Portfolio
Alec Soth: Unseen Teen
Sérgio Mah

Alec Soth é dos maiores fotógrafos americanos da actualidade, com uma obra reconhecida mundialmente. No portfolio que destinou a esta edição de Electra, e a que deu o título «Unseen Teen», apresenta fotografias de vários projectos seus mas com especial referência à série USA. Postcards from America V, realizado em 2014. Nestas imagens da juventude «invisível» dos EUA, o que se vê (rostos, corpos, cabelos, gestos, atitudes) corresponde e representa o que não se vê (sentimentos, sensações, estados de alma, desesperos, vazios), constituindo sinais uns dos outros. São também sintomas de uma doença latente, pronta a latir como um uivo que se aproxima e ameaça. Esse uivo faz-se de violência, vulgaridade, antagonismo, precariedade, descrença, desconfiança e Kitsch adolescente. O fotógrafo e o seu trabalho são aqui apresentados pelo crítico e curador Sérgio Mah.

Figura maior da actual fotografia norte-americana, foi sobretudo a partir do livro Sleeping by the Mississippi, de 2004, que Alec Soth foi consolidando os seus domínios temáticos e estéticos. Nesse ensaio visual ele elabora uma viagem tanto física como mental pelos territórios adjacentes ao mais mítico dos rios americanos. As fotografias sinalizam encontros com indivíduos e lugares, dando a perceber que o assunto primordial não é propriamente o rio e as paisagens que percorre, mas sobretudo um conjunto de fragmentos e indícios de uma peculiar crónica — poética e temperamental — sobre as pequenas vidas, de pessoas e comunidades isoladas, mundos distantes dos ritmos e dos modos desenfreados e espectaculares das grandes urbes.

Os efeitos sociais e culturais, as ressonâncias históricas, as fissuras, as descontinuidades e estranhezas de uma sociedade americana diversa e complexa, profundamente desigual e tensa, compõem uma parte substancial das motivações temáticas do trabalho de Alec Soth. Na linha de grandes protagonistas da fotografia americana, como Walker Evans, Robert Frank, William Eggleston e Joel Sternfeld, a obra de Soth configura um itinerário lírico e elegíaco sobre a América contemporânea, onde ressoam os ecos da sonoridade lúgubre de Johnny Cash e da imaginação literária de Mark Twain e Flannery O’Connor.

Globalmente, as fotografias de Soth destacam-se pela sua calculada simplicidade. Desde logo, reconhece-se uma abordagem que se referencia nos parâmetros formais da fotografia documental, que procura maximizar as faculdades descritivas e realistas da representação fotográfica, ou seja, que se motiva no primado da precisão técnica, na sobriedade e clareza da imagem, e na recusa de qualquer tipo de expressionismo pictórico. São imagens que recentram o sentido da fotografia, porque não querem ser nem mais nem menos que fotografias, porque assumem a extraordinária capacidade e competência da câmara para intensificar a nossa perceptibilidade sobre as aparências da realidade.

Embora se encontrem na sua obra momentos de incursão na paisagem, de observação concentrada sobre espaços interiores e objectos, é, porém, o género do retrato que ocupa o cerne da sua prática e imaginação fotográficas. Os retratos de Soth sugerem processos ponderados e necessariamente lentos. Imaginamos as situações em que o retratado espera, enquanto aguarda pela acção do fotógrafo. É um modo de actuar que requer a assunção de uma certa reciprocidade, entre fotografado e fotógrafo, em que ambos estão conscientes da sua participação num acontecimento fotográfico.

Este portfolio reúne fotografias de várias séries, sendo de destacar as que integram o projecto USA. Postcards from America V, feitas em 2014 na cidade de Milwaukee, no estado do Wisconsin. Na maioria destas fotografias vemos jovens cuja teatralidade dos corpos, gestos e expressões fisionómicas sugerem sensações e estados psicológicos — isolamento, solidão, medo, angústia, vulnerabilidade, frustração — que devem ser encarados como sintomas de uma juventude inevitavelmente marcada pela banalização da conflitualidade e da violência (cuja situação limite são os massacres em escolas perpetrados por estudantes), pelas clivagens socioeconómicas e comunitárias e pela precarização das estruturas familiares.

Alguns dos retratados olham timidamente para o fotógrafo. Porém, a maioria aparece em queda, agachada, contraída, encoberta, deitada ou protegida no chão, evitando a câmara fotográfica do mesmo modo que parecem impotentes ou não plenamente capazes de lidar com as circunstâncias em que se encontram. Nesta cidade — e sabemos como as cidades contemporâneas são máquinas de produção de isolamento e separação — sobressaem as personagens solitárias, representadas num momento de aparente introspecção ou autocontenção. As figuras pensam, exortando a pensatividade da imagem.

A luz é suave, mas o ambiente não é aprazível. Quebrada a transitoriedade e o ritmo urbano, sobram planos estáticos, incompletos, votados à indeterminação: não há narrativa, não existe antes e depois. Nada parece verdadeiramente acontecer, e é difícil escapar a uma contracção dos movimentos corporais e a uma reconfiguração dos parâmetros de experiência do tempo. É inglório tentar agora discernir o que foi preparado ou o que houve de involuntário. O que nos cabe é contemplar estas presenças mudas, seres dos quais não sabemos nem o que os levou a posar perante o fotógrafo nem o que entendem mostrar ou exprimir diante da objectiva. Vemos corpos a desacelerar, paralisando-se, como se tivessem entrado num estado de torpor. Imagem, percepção e corpo enredam-se num tempo próprio. No seu estado de imobilidade as personagens estão destinadas a ser figuras melancólicas, não pelo que fazem, mas pelo que suspendem, não pelo que exalam, mas pelo instante de quietude em que se dão a ver.

Neste contexto, o retrato surge como um género propício a deambulações e dissimulações visuais em torno da figura. Percebe-se que o rosto não é uma instância unificadora para o qual convergem as várias dimensões de uma personalidade. O retrato é, então, o domínio do potencial: o potencial do ser, do acontecer e do parecer. Como tal, o valor destas fotografias de Alec Soth reside também na sua habilidade para seduzir o espectador numa base fundamental: a possibilidade de estender, alargar ou até mesmo subverter a função referencial da fotografia, de modo a que, em vez de um espaço impregnado de consciência emerja um outro animado pelo inconsciente. O retrato é assim assumido como uma prática de representações de representações, sendo que o rosto e o corpo funcionam como um ecrã sobre o qual vão aderindo outras imagens, incitadas pelos desdobramentos mentais do espectador. É um lugar onde tudo se inscreve e de onde tudo foge, dentro e fora do plano visual.

Sérgio Mah

alec soth

© Alec Soth / Magnum Photos