Assunto
O narcisismo na arte contemporânea
Sinziana Ravini

Sinziana Ravini, crítica de arte, romancista, psicanalista, co-editora da Paletten, uma revista de arte publicada em Gotemburgo, na Suécia, escreve sobre os processos narcísicos na arte contemporânea (Marina Abramovic ocupa aqui um lugar de destaque) em que o artista é a matéria-prima da sua própria obra.

No livro En public. Poétique de l’autodesign1, o teórico russo Boris Groys descreve um mundo em que a antiga divisão entre produtores e consumidores deixou de nos satisfazer, uma vez que a maioria de nós passou a preocupar-se com a auto-poiesis, isto é, com a criação de si mesmo. Esta tendência não é particularmente nova. Segundo Groys, ela começou com a morte de Deus e o aparecimento do artista de vanguarda, que tenta transformar a sua vida numa obra de arte. A acreditar em Groys, a estetização da vida andaria, assim, de mãos dadas com a morte de Deus. Mas terá ele razão? Diria que sim, visto que as pessoas modernas já não parecem preocupar-se com a vida depois da morte, mas antes com o número de likes ou de followers que têm nas redes sociais. Isto não significa que Deus seja menos operante. Um pai, como Freud nos ensinou, só se torna verdadeiramente poderoso depois da sua morte.

Em Dieu: La mémoire, la technoscience et le mal2, o filósofo francês Mehdi Belhaj Kacem constata, através de uma concepção imanente de Deus, que o Big Data é Deus e que a Internet não é outra coisa senão a sua capela. Se levarmos ao extremo a hipótese de Belhaj Kacem, será que podemos considerar os artistas e todas as outras estrelas da nossa época que fizeram da sua vida uma obra de arte os novos santos dessa nova capela digital? Não foi Atanásio de Alexandria que disse: «Deus fez-se homem para que o homem se tornasse Deus»3?

De um ponto de vista materialista, é fácil ver que, no mundo da arte, o autodesign se tornou uma forma de anular as antigas relações alienantes entre os artistas e os mediadores. Esta nova tendência implica que já não é «o espectador que faz a obra», mas o próprio artista, e mais do que isso, a matéria-prima da obra de arte passou a ser ele mesmo. O seu maior desejo: criar um mundo nele. Veja-se o caso de Marina Abramović. Em 2010, concebeu a obra The Artist Is Present — uma das performances mais marcantes de todos os tempos —, para o MoMA de Nova Iorque, em que durante setenta e cinco dias a artista se sentou durante sete horas diante de uma mesa no átrio do museu, vestindo, consoante os dias, um longo vestido vermelho, branco ou azul, e oferecendo-se aos olhares dos visitantes como uma estátua-viva, muda como uma deusa no interior do seu templo. Houve quem chorasse de emoção, houve quem regressasse várias vezes, abalado, suscitando ocasionalmente a mesma reacção em Abramović, que se inclinava para aqueles que mais pareciam precisar, pegando-lhes nas mãos. O artista torna-se assim um espelho, um psiquiatra, um confidente, um ponto de referência. Pouco depois, em 2012, ela deixou-se arrastar para The Life and Death of Marina Abramović, uma quási-ópera «larger than life» dirigida por Bob Wilson, em que Abramović, a pessoa, e Abramović, a artista, se ajustavam perfeitamente numa visão grandiosa da vida e da morte. Depois, veio a fase mais difícil de todas, uma etapa que pode demorar uma vida inteira: a arte de se livrar do ego recorrendo a toda a espécie de métodos budistas. Que tal venha de uma artista que quase se tornou uma marca pode parecer paradoxal. Mas Marina Abramović foi sempre uma mestre dos paradoxos, ou não tivesse criado, em 2023, o Institute for the Preservation of Performance Art, que tem como objectivo fazer evoluir a consciência dos seres humanos através da performance. Desde então, o instituto tem incentivado a colaboração interdisciplinar e a união entre os praticantes de todas as disciplinas, incluindo a arte, a ciência, a tecnologia e a espiritualidade.

"A arte produzida na era do capitalismo pós-moderno celebra, com artistas como Paul McCarthy e Cindy Sherman, o homem virado para si, o vazio, o banal, o absurdo, o desperdício, o mórbido e a paranóia."

A arte de Marina Abramović é acusada por críticos como Jerry Saltz de ser demasiado narcisista e demasiado exibicionista, e o crítico Christian Viveros-Fauné considera que ela corre o risco de «desencadear uma pandemia de narcisismo no mundo da arte, que poderá, se nada for feito, transformar-se numa grave emergência de saúde mental»4. Esta crítica recorrente da presença do artista na própria obra não tem em conta que toda a criação artística depende de um certo grau de narcisismo. Mas de que estamos a falar quando falamos de narcisismo?

psicanálise apresenta-nos o narcisismo como uma poderosa força inconsciente da vida psíquica. Sigmund Freud, que descreveu o encanto da criança narcisista e de certos animais que não parecem importar-se connosco, como os gatos e as grandes aves de rapina — e mesmo o grande criminoso e o humorista —, devia ter acrescentado o artista à sua colecção. Freud foi, de resto, o primeiro a associar a arte ao narcisismo, ao constatar que os artistas tendem a retirar-se para a sua vida de fantasia em vez de se investirem na realidade, operando assim uma espécie de «retiro narcisista».

Mas há, para ele, uma fuga ao narcisismo, quando o artista encontra o caminho que o traz de volta desse mundo de fantasia para a realidade, transformando as suas fantasias em novas realidades. «É assim que ele se torna verdadeiramente o herói, o rei, o criador, o bem-amado que queria ser sem ter de fazer o enorme desvio que consiste em transformar verdadeiramente o mundo exterior.»5 Freud vê, portanto, um linha divisória cristalina entre a arte e a vida, a vida real e a vida imaginária, o que não é de todo o caso para escritores como Oscar Wilde, que queria transformar a sua vida numa obra de arte através das suas personagens.

Mas transformar a nossa vida numa obra de arte tem um preço, o preço de um amor-próprio exacerbado que corre o risco de ser ridicularizado, como o fez La Rochefoucauld nas suas Réflexions:

O amor-próprio é o amor de si e de todas as coisas em relação a si; ele torna os homens idólatras de si mesmos e torná-los-ia tiranos para os outros se o destino lhes desse os meios para tal; ele nunca descansa fora de si, e só se detém em assuntos exteriores como as abelhas sobre as flores, para tirar deles o que lhe é próprio. Nada é tão impetuoso como os seus desejos, nada é tão oculto como os seus desígnios, nada é tão expedito como a sua conduta; a sua versatilidade não pode ser representada, as suas transformações excedem as metamorfoses e os seus refinamentos a química. Não é possível sondar as suas profundezas, nem romper as trevas dos seus abismos.6

O mesmo podia ser dito de um influencer ou de um simples utilizador do Instagram. Estaremos a viver numa era de narcisismo generalizado? Na Internet, através dos blogues e dos fóruns, cada qual conta a sua história e dá a sua opinião sobre tudo. Quanto aos compromissos políticos e sociais, o altruísmo, tal como as virtudes, não passa de um «vício disfarçado», para voltar a parafrasear La Rochefoucauld.

[...]

1. Boris Groys, En public. Poétique de l’autodesign, Paris: Éditions Puf, 2015.
2. Mehdi Belhaj Kacem, Dieu: La mémoire, la technoscience et le mal, Paris: Les Liens Qui Libèrent, 2017.
3. Atanásio de Alexandria, Sur l’incarnation du verbe, Paris: Éditions du Cerf, 2000.
4. Christian Viveros-Fauné, «Why the Art World’s Raging Narcissism Epidemic Is Killing Art», news.artnet.com, 01.12.2015.
5. Sigmund Freud, «Formulations sur les deux principes du cours des événements psychiques», Résultats, idées, problèmes, Vol. I, Paris: Éditions Puf, 1984.
6. François de La Rochefoucauld, Réflexions ou sentences et maximes morales, Paris: Gallimard, 1976.