Independentemente destas ousadias metodológicas, a Virilio se deve uma sistemática reflexão sobre a velocidade e a aceleração tecnológica, sobre o novo regime da velocidade electrónica, nos seus alvores, e do qual retirou conclusões quanto aos seus efeitos «ecológicos», muito antes de eles se terem tornado evidentes: não a poluição através da difusão de produtos nocivos, mas a poluição da extensão e da duração, isto é, a anulação do espaço e a abolição do tempo.
A identificação do nome de Paul Virilio com a questão da velocidade tornou-se imediata e quase automática por justíssimas razões. Mas, antes dele, podemos encontrar reflexões e intuições importantes nos exploradores do século XX da filosofia da técnica e, muito especialmente, num sociólogo que soube analisar e interpretar com grande profundidade aquilo a que chamou «fenómenos de superfície»: Georg Simmel. E alguns desses fenómenos de superfície que ele detectou, por exemplo, nos cenários por excelência da vida moderna, as grandes metrópoles, levaram-no a definir o «ritmo de vida» como um produto das representações da consciência por unidade de tempo. Simmel tinha percebido que tudo, na sociedade moderna, tinha começado a acelerar e que o tempo de sedimentação dos fenómenos culturais e da vida social era cada vez mais breve.
No seu trabalho teórico, Paul Virilio dá-nos uma narrativa coerente, desenvolvida com muita informação e rigoroso poder de síntese, onde se escandem várias revoluções: depois da velocidade metabólica (como é a do cavalo, por exemplo) vem a revolução dromológica da era industrial (a velocidade tecnológica do comboio, do automóvel, do avião, etc.), à qual se segue a revolução dromológica da velocidade electrónica, a velocidade da luz que é o próprio limite da velocidade. A tese paradoxal a que Virilio chega no final deste percurso analítico é a de que tendemos para a inércia absoluta, evoluímos de uma mobilidade cada vez maior para um estatuto de confinamento, de «imobilidade fulgurante», para utilizarmos uma metáfora eloquente do autor de L’Inertie polaire (2002). Com as tecnologias da velocidade da luz, tudo nos chega sem ser necessário deslocarmo-nos. Assim, diz Virilio, assistimos hoje à emergência de uma nova era a que ele chama «era da chegada generalizada», por oposição à época da «chegada restrita», aquela em que a deslocação tinha um tempo de duração.
A situação que estamos a viver depois do acontecimento inesperado de uma paragem súbita à escala global, em que a única coisa que aumentou de velocidade foram os fluxos digitais (desde logo porque a obrigatoriedade de manter a «distância social» multiplicou o recurso às tele-actividades), veio confirmar, de forma concentrada, a tese viriliana da «inércia polar», da imobilidade no mundo físico que se aprofunda à medida que toda a nossa vida acelera no mundo digital.
Paul Virilio analisou o fenómeno da velocidade na sua relação com o desastre e com a catástrofe. Não há qualquer optimismo na sua visão, por muito entusiasmantes — e até com algum teor de euforia ficcional — que sejam as suas descrições do mundo actual e por vir, dominado pelo imperativo da velocidade. Máquinas de guerra, máquinas de visão, máquinas de aceleração: o mundo que ele descreve parece às vezes transportar-nos para um universo futurista, mas sem a euforia do Futurismo. Ele nunca subscreveria esta frase de Marinetti: «O esplendor do mundo enriqueceu-se com uma nova beleza: a beleza da velocidade.» No fundo, a crítica da técnica, mesmo quando não é explícita, está subentendida em toda a sua obra, que pode ser assim colocada entre as grandes críticas da modernidade tecnológica que encontram em Heidegger o seu representante máximo. Do seu ponto de vista, a busca desenfreada da aceleração total equivale a uma história global do declínio, a uma experiência contínua da destruição. E quando organizou uma exposição na Fondation Cartier intitulada precisamente La Vitesse, não foi apenas para mostrar os belos e utilíssimos resultados das tecnologias da velocidade, mas também para mostrar a violência, a parafernália bélica e a dimensão pós-humana (mas, na altura, este conceito estava ainda longe da fortuna teórica que entretanto alcançou) inerentes à lógica anónima e coerciva do aumento da velocidade. Podemos mesmo dizer que Virilio foi o primeiro a configurar o imaginário dos fins e das catástrofes, tal como ele tem sido cultivado desde o início deste século. A razão fundamental do seu pessimismo é também política e pode ser explicada desta maneira: há um efeito de irreversibilidade na velocidade (não há retrocesso, em cada nível máximo que se atinge, nunca se volta a um estádio anterior em que tudo era mais lento), de tal modo que ela parece uma força «natural», apolítica, sobre a qual não há controlo. Ora, com a dromologia, Virilio coloca a seguinte questão: poder-se-á continuar a usar os mecanismos políticos de controlo, se não se controla a velocidade e se deixa a tecno-ciência continuar o seu percurso irreversível, mesmo quando se pode antecipar que o destino é o desastre? Daí a sua proposta provocatória: é preciso criar uma economia política da velocidade, tal como existe a economia política da riqueza.
Na concepção do dossier que se segue, sobre velocidade e que constitui a secção «Assunto» deste número da Electra, procurámos fazer um percurso pelos lugares fundamentais do mapa actual da problemática da velocidade, tal como ele se desenha em vários campos disciplinares. Um desses lugares obrigatórios é a questão da aceleração da história, que constitui um núcleo teórico fundamental na obra do historiador francês François Hartog. O artigo com que ele contribui para este dossier é uma magnífica súmula do tema da aceleração e da sua relação com o «presentismo», isto é, com uma temporalidade histórica que fez desaparecer completamente o futuro do nosso horizonte. Hartog é o historiador do nosso tempo que trouxe o conceito de aceleração para o interior de uma teoria da história e da definição e análise da temporalidade histórica, que ele tem desenvolvido com uma enorme agudeza conceptual, nomeadamente num livro intitulado Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps (2012).
Noutro campo disciplinar, a sociologia, encontramos a obra mais importante do nosso tempo sobre a aceleração e a velocidade. A do sociólogo alemão Hartmut Rosa, professor na Universidade Friedrich Schiller, de Iena. O seu livro fundamental, de 2005, intitula-se precisamente Beschleunigung, isto é, «Aceleração» [mas devemos também referir Beschleunigung und Entfremdung (Aceleração e alienação), de 2013]. O seu projecto, um empreendimento de grande dimensão, consiste numa «crítica social do tempo». Podemos, sem grande dificuldade, identificar a linhagem a que pertence Hartmut Rosa ou, pelo menos, a constelação sociológica que tem atrás de si: a teoria crítica da Escola de Frankfurt. Nessa obra monumental de 2005, Hartmut Rosa, que alcançou o estatuto de grande vedeta académica, desenvolve uma teoria da modernidade como cultura determinada por uma aceleração generalizada — e a viragem dos anos 90 para a «modernidade tardia» é uma etapa fundamental da aceleração, tal como ele a analisa e descreve. Essa aceleração verifica-se em três planos — três dimensões da aceleração social —, que só em termos teóricos podem ser separados: a aceleração técnica, a aceleração da mudança social e a aceleração do ritmo de vida. A cada um destes três planos dedica Hartmut Rosa um capítulo. A aceleração técnica implica o uso de máquinas e processos orientados para uma finalidade. Quanto à aceleração das mudanças sociais, trata-se dos ritmos de transformação social, por exemplo as mudanças de profissão, de partidos políticos, ou ainda as transformações das estruturas familiares e profissionais, dos estilos artísticos, etc. Por último, a aceleração do ritmo de vida define-se pelo aumento do número de episódios de acção ou de experiência por unidade de tempo (estamos aqui muito próximos da teoria de Walter Benjamin sobre a pobreza da experiência na época moderna, quando as experiências pessoais deixam de corresponder a um tempo sedimentado, colectivo e, por isso, não se traduzem em experiência transmissível).
Com a aceleração técnica, verificável em todos os domínios da vida social, especialmente nos transportes, na comunicação e no consumo, o planeta tornou-se muito mais curto. Hartmut Rosa refere estudos que afirmam que a Terra parece 60 vezes mais pequena do que antes da revolução dos transportes. A aceleração verifica-se em todos os aspectos da existência. O mundo descrito por Hartmut Rosa e que nós conhecemos muito bem é aquele que nos impõe ritmos cada vez mais rápidos, de tal modo que precisamos de fazer muito esforço para permanecer no mesmo sítio (impõe-se assim a analogia com o hamster que corre a toda a velocidade para acompanhar a rotação que ele próprio imprime a uma esfera fixa). No retrato que este sociólogo faz da modernidade, o tempo acelera e devora-nos, como Chronos fez aos seus filhos: as profissões mudam em poucos anos, as tecnologias tornam-se obsoletas ainda em menos tempo, nenhum emprego é seguro, as tradições e os ofícios desaparecem, os casais não duram, as famílias estão constantemente a refazer-se e o curto termo reina em todos os domínios, incluindo na gestão política. E a lei fundamental da economia, dotada hoje de uma força avassaladora que ninguém consegue conter, traduz-se nesta fórmula com um valor absoluto: tempo é dinheiro. Tudo isto se transpõe para uma esfera subjectiva, onde se amplifica o sentimento de urgência, de culpabilidade, de stress, de angústia dos horários, da necessidade de acelerar cada vez mais. Não admira por isso que a grande doença do nosso tempo criada pela aceleração social seja o burnout, isto é, o estado de exaustão provocado pela sobrecarga de trabalho ou pelas exigências de cumprimento simultâneo de várias actividades (o multitasking). E devemos reparar, porque tem um grande significado, que esta aceleração tem o seu outro pólo no desemprego, isto é, na exclusão do sistema governado pela aceleração generalizada.
Hartmut Rosa mostra ainda como a aceleração determinou hiatos geracionais que têm na sua base a abreviação do tempo: na primeira metade do século XX, portanto já na alta modernidade, o hiato consumava-se entre o avô e o neto. O primeiro sabia que o presente dos seus netos seria diferente do seu e que não teria grande coisa a ensinar-lhes. Estes tornar-se-iam os vectores da inovação, de um novo mundo. O que se passa no nosso tempo, aquilo a que assistimos na nossa modernidade tardia, é à mudança do mundo, mais do que uma vez, em cada geração. Agora, é o pai que já não tem nada
a ensinar aos seus filhos e até já é possível ouvir um jovem de dezoito anos dizer que o seu irmão, de dez, é de uma outra geração, pertence a outro tempo.
Pergunta Hartmut Rosa a certa altura do seu livro: «Porque é que tudo, na sociedade moderna, parece andar cada vez mais depressa?» A sua resposta para explicar esta dinâmica consiste no princípio da «espiral da aceleração», no facto de a aceleração social da modernidade ser um processo que se auto-alimenta. Isto é, a aceleração engendra continuamente mais aceleração e reforça-se num processo circular. Daí, a sua tese da aceleração como um processo totalitário (talvez pudéssemos dizer, utilizando uma famosa fórmula de Marcel Mauss, um fenómeno social total) que engendra alienação, reduz a autonomia e torna-se altamente opressiva.
Uma outra palavra, quase um conceito, devemos apreender da crítica social do tempo de Hartmut Rosa: a palavra «dessincronização». A grave crise ecológica com que estamos confrontados pode ser vista como um problema de dessincronização: esgotam-se os recursos naturais a um ritmo muito superior ao da reprodução dos ecossistemas e acentua-se a cesura entre o tempo do ecossistema e o das actividades humanas. A dessincronização entre a esfera política e a esfera económica e financeira é o grande problema político do nosso tempo, aquele que já levou ao diagnóstico do fim da política, uma vez que esta foi condenada a uma dessincronização inevitável entre, por um lado, os seus tempos próprios e modalidades de deliberação e, por outro, as mudanças sociais e as oscilações económicas e financeiras.
Hartmut Rosa é o grande teórico contemporâneo da aceleração técnica, social e do ritmo de vida. As suas teses e as suas representações da modernidade tardia impuseram-se com uma força enorme, mas não esgotaram o campo. Um pouco a contrapelo em relação ao seu empreendimento de análise sociológica, surgiu em 2013, no Reino Unido, um texto polémico e intempestivo que se apresentava sob a forma de um manifesto, com o título: #Accelerate. Manifesto for an Accelerationist Politics. Autores: dois professores universitários ingleses, Nick Srnicek e Alex Williams. Este manifesto constitui um outro momento fundamental (contemplado no texto de Laurent de Sutter incluído no presente dossier da Electra) das teorias da aceleração e da velocidade que surgiram no nosso tempo. Avançando em contra-corrente, o Manifesto Aceleracionista propunha que se exacerbasse a aceleração, que a lógica do capitalismo fosse levada ao limite da exasperação, ao contrário do que defende uma esquerda obcecada com as várias formas de resistência ao capitalismo, superando-o — e não combatendo-o — através da apropriação da sua lógica. Superar o capitalismo neoliberal e recuperar, para a esquerda, uma ideia perdida de futuro: eis o que os autores do Manifesto Aceleracionista propõem. Acelerar significa então ganhar um domínio sobre o que nos tem dominado, usando a sua própria lógica, ou seja, apropriar-se das conquistas e das infra-estruturas do capitalismo, da logística à finança, transformando do interior a sua estrutura material. Em vez da negatividade e da autocomplacente resistência em que a esquerda se compraz desde que ficou órfã de todo o horizonte positivo e deixou de reclamar o futuro, o Manifesto Aceleracionista propõe oferecer-lhe a hipótese de ser afirmativa. Evidentemente, há aqui um optimismo científico e tecnológico que parece querer restaurar uma velha ideologia do progresso e está à beira de cair num «prometeísmo demente», como observou o filósofo Yves Citton, que traduziu o manifesto em francês, para a revista Multitudes, da qual é subdirector (e, de Yves Citton, podemos também ler um texto neste dossier). Um dos pontos mais polémicos do Manifesto Aceleracionista talvez seja aquele em que os seus autores escrevem:
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