Vista de Delft
Steyr
Ann Cotten

Ann Cotten é uma poeta e ensaísta austríaca, nascida nos Estados Unidos, com a obra, reconhecida pela sua originalidade e pluralidade, publicada na prestigiada editora alemã Suhrkamp. Aqui, a escritora apresenta-nos Steyr, uma «cidade estatutária» da Alta Áustria, que tem o nome de um dos seus dois rios. Ao sabermos por que caminhos chegamos lá, começamos a perceber o que vamos encontrar, numa associação da natureza poderosa com a memória histórica e cultural e com o património fabril e industrial. Neste texto, em que a precisão impessoal das informações objectivas se alia a um olhar pessoal e subjectivo, é-nos dado o retrato de uma terra que Ann Cotten visitou para encontrar amigos que «são esquiadores eméritos e têm na montanha uma cabana para as caminhadas de Verão e um chalé para os desportos de Inverno».

A água corre veloz e opaca na confluência dos rios Steyr e Enns. Ambos nascem nas altas montanhas a sul; o Enns desagua no Danúbio, ao qual se junta. As cidades de Steyr e Enns, hoje relativamente pequenas, marcam os pontos onde terminam os rios seus epónimos. Terminam? São estações de transbordo; como se levassem a água até à porta para vê-la partir de novo. Steyr, o nome do rio, do eslavo stira, significa congestão, remoinho, ondulação — fenómenos que ainda hoje caracterizam o rio. A água, vinda das montanhas, chega fria e célere às planícies arenosas, onde segue, alvoroçada, um percurso serpeante que se assemelha a veias varicosas quando visto de cima.

O Steyr e o Enns, cursos de água de dimensão mediana, foram outrora as artérias por onde corria o comércio metalúrgico e madeireiro. Os dois estão ligados: já nos mais antigos fornos de fundição conhecidos, os humanos criaram desertos nas áreas circundantes ao abaterem as florestas para reunirem a quantidade imensa de madeira necessária para alimentar os fornos. Na Europa, as temperaturas de fundição não excederam os 1200–1500 °C até meados do século XIX. A verdade é que o ponto de fusão do ferro, a 1538 °C, era evitado porque o ferro fundido se torna quebradiço, não podendo ser martelado: a gusa, nesses tempos, era quimicamente um caminho sem saída. Nas Rennöfen, as forjas de ferro, o fogo e o calor subiam pelas camadas empilhadas de madeira e minério dentro de um forno com uma forma própria para esse fim. O minério era aquecido por períodos de cerca de 70 horas, com recurso a um fole accionado pela água que corria por baixo do forno, ou pela corrente de ar, se os construtores da forja a conseguissem instalar nalgum canto propenso a ventos fortes.

Em 2023, para chegar ao Steyr sai-se do comboio rápido em Linz ou em St. Valentin e muda-se para o comboio S-Bahn local. À excepção da hora de ponta da manhã e do fim-de-semana, altura em que os estudantes regressam a Viena com a roupa lavada, o S-Bahn está por norma quase vazio. Em Herzograd, a certas horas, os grupos de trabalhadores dos turnos percorrem a pé os terrenos onde a relva cresce, como se fossem alheios ao processo intrincado de injecção e drenagem de recursos humanos que perpassa, pulsante, por qualquer paisagem urbana. Se a industrialização é em geral acompanhada pela desertificação, também os processos modernos criam paisagens áridas pela ausência de vida humana, excepto nestas porções moleculares de que surtem efeitos surpreendentes.

A linha do comboio e a auto-estrada acompanham a curva do rio ao longo da planície, aconchegadas como duas foices. Já em tempos célticos esta região era um centro metalúrgico e uma das principais fontes de metal para os Romanos. O aço era martelado, endurecido e separado em diferentes tipos para diferentes usos. No século XIV, venderam-se milhões de facas vindas de Steyr no mercado de Pécs, na Hungria. Os fornecedores viajavam até Eisenerz, entre as montanhas, e trocavam comida por aparas de minério que traziam de volta para vender, para além dos carregamentos de grande volume que eram levados em barcos.

"O rio penetra por entre os suaves bancos de areia, alisa os seixos do leito, agita-se nas cavidades da rocha. Sobre a superfície turquesa da água, os mergulhões desaparecem e reaparecem com as suas cristas de ponta e mola, nadando para lá e para cá por entre os patos."

gustav klimt

Gustav Klimt, 1912 © Fotografia: Scala, Florença / Austrian Archives / Oesterreichische Galerie Belvedere, Viena

 

Tanto governos como sindicatos esforçaram-se por influenciar, equilibrar ou lucrar com este negócio tão rentável por meio de leis e regulamentos. Mas os artesãos e os comerciantes são tão difíceis de regular como os rios. A perícia e os contactos que têm são valiosos e móveis, e eles sabem-no. Os privilégios e as limitações produziram algum equilíbrio competitivo, refreando o monopólio de Steyr. Mas o fluxo principal era estável: o minério de Eisenerz, assim como a madeira para o combustível, eram trazidos rio abaixo; a jusante, estavam situados as sucessivas fases e métodos da fundição, martelamento e afinação. As peças eram produzidas por especialistas: lâminas de faca, foices, cabos, mais tarde partes de armas de fogo, e o que se formava era uma linha de produção fluida. Por vezes eram os comerciantes quem investia no material, outras vezes eram os próprios artesãos. Exportava-se em massa, recebendo em troca bens de luxo da Rota da Seda; Steyr chegou a ter um entreposto em Veneza.

Um dos factores da específica prosperidade de Steyr, além dos recursos naturais e humanos, era o chamado Grande Privilégio, uma pausa obrigatória de três dias. Todo o metal transportado de Innerberg até Steyr — na confluência dos rios Steyr e Enns — deveria ser descarregado e exposto durante três dias, período durante o qual podia ser comprado por comerciantes de Steyr. Esta é uma das razões pelas quais o processo de transacção comercial se veio a concentrar nesta zona. Era uma época em que a escassez raramente era artificial. Existia ao longo da linha de produção uma cadeia naturalmente eficiente exclusiva à mão-de-obra que articulava todo o trabalho desde a extracção à preservação: cultivo de alimentos e extracção de sal e minérios, transporte, produção de calor.

O rio penetra por entre os suaves bancos de areia, alisa os seixos do leito, agita-se nas cavidades da rocha. Sobre a superfície turquesa da água, os mergulhões desaparecem e reaparecem com as suas cristas de ponta e mola, nadando para lá e para cá por entre os patos. Aqui, uma ponte pedonal delgada e transparente cruza o Enns, tão estreita e longa que não é possível atravessá-la sem estremecer de espanto. No rio já não há barcos e troncos, há algum tempo. Ao longe, luzes e barulhos de máquinas. Chapas metálicas, empilhadoras, camiões.

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