2021, o ano de Dante. Morto em Ravena 700 anos antes, com o sentimento doloroso de uma falta de reconhecimento oficial, e a recusa em aceitar as pazes com a cidade que o tinha acusado, entre outras coisas, de ter caído na corrupção durante uma efémera carreira poética, Dante Alighieri, filho e irmão de usurários, não teria deixado de apreciar as celebrações que infligem a sua memória há 150 anos. Teria certamente razões para rir dos seus conteúdos. A sua maior obsessão, a par daquela por uma rapariga da alta sociedade florentina que morreu muito jovem, chamada Beatriz, era governar e controlar o que se dizia sobre ele e sobre a sua escrita. Esta pulsão controladora tornou-o precocemente um inovador que perturbava os seus contemporâneos. Em 1283, em Florença como noutros lugares da Itália, escreviam-se desde há algum tempo poemas (um pouco menos do que prosas: a maior parte traduções, nem sequer belas) numa língua diferente do latim — o globish das escolas que unia estudantes e professores numa «internacional dos intelectuais» muito elitista. A variante «florentina » desta outra língua não era ainda considerada a mais chique: a geração de Dante, e em particular o seu companheiro Cavalcanti, contribuiu para torná-la a mais distinta no campo cultural, como diria Pierre Bourdieu. Esta poesia era, em grande parte, poesia de correspondência. Nascia da costela da comunicação «por carta», um dos meios usados por quem tinha o privilégio de saber escrever, para a troca de opiniões — mas sobretudo para ser visto, ao exibir assim o seu estatuto.
Pelo sétimo centenário da morte de Dante (1265–1321), Antonio Montefusco, professor na Universidade Ca’ Foscari de Veneza de literatura latina medieval, evoca o poeta da Divina Comédia, que «inventou a figura do intelectual moderno» e introduziu a «língua vulgar» na poesia em vez do latim, lançando um olhar crítico sobre o aproveitamento ideológico e político a que as comemorações oficiais dos centenários foram submetidas desde o século XIX.
"A sua maior obsessão, a par daquela por uma rapariga da alta sociedade florentina que morreu muito jovem, chamada Beatriz, era governar e controlar o que se dizia sobre ele e sobre a sua escrita."
Em suma, poemas-cartas, versos escritos a outros destinatários, que serviam para recortar o território do trabalho intelectual em língua vulgar. Era um enclosure deste novo campo do saber, o que o tornava atraente e em luta pela hegemonia com o meio académico. Com a maioria, a total «gratuidade» do compromisso: os professores eram pagos pelos seus alunos e pelas prebendas; os poetas costumavam fazer outros trabalhos — ou, como Guido Cavalcanti, eram cavaleiros, aristocratas, em suma. Neste decénio de 1283–1293 em que tudo mudou na história da nossa literatura vulgar, Dante mostrou logo que era excelente na poesia de amor, que estava aberto às inovações filosóficas mais à la page (quase como Cavalcanti), mas também se mostrou bastante litigioso. Não aceitava as respostas aos seus poemas, pareciam-lhe quase todas banais. Também por isso começou, entretanto, a ordenar o que escrevia em ciclos organizados; depois dotou-os de comentários escritos por ele próprio. Na Vita Nova, obra em prosa e poesia publicada no final desta fase extraordinária, estes comentários desdobram-se numa história de amor, aquela entre o protagonista e Beatriz: amor que se defronta com a morte da amada, mas que não termina aí. Os outros poetas, até então, tinham-se atormentado na impossibilidade do verdadeiro amor, queriam obter a recompensa de uma união física que não se consumava, contemplando até o sofrimento causado pelo desejo nunca satisfeito em relação a um objecto como felicidade mental absoluta. Dante não: não é ele que quase morre; é Beatriz que se vai; ele permanecerá fiel a este amor, e a Vita Nova termina com a promessa de uma obra ainda maior, mais bela, visionária, mas sobre o mesmo tema.
Esse frame permanece em Dante. Para toda a vida. Não era fácil convencer os seus contemporâneos desta história de amor inacabada e da qual nenhuma satisfação advinha; mas esse não é o único ponto. Após ser banido de Florença e sentenciado de morte, a obra incompleta chamada Convivio será caracterizada pela mesma pulsão narcisista. O programa consistia no autocomentário de quinze canções: uma enciclopédia autocentrada em que a sua poesia, explicada com os instrumentos mais aguerridos do conhecimento universitário, permitiria até mesmo aos iletrados aceder aos níveis mais elevados do saber. Ao mesmo tempo, um outro texto inacabado — o De vulgari eloquentia — tenta convencer, em latim, os intelectuais do primado da poesia vulgar. E o grandioso estaleiro da Commedia? Deparamo-nos com um gigantesco engenho textual em que todo o além é inventado, desenhado e descrito nos mínimos detalhes, uma recherche que lança o seu eu-protagonista num mundo outro. Em comparação, as tentativas literárias anteriores empalidecem como exercícios de escola primária. Pois bem: no interior deste engenho, escrito e acabado e revisto (milhares de versos sem quase um erro, uma contra-senso, uma contradição: sinal de uma pulsão perfeccionista), o protagonista encontra o espaço, quase proustiano, para se representar, na substância, como um homem amargurado por não ser compreendido.
"Após ser banido de Florença e sentenciado de morte, a obra incompleta chamada Convivio será caracterizada pela mesma pulsão narcisista."
Não é isto um paradoxo? Um escritor tão convencido de que está a fazer e a conceber coisas tão grandes numa língua tão insuficiente que não pode dar conta deste edifício espantoso que o faz pensar, e repetir continuamente, que tu, meu caro leitor, deves aguçar o engenho, cada vez mais, para compreenderes pelo menos em parte o que este mundo mental está pondo em acção: um escritor que aos vinte anos já se considera um «clássico», um homem capaz de superar e vencer o tempo.
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