Primeira Pessoa
Paulo Nozolino: «Atravessamos o mundo como uma sombra»
João Pacheco

Nome: Paulo Nozolino. Profissão: fotógrafo. Podemos começar pela simplicidade desta ficha biográfica para a seguir entrarmos, conduzidos por esta entrevista, no «laboratório» deste artista de vocação nómada, atravessador de fronteiras, radicalmente avesso aos lugares serenos e às imagens tranquilas que lhes correspondem.

Paulo Nozolino

Num certo momento desta entrevista, diz Paulo Nozolino: «Comecei a olhar para o chão em vez de olhar para o céu. Comecei a olhar para o que as pessoas deitam fora em vez de para aquilo que os arquitectos constroem.» Esta orientação do olhar, assim descrita pelo fotógrafo, tem um significado simultaneamente estético e ético. Há uma rigorosa compenetração destas duas dimensões nas suas fotografias, assumida como uma responsabilidade e oposta à esterilização das imagens, ao regime de proliferação anestésica que elas nos oferecem hoje sob a forma de banal e imparável espectáculo. Este olhar atraído para a imanência e para os abismos da opacidade confronta- se com a alteridade mais radical: as ruínas, os dejectos, a destruição, a morte. Em suma, o mal. Daí a violência que elas transportam, na sua obsessiva representação dos escombros e das tragédias da história. Auschwitz e Sarajevo são os lugares extremos e sem redenção, sem céu nem horizonte, apenas chão juncado de cadáveres, onde Paulo Nozolino viu uma fisionomia alegórica da História e dos seus horrores. Os escombros do mundo e os corpos que são apenas torsos: há um olhar que em todo o lado vê um processo catastrófico em acção.

Por outro lado — ou talvez do mesmo lado —, o chiaroscuro de muitas das suas fotografias remete para um imaginário barroco e para a pintura que lhe corresponde. Paulo Nozolino situa-se no cruzamento das artes e dos tempos, é um fotógrafo da consciência trágica que obriga o espectador a olhar para as regiões inferiores e a decifrar os hieróglifos funestos da precariedade, da violência e da morte.

António Guerreiro

O gravador está ligado e poisado sobre a mesa de trabalho, o telemóvel também.

Sentado junto a este estirador com vista sobre Lisboa, neste momento o fotógrafo Paulo Nozolino não olha para a cidade. Está concentrado nos números digitais que mudam depressa, nos mostradores destes dois aparelhos que servem agora para gravar a conversa.

Neste andar alto, a vista é hoje sobre quase cinquenta anos de trabalho. E sobre a vida e a forma de ver o mundo de um dos artistas portugueses contemporâneos com mais reconhecimento internacional. E sobre o que fica de nós, o que fica do que vivemos, o que fica do que vimos.

paulo nozolino

 

 

paulo nozolino

 

 

PAULO NOZOLINO  Que angústia, ver o tempo a passar.

JOÃO PACHECO Sim. Mas esse tempo que está aí vai desaparecer, o ecrã vai ficar preto e vamos deixar de ver o tempo a passar.

PN  Vou deixar de olhar para lá, que é a melhor maneira.

JP  Hoje já carregou no obturador de alguma máquina fotográfica?

PN  Não.

JP  Quando foi a última vez?

PN  Há três dias, em Arles. Às vezes carrego no botão por carregar, não há uma razão específica para isso. Outras vezes há, depende.

JP  Pode passar quanto tempo sem carregar no botão?

PN  O rolo pode estar na máquina seis meses.

JP  Não fica angustiado?

PN  Pelo contrário. Angustiado ficava quando fazia muitos rolos, porque não sabia o que estava a fazer. Agora tenho o luxo do tempo, o luxo de não ter pressão.

JP  Quando é que não sabia o que estava a fazer?

PN  No princípio. Durante os primeiros dez anos não se sabe o que se está a fazer.

JP  O princípio foi em 1972?

PN  Foi, muito ainda sem saber.

JP  O que estava a fazer em Pintura antes?

PN  Coisas horríveis. Foi tudo destruído.

JP  Tudo? Tinha más notas?

PN  Não, não gostava daquilo. Era complicado. Tenho medo, admiro imenso a pintura, mas é uma coisa complicada. Obrigava a estar fechado. E eu não queria estar fechado.

JP  Tem ali pelo menos uma reprodução de uma pintura, na parede.

PN  Um auto-retrato do Lucian Freud, aqui escondido. De resto, não vejo mais nenhuma.

JP  Também está ali um postal com A Origem do Mundo, de Gustave Courbet. Foi para Pintura por pressão familiar?

PN  Não. Eu gosto de quadros, gosto de pintura. Sempre gostei.

JP  Como deu o salto para Londres, quando foi estudar fotografia?

PN  Um profundo desejo de sair deste maldito país.

JP  Vivíamos em ditadura. Ou está a dizer «maldito país» em geral?

PN  Maldito país naquela altura. Não sei se não será maldito ainda hoje, por outras razões.

JP  Como foi essa ida para Londres? Teve apoio familiar?

PN  Fui com o apoio da minha família. Era muito complicado sair do país na altura. Tinha de haver dinheiro, tinha de se ter feito todos os cursos de fotografia que havia em Portugal, para autorizarem a saída do país para se fazer uma especialização. Foi o que fiz.

JP  Tinha feito o serviço militar?

PN  Não. E justamente por isso. Para haver um adiamento do serviço militar, que me permitisse ir para fora, e que depois me obrigou a voltar, para fazer a inspecção. Por sorte não fui apurado.

JP  Para fazer a inspecção ainda em altura de guerra?

PN  Não, não, foi em 1978. Fui fazer a inspecção e não fui aceite.

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