Assunto
O futuro do trabalho
Yann Moulier-Boutang

Yann Moulier-Boutang, economista, ensaísta, fundador, em 2000, da revista francesa Multitudes, reflecte neste artigo sobre as alterações que se irão dar na natureza e na organização do trabalho, atendendo à crise estrutural em que este se encontra e que o confinamento devido à pandemia tornou mais evidente, sobretudo porque um extenso sector informal ganhou uma grande visibilidade, o que acentua uma necessária distinção entre estas categorias: actividade, trabalho, emprego.

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Diego Rivera, Indústria de Detroit, 1932–33
© Detroit Institute of Arts

 

A crise da covid-19, um indicador da estratificação do trabalho

A «suspensão» de uma boa parte da economia mundial na sequência da pandemia de covid-191 suscitou imediatamente algumas questões: E depois? Como é que a economia se vai reerguer? Que transformação com a retoma? Foi possível constatar durante esta crise sem precedentes uma polarização que pode ser rapidamente definida entre: 1) Um assalariado clássico, com rendimentos garantidos, tendo por contrapartida a generalização de inovações como o teletrabalho, a indemnização bastante substancial do trabalho a tempo parcial (em França, 84% do salário anterior, chegando aos 100% se a pessoa estivesse a frequentar uma formação profissional à distância), facilidades de crédito para as empresas, uma moratória das rendas; 2) A manutenção e mesmo intensificação das tarefas «essenciais» à sobrevivência de uma sociedade, como a limpeza, os transportes, o comércio alimentar, a energia e, sobretudo, as profissões de prestação de cuidados, como os médicos e o pessoal hospitalar.

Mas esta polarização estaria incompleta sem os trabalhadores precários e as populações pobres que se ocupam de pequenas tarefas de distribuição, sem os trabalhadores intermitentes ou os desempregados que não têm direito a subsídio. O confinamento tornou visíveis os activos do sector informal.

O pós-pandemia pôs em evidência dois problemas: 1) A vulnerabilidade das economias mais avançadas à deslocalização de actividades económicas estratégicas, como as indústrias farmacêuticas ou a produção de equipamentos médicos e industriais, para a China e para a Índia; 2) As transformações da economia sob o impacto do confinamento domiciliário de uma grande parte da população activa e do incremento do trabalho à distância. Duas questões foram amplamente levantadas: 1) Irá a divisão internacional do trabalho ao longo da cadeia de valor global sofrer modificações permanentes? 2) Haverá alterações profundas na natureza e na organização do trabalho assalariado?

Para responder a estas questões é preciso reintegrá-las na situação de longo prazo do emprego e nas transformações do mercado de trabalho que já estavam em curso muito antes da pandemia. Antes de desenvolver estes pontos, podemos resumir a situação como uma crise de três componentes fundamentais do mercado de trabalho, a saber: a) o emprego; b) o trabalho; c) a actividade.

Observação metodológica preliminar2: Actividade, trabalho e utilização de conceitos a distinguir

Como se pode ver no esquema n.º 1, o conjunto do trabalho actual é formado por três círculos sobrepostos.

1) O da actividade não reconhecida como trabalho e não remunerada: o trabalho doméstico, toda a actividade humana contributiva na economia social e solidária, mas também, e isto é uma novidade, todas as formas de interacção humana através trabalho de plataformas digitais. É o círculo mais abrangente no esquema. Em inglês, diríamos work.

2) O do trabalho formalmente pago ou não declarado, não reconhecido como emprego: inclui o trabalho ocasional, suplementar, precário; task (tarefa), em inglês. Assim como actividades muito recentes que são objecto de transacção no mercado sem por isso serem institucionalizadas em ofício ou emprego.

3) E, por fim, o círculo mais restrito, o do emprego codificado em qualificação, seja o trabalho assalariado ou o trabalho independente. É o job, em inglês.

A actividade humana depende do estado de desenvolvimento das forças produtivas (a cultura, os conhecimentos, as técnicas, a acumulação dos meios de produção material, mas também a qualidade da população).

A delimitação do trabalho neste conjunto (o segundo círculo) depende tanto da monetização da actividade que se torna trabalho como da sua dependência ou não de um patrão: trabalho dependente por conta de outrem ou por conta própria. A dependência pode ser a do trabalhador em relação ao contratante ou pagador da tarefa, ou a do trabalhador em relação ao mercado. Mas esse trabalho não implica necessariamente a relação de emprego (portanto, um empregador que se assuma como tal) ou garantias contratuais ou codificadas pelo Estado-providência (incluindo as que protegem o exercício dos trabalhadores independentes).

Sekula

Allan Sekula,
Voluntário no limite, Isla Ciés, da série Black Tide, 2002–03
© Allan Sekula Studio

 

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Allan Sekula, Estivadores na descarga de peixe congelado da Argentina, da série Message in a Bottle, 1992–94
© Allan Sekula Studio

 

Dinâmica histórica das três esferas e crise actual

Os comportamentos sociais de fuga ao trabalho dependente, de luta pelo reconhecimento da actividade como trabalho remunerado, ou do trabalho informal como emprego protegido, procuram fazer coincidir o mais possível a esfera institucional do emprego com o trabalho remunerado e limitar o desenvolvimento da esfera mais abrangente. É uma espécie de idade de ouro do assalariado generalizado, descrita pelo sociólogo Bernard Friot3

Há duas fases bem documentadas entre os séculos XIV e XX.

A primeira vê emergir o trabalho dependente livre em detrimento do trabalho escravo, servil ou contratado por um período predeterminado, a criação de um contrato de trabalho por tempo indeterminado e o reconhecimento para o assalariado do direito a denunciá-lo4. A segunda vê a combinação progressiva do trabalho assalariado (por tempo indeterminado), que se tornara a condição de 85% da população, com a instituição de formas de protecção contra acidentes de trabalho e doença, e o direito à reforma. Inicialmente assegurada pelas empresas, depois pelos sindicatos, esta protecção social foi assumida pelas seguradoras privadas e mais tarde pelo Estado social, que alargou os seus benefícios aos dependentes familiares.

Porém, a idade de ouro dos Trinta Gloriosos (1945–1975) entrou em crise por várias razões que analisaremos mais adiante. A forma que esta crise assumiu (ver o esquema n.º 1) traduziu-se numa dilatação muito significativa da esfera da actividade, num retraimento do emprego canónico e num incremento do trabalho remunerado sem protecção.

[...]

*Tradução de João Moita

1. Sobre este assunto, tomamos a liberdade de remeter para a nossa contribuição publicada na AOC Media de 29.05.2020 https://aoc.media/analyse/2020/05/28/sideration-covid-19-leconomie-suspendue-et-le-tournant-2020/.
2. Ver Yann Moulier-Boutang, « L’avenir du travail », Audiência no Conselho Económico, Social e Ambiental, Secção do Trabalho e do Emprego, 12.12. 2018. Vídeo e relatório da audiência disponíveis no site do Comité Económico e Social Europeu.
3. Bernard Friot, Puissances du salariat: Emploi et protection sociale à la Française, Paris: La Dispute, 2012.
4. Ver a minha tese, De l’esclavage au salariat, Economie historique du salariat bridé, Paris: PUF, 1998.