«O gosto é feito de mil desgostos»: com esta afirmação, Paul Valéry apreendia uma reversibilidade entre estes dois pólos, uma inclinação dialéctica do bom gosto em direcção ao seu contrário, revelando assim que muito porosas são as fronteiras que os separam. Valéry mostra-se neste aspecto, como em muitos outros, um lúcido analisador dos modernos fenómenos sociais, estéticos e culturais, tendo percebido que essa tendencial reversão do bom gosto no seu negativo era a marca de um tempo em que alguns valores e categorias aspiravam a um tal grau de exacerbamento que se anulavam ou resolviam no seu contrário. Robert Musil também identificou na estupidez (tema de uma conferência que proferiu em Março de 1937) esta mesma tendência, uma necessária atracção fatal da inteligência pela estupidez. O paralelismo entre estupidez e mau gosto ou, melhor, entre a estupidez e uma notável declinação do mau gosto que é o Kitsch (identificação consagrada numa antologia feita por Gillo Dorfles, publicada em 1968, com o título Kitsch. Antologia del cattivo gusto, mas que não tem a aprovação unânime dos especialistas) foi reafirmada por Milan Kundera numa fórmula categórica em A Insustentável Leveza do Ser, romance onde desenvolveu uma teoria do Kitsch político e ideológico dos regimes totalitários. Reza assim essa fórmula: «O Kitsch é a tradução da estupidez [bêtise] e dos lugares-comuns na linguagem da beleza e da emoção.»
O tema do Kitsch nesse romance de Kundera, publicado quase dez anos depois de o romancista ter deixado a sua Praga natal e quando já tinha obtido, no seu exílio em Paris, a nacionalidade francesa, deve muito à cultura mitteleuropeia, a matriz da sua formação, e muito especialmente ao escritor vienense Hermann Broch, que entendeu o Kitsch como um fenómeno que não se reduz às questões estéticas, visando algo que está muito para lá do tipo de objectos que consideramos de mau gosto. Kundera seguiu a sua lição, quando escreveu que o Kitsch constitui o ideal estético de todos os políticos, de todos os partidos e movimentos políticos. Concluirá assim que estamos perante o «Kitsch totalitário» quando o poder político fica concentrado num único partido ou movimento.
Broch define o Kitsch como «o mal no sistema de valores da arte», uma definição que o retira da esfera das categorias estéticas para o colocar sob a égide da ética, pondo o acento no modo como o mal se dá esteticamente. Trata-se em suma de uma ausência de valor ético, um espelho daquela crise de valores com que a cultura mitteleuropeia do princípio do século XX se confrontou de maneira crítica, reagindo ao primado do ornamento e do «belo efeito», como podemos perceber não apenas em Broch, mas também em Robert Musil, em Karl Kraus, em Adolf Loos e noutras figuras dessa constelação grandiosa da «Finis Austriae» que vive a experiência de um «alegre apocalipse».
Mas Kundera não se limita a prolongar o pensamento de Broch. Acrescenta-lhe também um elemento importante que até hoje não deixou de se impor com uma enorme evidência: o papel desempenhado na sociedade contemporânea pelos mass media, que abarcam com imensa vitalidade todos os domínios da nossa vida quotidiana, tendo-se tornado um factor preponderante na socialização da cultura e na fixação de modelos estéticos. O modernismo, nas suas manifestações artísticas, literárias e culturais, em geral, significou uma revolta contra as ideias feitas (a repetição, o estereótipo, a tautologia); os mass media, cuja estética se confunde com a do Kitsch, instituem uma lei da circularidade, do familiar, da ausência de alteridade, da conformidade e da mesmice reconfortantes. Sob a tutela dos mass media, «a modernidade assumiu a vestimenta do Kitsch», acrescenta Kundera.
As noções de «bom gosto» e «mau gosto», dizem os estudiosos das ideias estéticas, remontam ao século XVII. É nessa época que emerge um novo tipo social, o «homme de goût», que tem uma particular aptidão para apreciar uma obra de arte e apreender certas qualidades formais que uma gramática das categorias estéticas impunha como norma e modelo. No seu «Ensaio Sobre o Gosto», que foi publicado postumamente em 1757 no verbete «Gosto» da Enciclopédia, Montesquieu enumera as qualidades que são o objecto do bom gosto: o belo, o agradável, o simples, o delicado, o gracioso, o nobre, o majestoso, etc. Voltaire, por sua vez, no mesmo verbete, escreve que a faculdade do gosto consiste em apreciar o sentimento da beleza, mas também «os defeitos em todas as artes». E quais são os seus potenciais defeitos? É o mau gosto do artifício estético que só encontra um fim em si mesmo, o ornamento ou o maneirismo que não respondem a nenhuma necessidade interna da obra. Os princípios iluministas que presidem à identificação das características do bom e do mau gosto são aqueles que recalcaram ou marginalizaram o Barroco até quase ao final do século XIX; e são ao mesmo tempo aqueles que estão na base do nascimento da crítica de arte.
O Kitsch é geralmente identificado com a arte degenerada, massificada, inautêntica, repetitiva, que se compraz na simulação da beleza, reduzindo-a a clichés, e na exaltação do sentimentalismo, denunciando uma origem romântica, como sublinhou Broch. O triunfo do Kitsch, no nosso tempo, ganhou o aspecto da estetização generalizada da vida quotidiana e de todos os fenómenos sociais, operada pelos media, em geral, e pelos mass media, em particular. A estetização tornou-se uma forma de existência que abrange tudo, mas nada tem que ver com a arte, a não ser pelo facto de lhe lançar fortes desafios e de a obrigar a assumi-los, implícita ou explicitamente, com prazer ou relutância. A estetização consiste numa autonomização da forma estética, que por isso se esvazia de qualquer conteúdo e não passa de uma forma contingente e insignificante. Trata-se de uma exasperação da mercadoria na sua dimensão de fetiche e na sua capacidade de realizar a ocupação total da vida social. Certo é que nada do que é contemporâneo é estranho ao Kitsch e às suas várias declinações ou categorias afins: o camp, o trash, o vulgar, o falso, o efeito que se impõe como pré-fabricação, etc. Também se pode ver o Kitsch como uma particular declinação do feio, em clara contradição com a ligação directa ao belo que ele reclama de maneira ostensiva (mas o pressuposto do Kitsch é que ele não tem consciência de si). A «estética do feio» foi objecto de uma análise sistemática, feita por Karl Rosenkranz, em meados do século XIX. Começa aí a perceber-se um movimento global da modernidade artística que se abre ao vulgar, ao repugnante, ao informe, ao grotesco. Rosenkranz vê no feio o sintoma estético de uma crise que é também moral, «uma vez que o Inferno não é só ético e religioso, é também estético». Uma nova modalidade de Kitsch aparece no horizonte e acaba por conquistar um lugar privilegiado. Temos assim o mau gosto resultante de um cliché que, na sua condição repetitiva e de estereótipo, já não produz efeito. Como observou uma vez Roland Barthes, não basta escrever a palavra «merda» para que o leitor sinta o mau cheiro. Na arte contemporânea não faltam exemplos de estereótipos do mau gosto que soçobra na sua impotência e se torna apenas uma manifestação de banalidade.
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