para mostrar como as técnicas usadas pelos romancistas podem ser interpretadas no plano histórico. Num ensaio chamado «À propos du “style” de Flaubert», Proust diz que o que há de mais elevado na arte de Flaubert não está na frase, mas no espaço em branco que se encontra no final d’A Educação Sentimental. Procurei ler aquele momento como um desafio lançado à compreensão histórica. É uma passagem em que o protagonista, Frédéric Moreau, avança pelas barricadas e reconhece o agente da Guarda Nacional que tinha acabado de matar o seu amigo Dussardier. Flaubert descreve assim a cena: «Et Frédéric, béant, reconnut Sénécal» [E Frédéric, boquiaberto, reconheceu Sénécal]. Aqui, abre-se um espaço em branco, uma total ausência de comentário, um hiato, e é o fim do capítulo. O capítulo seguinte começa assim: «Il voyagea» [Viajou]. Examinei os manuscritos desse romance de Flaubert e descobri que ele tinha começado por escrever «Depois viajou», mas acabou por suprimir o advérbio. Temos de perceber que a narração — e este é o ponto onde quero chegar — é um modo de relação com a realidade e que toda a experiência narrativa, mesmo o espaço em branco, tem implicações e potencialidades cognitivas, pode ser lida como um documento histórico. E o historiador não pode deixar de se interrogar sobre as formas narrativas que utiliza.

AG  De facto, o seu trabalho de historiador muito atento aos instrumentos
metodológicos e às implicações formais obrigou-o a reflectir sobre categorias literárias e a introduzi-las em termos teóricos. O ambiente literário em que
cresceu tem alguma responsabilidade nisso?

CG  Sim, não posso ignorar o que está por trás do meu trabalho e que devo à minha mãe. A minha relação com a narrativa foi-me transmitida certamente por ela. Mas também através do trabalho de tradutor do meu pai, uma vez que o livro de literatura que mais me influenciou foi Guerra e Paz, que li ainda muito pessoa jovem, na tradução revista por ele, com um prefácio assinado com um asterisco, porque por ser judeu estava proibido de assinar. Escrevi um ensaio sobre a micro--história, onde falei daquilo que aprendi com Tolstoi e do desafio que ele constituiu para mim. Foi ele quem me ensinou que para contar uma batalha devemos contar a experiência de todos os que nela participaram. Não só a experiência do general, mas também a do mais humilde soldado. Retrospectivamente, percebo que a minha ideia de micro-história vem daí.

detail

Piero della Francesca, A flagelação de Cristo, ca. 1455 (detalhe)
© Fotografia: Scala, Florença. Cortesia Ministério do Património, Cultura e Turismo de Itália

 

 

pablo picasso guernica

Pablo Picasso, Guernica, 1937 (detalhe)
© Fotografia: Josse / Scala, Florença / Museo Nacional Reina Sofia

 

"A minha relação com a narrativa foi-me transmitida certamente pela minha mãe [Natalia Ginzburg]. Mas também através do trabalho de tradutor do meu pai, uma vez que o livro de literatura que mais me influenciou foi Guerra e Paz, que li ainda muito jovem, na tradução revista por ele."

AG  Como traça o percurso que o levou à micro-história?

CG  O primeiro ensaio que publiquei, nos Annali da Escola Normal Superior de Pisa, em 1961, chama-se «Stregoneria e pietà popolare» [Bruxaria e piedade popular], e é sobre um processo contra uma camponesa de Modena acusada de bruxaria em 1519. No final digo que este caso, não obstante a sua especificidade, tem um significado paradigmático. Lendo mais tarde esse parágrafo, pensei na palavra «paradigmático» e descobri que a tinha escrito um ano antes do célebre livro de Thomas S. Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas. O meu ensaio é de 1961, enquanto o livro de Kuhn é de 62. O que é que queria dizer com «paradigmático»? Queria dizer «exemplar». Aquele processo parecia-me um caso exemplar, apesar da sua especificidade. Era um caso exemplar pela sua anomalia. E a palavra que também me chamou a atenção foi a palavra «caso», que mostrava o meu precoce interesse pelos «casos». O que queria eu dizer com esta palavra quando escrevi esse ensaio? Por um lado, remetia para Freud, para o seu estudo de «casos clínicos» que eu tinha lido na tradução italiana; por outro, aludia a Sherlock Holmes. A psicanálise e o romance policial. Mais tarde, escrevi um ensaio, que foi muito discutido, Spie, em que evoco no início a tríade Morelli, Freud e Sherlock Holmes, um historiador de arte que criou um método de investigação detectivesco, o fundador da psicanálise e uma personagem de romance.

[...]