Em Julho, o pintor nova-iorquino Alex Katz cumprirá noventa e cinco anos. Nascido em Brooklyn, passou a infância em Queens. Ingressou na Cooper Union School of Art and Architecture em 1946. Pinta, portanto, há aproximadamente… setenta e cinco anos. Nos seus ateliers de Nova Iorque e do Maine, os quais tive a oportunidade de visitar em 1996, aquando da preparação da retrospectiva que lhe dediquei no IVAM, de que era à época o director, continua a enfrentar o desafio diário da pintura.
Pintor para pintores, como o foram antes dele Bonnard (de quem falámos na conversa que o leitor poderá ler de seguida) ou Morandi, descobri-o, assim como ao californiano Ed Ruscha, graças a um dos grandes da minha geração espanhola, o desaparecido Carlos Alcolea, outro artista dos pincéis. Foi na bem abastecida biblioteca deste bibliómano que descobri a mina que é a monografia katziana de Abrams, publicada em 1979, da autoria de um crítico tão solvente como Irving Sandler. Por essa razão, dediquei-lhe a mostra de 1996, in memoriam.
Um dos erros mais comuns cometidos pela Wikipédia e por certo tipo de jornalismo, e mesmo, diga-se, por um ou outro historiador de arte, é considerar Katz como precursor da Pop Art. O mesmo erro tem sido cometido a propósito de outro colega seu, o recentemente falecido Wayne Thiebaud, cantor, de um modo diferente do de Ruscha, da Costa Oeste. E não, Katz não é um pop (na conversa, deixa-o bastante claro), mas uma espécie de sucessor, naturalmente que com outros meios, de Edward Hopper. Um pintor de Nova Iorque e da paisagem rural norte-americana. Um profundo conhecedor da tradição do seu ofício, que tem como faróis Velázquez, Vermeer, Goya ou Matisse, e com quem é sempre um gosto «parler peinture», seja sobre Monet, Seurat, Vallotton, o aduaneiro Rousseau ou Marquet, seja sobre a Escola de Nova Iorque ou sobre pintores contemporâneos, como Peter Doig ou Luc Tuymans. Ele admira alguns artistas pop, Lichtenstein, por exemplo, ou o primeiro Rosenquist. Mas é evidente que nunca teve nada que ver com a exaltação do mundo do object trouvé, nem com o jogo com a linguagem da banda desenhada, nem com a crítica sociológica dos meios de comunicação de massas. De alguma forma, só tematicamente coincide com os pop. Em contrapartida, está muito próximo de colegas e amigos figurativos e muito pictoricistas como Jane Freilicher, Philip Pearlstein, Fairfield Porter ou Larry Rivers.
Próximo, de resto — como muito bem explicou o saudoso Kevin Power —, do grande Frank O’Hara e de outros dos poetas da Escola de Nova Iorque, muitos deles também importantes críticos de arte e seguidores tanto dos action painters como de figurativos como os que acabo de mencionar, Katz ilustrou livros de bibliofilia de vários deles, incluindo-os, aliás, na sua galeria de efigiados, umas vezes em telas, outras à linha e, por vezes, na forma de cut outs, de perfis metálicos policromados. O seu preferido foi sem dúvida Frank O’Hara. Também retratou Joe LeSueur, um dos amantes do poeta-crítico, num quadro sofisticadíssimo, Here’s to You (1961). Do ano seguinte é Passing (1961), o seu magistral auto-retrato com chapéu, que está no MoMA de Nova Iorque. Por esse caminho vão outras das suas obras mais definitivas, como The Cocktail Party (1965) ou Thursday Night 2 (1974), ambas modernas conversation pieces. Sempre dentro do espírito do diálogo entre as artes, há que referir o seu gosto pelo jazz e a colaboração com a companhia de dança de Paul Taylor, de resto, tema de vários dos seus quadros de formato monumental.
O Maine, que descobriu nos verões de 1949 e 1950, durante os quais prosseguiu os seus estudos na Skovhegan School of Painting and Sculpture, foi sempre, para Katz, o contraponto ideal à sua cidade natal. Visitá-lo ali é como deambular dentro dos seus quadros. São memoráveis aqueles que evocam a sua própria casa de Verão, sobre cujas paredes de madeira pintada de amarelo, sobre as quais as árvores projectam as suas sombras fugitivas, se recortam as silhuetas dos convidados num quadro estival e feliz como Lawn Party (1965), que pertence à colecção do MoMA. Felicidade também à flor da pele a que ressuma de uma cena campestre como Summer Picnic (1967), entre cujos protagonistas figura o singular pintor, fotógrafo e cineasta Rudy Burckhardt, que conhecemos no Maine graças aos Katz, tal como outra das representadas, a sua mulher, a igualmente interessante pintora Yvonne Jacquette. Além disso, durante essa estada, Katz levou-me no seu Cadillac Eldorado azul-celeste e descapotável a Waterville, para mostrar-me o Colby College Museum of Art onde uma ala inteira, em permanente crescimento, é dedicada à sua obra, o que diz bem da sua generosidade para com uma terra na qual se sente particularmente em casa e para com uma instituição que o acolheu com um entusiasmo que também abarcou outros criadores afins, cujos trabalhos ele foi doando ao longo do tempo. Nada menos do que 878 peças doadas por ele estão registadas, com as suas imagens correspondentes, no website dessa instituição.
Falo dos Katz. Além de Alex, a família inclui a maravilhosa Ada Del Moro (de origem italiana, como o seu apelido de solteira indica), sua mulher desde 1958, e o único filho de ambos, o poeta e crítico de arte Vincent Katz, bem como a mulher deste, a brasileira Vivien Bittencourt. Todos os admiradores da obra do pater familias conhecem as silhuetas dos outros três membros do clã, que posaram para ele inúmeras vezes; em particular, Ada, tema em 2006 de uma inesquecível exposição monográfica no Jewish Museum de Nova Iorque, Alex Katz paints Ada. A este respeito, ele estima que o corpus das suas obras sobre ela possa superar o milhar. No Reina Sofía, está um rutilante retrato dela, de 1993, intitulado Big Red Smile, segunda versão de The Red Smile (1963), que se encontra no Whitney. Igualmente rutilante é Ada with Superb Lily (1967). De Vincent, há já retratos de quando era criança. Poucos pintores do nosso tempo praticaram com tanta originalidade e brilhantismo a arte do retrato como Katz.
Um ciclo especialmente importante (e pelo qual senti sempre especial predilecção) da obra katziana é o dos nocturnos nova-iorquinos. O mais antigo está, desde pouco depois da referida retrospectiva, na colecção do IVAM. Mede 3,35 metros de largura por outro tanto de altura, é de 1986 e intitula-se Wet Evening. Descobri-o em 1995 na exposição individual celebrada pelo pintor na Kunsthalle de Baden-Baden. A esse respeito, remeto o leitor para o diálogo que tivemos, que poderá ler de seguida. Também é importante uma tela de dimensões mais reduzidas e de clima intensamente lírico, quase simbolista: Purple Wind (1995). Em quadros como estes, o pintor soube expressar na perfeição os misteriosos e enigmáticos bairros de edifícios de escritórios, com as janelas iluminadas ao crepúsculo. Não só em Nova Iorque, mas também em Paris, Barcelona, Buenos Aires, São Paulo, Bruxelas (cidade outrora simbolista, precisamente, e hoje capital, sobretudo futurista, da Europa) e muitas outras grandes cidades do mundo, é nele que pensamos quando deparamos com a poesia do crepúsculo, numa zona de características similares.
Sempre o Maine. Dos anos 60 do século passado em diante, esse estado atlântico, de natureza em grande medida virgem e que desde sempre atraiu os artistas, foi uma das principais fontes de inspiração deste enorme paisagista, que, como já referi, o frequenta desde 1949, e que, em meados da década seguinte, o elegeu como seu destino de férias habitual. Da presença do Maine na sua obra falam-nos as suas árvores essenciais (mas também há árvores da sua cidade natal, de Central Park); as suas visões de lagos com algo de monetiano, como aquele junto ao qual acabaria por construir o seu actual atelier de Verão; as suas evocações de pequenos portos; os seus «retratos» de vacas ou de alces ou de gaivotas; e, sobretudo, as suas evocações da orla costeira. Algumas das suas marinhas desse estado são simplesmente prodigiosas, com algo do melhor Albert Marquet, mas mais despojadas, mais essenciais. Recordo, na edição de 2008 da Arco, a feira de arte de Madrid, o amor à primeira vista que senti ante uma dessas marinhas katzianas, azul-alvadia, aérea, esplendente e de dimensões consideráveis, apresentada por Thaddaeus Ropac. Tantas vezes regressei àquele stand, tantas vezes voltei a contemplar — e tão de perto — aquele quadro, que tive a sensação de que as pessoas que estavam a cargo da galeria começavam a suspeitar de algo estranho no meu comportamento.
Em Espanha, o meu país, Katz expôs bastante de 1990 em diante. Mostrou o seu trabalho em galerias de Madrid, Barcelona e Valência. Em 2002, vieram algumas das suas esplêndidas realizações no campo da arte gráfica na mostra que La Caja Negra, sala madrilena especializada nesse âmbito, dedicou aos livros e gravuras de diversos artistas editados por esse grande galerista e editor nova- -iorquino que é Peter Blum, que também fez publicações maravilhosas de Tacita Dean ou de Helmut Federle. A sua retrospectiva mais importante em Espanha até à data foi a do IVAM, de que já falei. Ainda que menos abrangente do conjunto da sua trajectória, notável foi também a exposição que apresentou em 2015 no MACUF, museu da Corunha afecto à companhia eléctrica Unión Fenosa e que infelizmente acabaria por encerrar pouco depois; comissariada por David Barro, um dos melhores críticos da nova geração, que incluía obras procedentes de Portugal (concretamente, da colecção do galerista Mário Sequeira), e era acompanhada por uma monografia, Alex Katz: Casi nada, que destacava a relevância do norte-americano para as novas vozes figurativas, tanto no seu país como em todo o mundo, incluindo Espanha.
A conversa teve lugar há uns meses, online, e permite conhecer ao vivo o discurso subtil de um pintor soberbo, que em breve será objecto de uma nova e presumivelmente consecratória retrospectiva na sua cidade natal, no Guggenheim. Como leitura posterior, recomendo vivamente o seu livro de 2018, que cito numa das minhas perguntas, Looking at Art with Alex Katz, concebido como um dicionário.
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