Assunto
História de um cosmocídio
Aurélien Barrau

Este artigo assinado por um cientista, um astrofísico que também habita nas regiões da filosofia, parte da hipótese de que o mundo morreu, no sentido em que já se deu a perda de um «comum transcendental» que a ideia de cosmos supõe, e não haverá um mundo pós-covid-19 nem as possibilidades oferecidas por um «magma de velocidades infinitas».

hummingbird

Harold Edgerton, Hummingbird and Flower, 1947
© Fotografia: MIT Massachusetts Institute of Technology / Courtesy MIT Museum

A questão de como será o «mundo de amanhã», o mundo depois da crise da covid-19, é colocada de forma quase obsessiva. Os especialistas desdobram-se em virtuosismos para poderem, dentro de uns meses, anunciar convictamente: «Eu tinha previsto». Mas talvez seja necessário aceitar uma constatação mais profunda, mais grave e mais sábia: não haverá mundo depois. O mundo morreu.

Claro que alguma coisa sobreviverá. Nem as estrelas nem as plantas, nem as montanhas nem os insectos, nem as florestas nem os seres humanos desaparecerão de repente. Trata-se de uma outra coisa: tal como foi teorizado pelo filósofo Jean-Luc Nancy, o conceito de mundus em latim ou de cosmos em grego pressupõe a existência de uma transcendência comum — de uma ordem e de um sentido partilhados. E foi isso, ao que tudo indica, que hoje se perdeu.

Assim, a hipótese seria a seguinte: o mundo morreu. Não no sentido em que Nietzsche, numa espécie de malandrice jubilante e niilista, anunciou a morte de Deus. Não se trata aqui de um deicídio, mas sim de um cosmocídio. Sem dúvida mais simples, talvez mais performativo e certamente mais imanente, este meta-assassinato paradoxal abre tantas realidades possíveis como aquelas que fecha.

Por que razão desaparece agora o mundo? Em primeiro lugar, evidentemente, porque ele é aqui entendido como uma identidade conceptual humana e não como uma essência que possui valor em si mesma. As palavras nunca estão em correspondência inequívoca com as coisas. As coisas, aliás, não existem independentemente da relação que estabelecem com as palavras. Que sentido teria o carácter absoluto da ontologia se fosse independente das estruturas referenciais simbólicas ou mesmo orgânicas? O mundo, entendido desta forma, está de facto ameaçado como nunca esteve.

As guerras, os genocídios, as pandemias e até as catástrofes naturais sucederam-se ao longo da história. Numa acepção um tanto ingénua, não parece que actualmente esteja a emergir algo de novo na sua essência. Seria tentador pensar que, mais do que em qualquer outra época, a «globalização» permite à humanidade «existir». Viveríamos então, todos, num universo partilhado.

No entanto, é essa universalidade ilusória que contribui para o colapso cósmico, no sentido filosoficamente literal, a que hoje assistimos. Ao pressupor a disseminação dos significados e das direcções possíveis das teorias de tendência globalizante, a sociedade contemporânea inventou uma armadura que é tão grandiosa como frágil. Frágil porque qualquer incidente poderá fazer ruir todo o edifício que só se sustem graças a uma união artificial ou pelo menos, superficial. O início efectivo de uma unidade económico-simbólica generalizada, posta ao serviço dos interesses de uma minoria, tornou o mundo extremamente fragmentável. O mundo perdeu a sua plasticidade.

"O mundo morreu. Não no sentido em que Nietzsche anunciou a morte de Deus. Não se trata aqui de um deicídio, mas sim de um cosmocídio."

Giacomo Balla

Giacomo Balla, Girl Running on a Balcony, 1912
© Fotografia: Scala, Florença / Museo del Novecento

 

É neste sentido que a epidemia de SARS-CoV-2 funciona como um gatilho do fim do mundo. Não é, evidentemente, pela sua amplitude intrínseca que, por mais terrível que seja, não pode comparar-se de forma alguma aos danos causados pelo paludismo, a fome ou a poluição, para citar apenas alguns exemplos. Mas no sentido em que ela, irrompendo com violência como uma imensa falha no centro da fortaleza aparentemente impenetrável de um Ocidente todo poderoso e cheio de ramificações, é o sopro que derruba o que é instável. Contrariamente a todas as pandemias — por vezes bem mais destrutivas — que a precederam, contrariamente às guerras e opressões brutais que marcaram a história, a covid-19 surge num mundo que atingira um estado de unidade fictício, o que o tornava extraordinariamente precário. Paradoxalmente, a globalização, i.e., a uniformização alienante e reificadora, tornara o mundo mortal. Acabar com ele não foi difícil.

Não há dúvida de que a sociedade continuará a existir após a epidemia. Mas o mundo, esse terá morrido. O grau de incoerência e de tensão interna, o poder suicida da guerra global iniciada pela civilização contra a sua própria vida, a incomensurabilidade de recursos e de meios, a escravização generalizada dos menos «adaptados» já não permitem a necessária coesão cosmogónica. Aquilo que vai perdurar já não terá origem num mundo, mas sim numa marginalização global dos valores, das expectativas, das disposições, dos desejos e das conveniências. É a difracção radical das ontologias, das éticas. Logo, precisamente o contrário de um mundo.

Talvez se produza uma transformação que nos leve a reconhecer os crimes contra a vida e contra o futuro que estão actualmente em curso. Talvez se verifique uma inflexão importante das atitudes — verdadeira revolução — que nos faça rejeitar os comportamentos e propósitos mortíferos que negam a própria essência da vida. Muito provavelmente, regressaremos rapidamente à situação anterior e portanto à meta-crise ecológica com o apoio daqueles que pensam que podem ter ainda alguma vantagem. Sem esquecer que o pior é também previsível: que, sob a pressão das reivindicações anunciadas do patronato, as normas ambientais, apesar de serem insuficientes, serão revistas e reduzidas, enquanto o Estado poderá usar as medidas adoptadas durante a crise para instaurar uma vigilância de grupo e restringir as liberdades individuais. Muitas outras vias são possíveis. Começando por uma implícita e insidiosa tomada do poder por parte da «administração», o que levaria a uma situação triste e sem brilho em que se instituiria a cultura da gestão, já hoje bastante em prática.

Mas seja qual for o futuro, sejam quais forem as suas modalidades políticas e económicas, os seus dispositivos sociais e relacionais, ele estará afastado do mundo. Será desenhado sobre as ruínas de um mundo morto. Só poderá desenvolver-se sobre as cinzas de um cosmos destruído pelo excesso.

Se, por definição, este caos é a negação da grande ordem que, apesar de nunca ter de facto existido, se podia imaginar em potência, não esqueçamos que, em grego antigo, o conceito de caos é também abertura, vacuidade. Por outras palavras: caos é também a ausência que permite a criação. Nada nos leva a crer que o mundo possa ser ressuscitado. Aliás, será absolutamente necessário um mundo?

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*Tradução de Isabel Pettermann