Carlo Ginzburg é um dos mais importantes historiadores contemporâneos, autor de uma obra imensa que produziu um efeito revolucionário na historiografia, não só pelo uso que fez de requintados instrumentos metodológicos e de análise vindos de outras áreas disciplinares (a antropologia, a retórica, a filologia, a narratologia, etc.), fazendo da escrita da história um campo de saber unitário, mas também por ter ido buscar os seus objectos de estudo a «casos» singulares, a factos e pessoas (melhor seria dizer «personagens») que, à margem da grande gesta dos poderosos, fora do horizonte onde a historiografia tradicional encontra os heróis e os protagonistas, se tornam exemplares e adquirem uma universalidade análoga à de certas personagens de romance. É o caso do moleiro friulano do século XVI chamado Menocchio, dotado de uma cultura mais elevada que a da classe a que pertence, e que sofreu os processos da Inquisição, tendo sido condenado à morte por heresia. Menocchio, de seu verdadeiro nome Domenico Scandela, é o «protagonista» de uma das obras-primas de Carlo Ginzburg: Il formaggio e i vermi [O queijo e os vermes], publicado em 1976. Como a outros dos seus livros, a este também se pode aplicar com precisão uma velha frase tantas vezes submetida a um uso indevido: «Lê-se como um romance.»
Os processos analíticos introduzidos pela «micro-história», como foi designada a corrente historiográfica a que o nome de Ginzburg está indelevelmente associado e da qual foi o principal teórico e praticante, motivam fortemente esta dimensão narrativa e exigem uma especial atenção ao factor estilístico e retórico na escrita da história. Não é por acaso que o autor de História Nocturna (1989) diz nesta entrevista que o trajecto que o levou à micro-história é sinalizado por duas grandes figuras dos estudos literários do século XX: Leo Spitzer e Erich Auerbach, o autor de Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. Não menos importante na sua tarefa de historiador, onde é essencial a tensão entre morfologia e história, é a influência (se assim podemos dizer) que nela exerce a figura singularíssima do historiador de arte e fundador de «uma ciência sem nome» chamado Aby Warburg.
Mas a imersão numa escrita narrativa muito consciente dos seus processos (não apenas próprios da literatura, mas também do cinema), com uma forte dimensão auto-reflexiva, deve ser também compreendida em chave biográfica, reclamando a história familiar de Carlo Ginzburg. Nascido em Turim, em 1939, a sua mãe é a escritora Natalia Ginzburg (1916–1991), um dos nomes maiores da literatura italiana do século XX. E o seu pai, Leone Ginzburg, nascido em Odessa (1909–1944), de uma família judia que emigrou para o Ocidente, primeiro para Berlim e depois para Turim, foi escritor, professor, tradutor de literatura russa, fundador da editora Einaudi, herói da resistência ao fascismo. Viu a sua carreira académica interrompida por se ter recusado a prestar juramento de fidelidade ao regime e acabou por ser detido e torturado na prisão, onde morreu com 39 anos na sequência das torturas a que tinha sido submetido. Carlo tinha apenas cinco anos, vividos sob o signo da perseguição fascista e anti-semita à sua família. Esta circunstância, perceberá ele bastante tarde, quando já era um historiador internacionalmente consagrado, explica a sua decisão de se dedicar ao estudo dos processos da Inquisição e dos de bruxaria, quando ainda era estudante na Universidade de Pisa, em cuja Escola Normal Superior foi titular de uma cátedra até 2010 (mas o seu percurso académico teve também etapas importantes em universidades americanas). E a sua inserção no mundo literário, que se dá originalmente no ambiente familiar, prolongou-se no círculo de escritores onde se moveu, tais como Italo Calvino e Cesare Pavese. Carlo Ginzburg não é apenas um importante historiador italiano, é também uma figura central da riquíssima história cultural e intelectual da Itália do pós-guerra.
Uma das grandes originalidades da investigação historiográfica de Carlo Ginzburg é a incidência na cultura popular, na cultura oral, nos comportamentos religiosos e nos hábitos das «classes subalternas» (uma noção que remete para Gramsci, outro dos nomes fundamentais no seu percurso intelectual). Às vezes de maneira bem explícita, criticou a visão muito aristocrática da cultura que, na sua perspectiva, sempre limitou o trabalho dos historiadores. A questão da «tarefa do historiador» está implícita em todo o seu trabalho e é desenvolvida em termos teóricos em alguns dos seus ensaios. Quando uma vez lhe perguntaram o que significa ser hoje um historiador, respondeu: «Primeiro que tudo, é necessário nadar contra a corrente.»
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