Editorial
A moral numérica
José Manuel dos Santos e António Soares

Ouve-se e, desde o início, apetece cantar o que se ouve. Apetece cantar, mesmo que não tenhamos voz e que por isso o canto não seja exterior: apenas silencioso e solitário no nosso interior. A ária do catálogo e a ópera em que ela surge — o Don Giovanni, com música de Mozart e libreto de Lorenzo Da Ponte — são cimos da história deste género artístico, musical-teatral, nascido em Itália, na passagem do século XVI para o século XVII, e que até hoje foi conhecendo uma variedade e uma variação cheias de surpresas e prodígios.

leporello

«Madamina, il catalogo è questo», Joseph Losey, Don Giovanni, 1979

Nesta ária tão célebre, Leporello, o criado do impiedoso e insaciável conquistador Don Giovanni, dirige-se a uma irada Donna Elvira, a nobre seduzida e abandonada pelo patrão, e dá-lhe a conhecer o catálogo com o número das conquistas libertinas do seu amo e senhor.

A voz do baixo-barítono canta, com um alvoroço alegre e ofendido:

Madamina, il catalogo è questo Delle belle che amò il padron mio; Un catalogo egli è che ho fatt'io; Osservate, leggete con me.

In Italia seicento e quaranta; In Alemagna duecento e trentuna; Cento in Francia, in Turchia novantuna; Ma in Ispagna son già mille e tre.

 

Minha senhora, o catálogo é este Das beldades que o meu patrão amou; Um catálogo que eu próprio fiz; Observai e lede comigo.

Em Itália seiscentas e quarenta; Na Alemanha duzentas e trinta e uma; Cem em França, na Turquia noventa e uma; Mas em Espanha são já mil e três.

Enquanto folheia e consulta o livro de contas que dá conta dos feitos amorosos, vai-os enumerando no canto e acentua pela repetição os números que acusam e incriminam «il dissoluto punito». Ao escutar as contas feitas por Leporello, Donna Elvira, indignada e justiceira, promete um ajuste de contas sem piedade nem descanso.

Mas, se o código moral for outro, aqueles números que acusam e condenam passam a enaltecer e a glorificar. Diz-se que o rei emérito de Espanha, Juan Carlos I, no meio da provação e do descrédito do seu actual estado, conseguiu encontrar ainda um motivo de júbilo ao ler que um cálculo por baixo concluía que o número das suas aventuras amorosas chegava a cinco mil. Conta-se que, velho e doente, ainda compunha um ar soberano e dizia aos amigos que lhe restaram, com uma altivez borbónica na voz: «Cinco mil! Que tal?! Não está nada mal!» E, arrancada ao fundo da sua negra melancolia, soltava uma gargalhada larga, livre e donjuanesca!

Sabe-se que Lorenzo Da Ponte se motivou, para escrever o libreto desta ópera, na espantosa e espampanante figura de Giacomo Casanova, que, aliás, dele teve conhecimento, dando até ao libretista sugestões de alteração que foram bem acolhidas. Mais tarde, quando saíram as memórias autobiográficas do incansável sedutor, frenético aventureiro e escritor veneziano — História da Minha Vida —, observou-se que há também nelas uma enumeração minuciosa dos seus triunfos amorosos (mas também dos fracassos), que compete com o catálogo que Leporello fez dos famigerados sucessos de Don Giovanni.

A ligação entre os números e a moral é de sempre. Os números julgam, decidem e sentenciam. Os livros sagrados, os tratados morais, as criptografias esotéricas, as simbologias herméticas, os códigos judiciais, os regulamentos militares, as leis laborais, as normas disciplinares, as classificações comportamentais, as notificações penitenciárias dão às palavras os números que as quantificam e tornam mais performativas e avaliáveis. São os números que dão a dimensão do crime e do castigo. São eles que os atenuam e os agravam.

Pitágoras afirmou: «Os números governam o mundo.» E acrescentou: «Toda a coisa é número.» Da Tora (nomeadamente, o Livro do Génesis e o Livro dos Números) à Cabala, de Pitágoras a Wittgenstein, de Platão a C. S. Peirce, de Aristóteles a São Tomás de Aquino, de Descartes a Bertrand Russell, de Pascal a Leibniz, de Espinosa a Frege, do sistema numérico ideográfico chinês aos algarismos indo-arábicos, do número de ouro ao calendário azteca, os números são um outro código, uma outra língua, uma outra face, um outro universo.

Estão no centro de um círculo que não mais parou de se alargar. São claridade e enigma. São conceito, símbolo e operador. São naturais, dígitos, inteiros, fraccionários, complexos, racionais, irracionais, reais, imaginários, primos, pares, ímpares, positivos, negativos, contáveis, computáveis. São peso, conta, medida, ordem, juízo, prova, demonstração, realidade, imaginação, construção, regra, adivinhação, possibilidade, probabilidade, previsão. São ciência, filosofia, técnica, arte, literatura, política, medicina, economia, história, sociologia, antropologia, semiologia, sexologia.

Segundo um certo caminho de investigação filosófica, ao qual Heidegger não está alheio, é à luz da distinção fundamental entre nome e número que se pode observar, na história do pensamento ocidental, a crescente submissão do nome ao número e a ocultação, a desconsideração e mesmo a desvalorização de tudo o que é incalculável.

Isto significa a subordinação do pensamento verbal, poético, ontológico, meditativo e qualitativo ao pensamento numérico, calculador, pragmático, utilitário e quantitativo, que impõe o pensamento físico do estar e do ter ao pensamento metafísico do existir e do ser.

Para os que defendem esta tese, foi deste modo e com este fundamento que se constituiu, desde o início da Idade Moderna, a racionalidade ocidental, cujos método e finalidade representam a redução ao numerável e ao calculável de tudo, desde o Universo ao ser humano, do sujeito ao objecto, da vida do espírito à vida da matéria. Para Heidegger, é isso que afinal explica que o barulho altivo e mecânico das máquinas tenha coberto e ensurdecido a voz dos deuses, cuja ausência presente Hölderlin procurava ainda escutar no mundo.

Para Heidegger, na modernidade o homem torna-se sujeito e o mundo faz-se imagem. No ensaio «O tempo da imagem no mundo» (Caminhos de Floresta), diz que «os números apresentam como que o mais patente sempre-já-conhecido», comenta a relação equívoca da exactidão com a inexactidão e fala de uma confrontação de mundividências, afirmando: «Para este combate das mundividências, e de acordo com o sentido desse combate, o homem põe em jogo a violência ilimitada do cálculo, da planificação e do cultivo selectivo.»

Se isto foi assim e ainda se tornou mais assim no começo da Idade da Técnica, na era digital, competitiva e global em que vivemos, os números impuseram-se como nunca e são hoje a medida de todas as coisas. Passámos a viver num regime de moral numérica. Nesse regime, e para usarmos conceitos de Espinosa, os números não são apenas atributos (ou acidentes, como diria Aristóteles) da moral: constituem mesmo a sua substância. Tudo se quantifica, conta, mede, pesa, computa, numera, ordena, categoriza, cataloga, para disso fazer objectivos, metas, avaliações, juízos, julgamentos, escolhas, discriminações, imposições, veredictos. E também para gerar culpa ou absolvição, má ou boa consciência, permissão ou censura, automatismo e autodomínio, subordinação e identificação, diferenciação e desigualdade.

Vivemos rodeados de números (cardinais e ordinais). Vivemos a produzir relatórios, estatísticas, sondagens, inquéritos, rankings, ratings, tops, templates, escalas, algoritmos, gráficos, fórmulas, modelos, matrizes, médias, controlos, vigilâncias. Cada palavra, cada acto, cada gesto é regido, registado e aferido por um qualquer número de um qualquer código numérico. Os números também são hoje grandes protagonistas da «sociedade do espectáculo» (político, mediático, cultural, económico, financeiro, social), passando da caixa do ponto para o centro do palco. E são também uma nova doxa, uma nova crença, e até um novo determinismo.

Mallarmé disse que tudo o que existe no mundo é feito para acabar nas páginas de um livro. Poderemos hoje dizer que tudo o que existe no mundo é feito para acabar em folhas de Excel. Os nominalistas, antigos e modernos, têm agora uns novos sucessores: os numeralistas.

A esta tendência da racionalidade técnico-científica-digital-numérica somou-se a financeirização universal, que inverteu a lei da passagem da quantidade à qualidade, postulada pelo materialismo dialéctico, estabelecendo agora que toda a qualidade carece, para ser qualidade, de se tornar uma quantidade. E, muitas vezes, fazendo do preço o único valor.

Já Oscar Wilde, com o seu instinto aguçadamente perspicaz e o seu humor astuciosamente profético, anunciava e denunciava: «Hoje em dia, conhecemos o preço de tudo e o valor de nada.» E também ironizava, advertindo: «Hoje em dia, os jovens imaginam que o dinheiro é tudo. Quando envelhecem, ficam a ter a certeza disso.»

Não há que proceder à demonização nem à divinização dos números. Afinal, como exclama Fernando Pessoa / Álvaro de Campos:

excel

O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora.)

Há que fazer com os números o que eles querem fazer connosco: interrogá-los, examiná-los, decifrá-los, analisá-los, interpretá-los, contextualizá-los, avaliá-los e até psicanalisá-los. E saber quando, para quê e como se usam — e com que legitimidade ou ilegitimidade.

No dossier da Electra 15 (aqui está também um número!), interrogamos os números e a sua omnipresença, omnipotência, omnisciência (todos estes são atributos divinos), para verificarmos como actualmente eles se apropriaram de todos os poderes, para os refundar e reinstituir, repetindo, mas com furor profanador, o que Pitágoras, com fundamento sagrado, afirmava há 27 séculos: «Os números governam o mundo.»

Interrogamos os números, no que eles mostram e escondem, no que eles verificam e falseiam, indagando o que representam e como hoje são usados para configurarem o nosso tempo e o nosso mundo, criando a nossa luz e a nossa treva, o nosso trabalho e o nosso lazer, a nossa verdade e a nossa mentira, o nosso bem e o nosso mal, o nosso êxito e o nosso fracasso, a nossa riqueza e a nossa pobreza, a nossa saúde e a nossa doença (a covid-19 é uma pandemia numérica), a nossa vida e a nossa morte.

Talvez um Michel Foucault do futuro venha a escrever um livro que, em vez de se chamar As Palavras e as Coisas, tenha por título «Os Números e as Coisas», investigando os fundamentos da episteme contemporânea e os alicerces sobre os quais se ergue o edifício do nosso pensar e do nosso agir num mundo que se quer e se crê globalizado.

Neste número da nossa revista e considerando, além do dossier dedicado aos Números, todas as outras secções, a variedade dos temas (filosofia, ciência, arte, design, fotografia, urbanismo, literatura) põe em evidência, num tempo de saberes especializados e com fronteiras excessivamente fechadas, a conveniência e mesmo a necessidade de promover diálogos, oscilações, aberturas, flexibilidades, fugas, cruzamentos de áreas do conhecimento e de disciplinas estabelecidas.

Leporello continua a contar e a cantar os pecados (ou os virtuosos triunfos) de Don Giovanni. De Cervantes a Byron, de Molière a Pushkin, de Carlo Goldoni a Balzac, de Tirso de Molina a E. T. A. Hoffmann, de Alexandre Dumas a Baudelaire, de Giuseppe Gazzaniga e Giovanni Bertati a Mozart e Lorenzo Da Ponte, de Franz Liszt a Richard Strauss, de Søren Kierkegaard a George Bernard Shaw, de José Bergamín a Ortega y Gasset, de Ramón María del Valle-Inclán a Marina Tsvetaeva, de Max Frisch a Almeida Faria, de Gregorio Marañón a José Saramago, de Joseph Losey a Carlos Saura, a figura de Don Giovanni, tornada um mito universal e multi-temporal, foi retomada, recriada, reinscrita e reinterpretada das mais engenhosas e imaginosas (às vezes bastante divertidas) maneiras.

No final do dramma giocoso de Mozart e de Lorenzo Da Ponte, o sedutor herói-anti-herói, mesmo perante a ameaça do castigo infernal, sofrido em chamas tão fogosas e crepitantes como as do amor sensual, não se arrepende, não se desdiz, nem pede desconto.

Pode ser que, nesse momento tão decisivo e fulminante, Don Giovanni se tenha lembrado do catálogo que Leporello, com a sua voz ofendida e cobiçosa, recitou a Donna Elvira e interminavelmente nos continua a recitar a nós. Pode ser que tenha continuado a sentir, perante essa sobressaltada lista numérica dos seus actos, não uma vergonha, uma perdição ou uma condenação, mas um orgulho, uma salvação e uma absolvição.

No final da ópera genial de Mozart-Da Ponte, o coro canta, com fervor moralista, morigerador e sentencioso:

E de’ perfidi la morte
Alla vita è sempre ugual!

A morte dos pérfidos
É sempre igual à sua vida!

Pode ser então que, mesmo sem querer, essas vozes afinadas pela moral dos números estejam, no final das contas, a oferecer a Don Giovanni o fundamento e a razão de uma outra moral — uma moral que dá afinal aos números uma consciência mais alta do seu ilusório rigor.