Assunto
A Nova Linguagem Política: pós-democracia e biopolítica
Roberto Esposito

As categorias tradicionais da política moderna revelam- se hoje inadequadas. A própria ideia de democracia surge minada nos seus fundamentos, tal como se revelam vazias de sentido as palavras que serviram a acção e o pensamento políticos herdados da modernidade.

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© Daniel Malhão

 

Foi no início deste novo século que se começou a falar de «pós-democracia». O livro de Colin Crouch com este título é de 2000, enquanto a entrevista a Dahrendorf, intitulada «Depois da Democracia», é do ano seguinte. A tese que ambos sustentam é que, ainda que se mantenham em vida as instituições formais da democracia, a sua essência vital se esgotou em prol de um regime diferente a que não se pode propriamente chamar «democrático». As causas desta passagem são identificadas por ambos numa tripla crise — de representatividade, de legitimação e de soberania —, por sua vez dependente das dinâmicas de globalização que, nos últimos trinta anos, minaram os fundamentos do próprio lugar da democracia moderna, ou seja, os Estados nacionais dentro dos quais ela nasceu e se desenvolveu. Isto implicou, por um lado, a transferência do poder para organismos supranacionais de tipo económico-financeiro não electivos, logo, democraticamente ilegítimos; por outro, a crise vertical dos corpos intermédios — partidos, sindicatos, os próprios parlamentos — em prol de uma crescente personalização da política, causa e efeito ao mesmo tempo daquela tendência populista presente tanto na Europa como nos Estados Unidos da América, que se tornou o bode expiatório de todo o establishment e dos seus orgãos mediáticos.

Será esta reconstituição convincente? Restitui ela o verdadeiro alcance da crise em curso? Não estou nada convencido. Não tanto porque a sua fenomenologia esteja em si mesma errada, mas porque simplifica e reduz a duas décadas um evento que é bastante mais longo e complexo para quem procura trabalhar sobre acontecimentos contemporâneos em termos genealógicos, cruzando sincronia e diacronia. Desta história profunda — que levou ao esgotamento daquilo a que há muito chamamos «democracia» — não é aqui possível senão traçar um perfil rápido, parando em alguns dos seus momentos salientes, todos imputáveis a um processo de governamentalização da vida social, definida por alguns com o termo, na verdade hoje excessivamente empregue, de «biopolítica».

A primeira paragem deste percurso, naturalmente acidentado e contraditório como todos os processos históricos de longa duração, pode ser situada no início do século XVIII, quando a vida da população deixa de ser considerada pelo soberano como um recurso a consumir, carne para canhão até, tornando-se um bem precioso que requer ser protegido e desenvolvido. É então que, com a progressiva transformação do regime soberano em regime governamental, nascem e se desenvolvem os primeiros dispositivos de controlo e disciplinação da vida colectiva, activados primeiro pelo poder pastoral e depois pelos ditos saberes policiais, em conjunto com as instituições de serviços públicos de carácter sanitário e social.

O segundo acontecimento, se calhar ainda mais crucial na relação entre poder e saber, deu-se no início do século XIX com o nascimento da biologia como disciplina autónoma. É então que a vida biológica dos indivíduos e das populações se começa a tornar um saber especializado e performativo, e entre os seus nomes mais representativos encontramos Bichat, Couvier, Lamarck e Darwin. Que consequências têm o nascimento e o desenvolvimento dos saberes biológicos para as formas da política, quando a conservação assistida da vida passa a fazer parte dos objectivos do poder e o horizonte da história se coloca em relação com o da natureza? É então que o ser humano começa a ser considerado, para além de indivíduo, como um membro da espécie, ao mesmo tempo que a espécie humana entra em contacto com outras espécies vivas.

A partir desse momento inicia-se um processo de progressiva dessubjetivação, ou seja, de crise da subjectividade política, com consequências desagregadoras do próprio agir político. Aquele indivíduo, que tinha sido sempre considerado pela filosofia política moderna um sujeito guiado pela razão e pela vontade, começa a ser visto como um ser vivo atravessado, e amiúde determinado, por necessidades vitais, mas também por instintos e forças irracionais radicadas num estrato biológico originário, que ultrapassa e muitas vezes colide com a vida de relação. O que é posto em causa é o próprio pressuposto da filosofia política moderna de matriz hobbesiana que condiciona o nascimento do estado político à negação do estado de natureza. Uma vez que, com a passagem ao acto, ninguém se pode abstrair do próprio corpo e dos mecanismos profundos que o regulam, estado político e estado de natureza enredam-se inextricavelmente um no outro. Isto implica consequências profundas para o próprio modo de entender a acção política. Se as paixões dos homens são determinadas por impulsos em larga medida inconscientes, originados no fundo da vida orgânica, já não será possível canalizá-las para as estruturas do contrato social, de que os sujeitos humanos já não podem ser considerados os únicos autores.

O que começa a ser posto em causa é aquele núcleo duro de razão e vontade, atribuído à pessoa jurídica, que até agora tinha sido considerado a essência constitutiva do sujeito político. A partir do momento em que a ideia de instituições políticas inteiramente governadas por motivações racionais enfraquece, também o ainda jovem paradigma da democracia entra numa zona de progressiva erosão. Como se, a partir de então, o kratos da democracia já não se devesse referir ao demos, mas antes a um bios, senão mesmo a um ghenos. Para dar conta da viragem em questão — amadurecida no final do século XIX, mas que atinge dimensões cada vez mais nítidas nos últimos setenta ou oitenta anos — relembro três acontecimentos emblemáticos que mudaram radicalmente o panorama a que estávamos habituados. No final dos anos 60 do século passado, a questão do género, da geração e da genética alcança maior relevo, substituindo a semântica democrática do nomos pela semântica biopolítica do ghenos. O género, entendido como diferença sexual, e a geração, entendida como um conjunto de características sócio- culturais alternativas às das gerações precedentes, tornam-se cada vez mais centrais. Poucos anos depois, as primeiras experiências de manipulação genética — a partir das experiências com a ovelha Dolly — antecipam, pelo menos como possibilidade, uma relação ainda mais estreita, se bem que problemática, entre vida humana e tecnologia. Por fim, em 1972, realiza-se em Estocolmo a primeira conferência sobre o ambiente. Desde então, também a ecologia se tornou uma questão política de primeira importância.

Estes acontecimentos desenham uma complexa mudança de paradigma: a vida dos homens, a vida da espécie e a vida do mundo irrompem arrogantemente por um cenário político não preparado para lhes compreender plenamente o sentido. Crer que uma série de mutações desta natureza, centradas na questão do bios e do ghenos, deixam o cenário político inalterado é uma ilusão destinada a ser continuamente desmentida. Pode dizer-se que desde então, através de sucessivas vagas, a ruptura dos limiares entre o biológico e o político caracteriza de forma cada vez mais nítida o nosso tempo. Desde então, a questão da vida e da morte, da sexualidade e da saúde pública, da migração e da segurança irromperam arrogantemente por todas as agendas políticas, condicionando-as em larga medida. No seguimento de uma tal viragem, o horizonte político tornou-se por sua vez mais amplo e complexo, dilatou-se e deformou-se. Como se todo o léxico moderno, que por mais de três séculos deu forma à política, perdesse de repente o seu significado e fosse reduzido a pedaços pelo impulso de acontecimentos que já não consegue representar. É desde então, e não há vinte anos atrás, que a semântica democrática entrou em crescentes dificuldades.

"Como empregar o léxico democrático da igualdade formal entre sujeitos políticos autónomos — entendidos como átomos lógicos puros, chamados periodicamente a exprimir uma escolha racional e voluntária acerca do governo da sociedade — quando o que conta cada vez mais é a diferença étnica, sexual e religiosa de grupos humanos definidos pelas características dos seus corpos, da sua idade e do seu sexo?"

As consequências são fáceis de adivinhar e estão hoje à vista de todos. Como empregar o léxico democrático da igualdade formal entre sujeitos políticos autónomos — entendidos como átomos lógicos puros, chamados periodicamente a exprimir uma escolha racional e voluntária acerca do governo da sociedade — quando o que conta cada vez mais é a diferença étnica, sexual e religiosa de grupos humanos definidos pelas características dos seus corpos, da sua idade e do seu sexo? Tornou-se então evidente que as velhas categorias europeias, que tinham fornecido a trama semântica e hermenêutica do século XX, já não funcionam e começam a rodar em falso. A transformação não concerne apenas à democracia, mas também ao liberalismo clássico que com ela tinha estreitado uma aliança de um século, pelo menos no Ocidente europeu e norte-americano. Construído também ele sobre o léxico do indivíduo, entendido como sujeito devotado ao seu interesse pessoal num mercado livre de vínculos, o liberalismo entra igualmente numa relação bastante mais estreita com o horizonte da vida. O neoliberalismo capta o sentido desta viragem antropológica, e até cosmológica, exprimindo ao mesmo tempo as suas potencialidades e contradições.

Já o neoliberalismo austríaco de Hayek e Mises fundia mercado e vida material num mesmo paradigma, projectando literalmente uma nova «política da vida». Mas foi sobretudo o ordoliberalismo alemão, o grupo de intelectuais reunidos em torno da revista Ordo, a pôr-se a coberto da semântica biopolítica, como, de resto, Foucault foi um dos primeiros a indicar, identificando nesse processo novidades e antinomias internas — sobretudo a que respeita a produzir liberdade através da sua própria limitação. Porque, se se lerem livros como Civitas Humana de Wilhelm Röpke e Acção Humana de Mises, aquilo que delas resulta não é somente uma política económica, mas uma viragem antropológica que tem no seu centro um governo da vida intensamente biopolítico. Que não é diferente, aliás, daquele analisado doutra forma por Gramsci em Americanismo e Fordismo. Tal como a política, também a economia investe o corpo humano e a psicologia dos trabalhadores.

Já o ensaio de Rüstow sobre a falência do liberalismo como religião previa uma superação do tradicional laissez faire em prol de um novo intervencionismo social que penetrasse nas próprias fibras da sociedade. A actual ideologia alemã, na sua obsessão com a organização, na sua fobia do risco de endividamento, de conflito social, de caos colectivo, nasce naqueles anos e no interior daquela cultura ordoliberal. O que estes pensadores imaginam é uma espécie de oxímoro — isto é, uma economia social de mercado, diferente quer da via keynesiana quer da do mercado desregulado. Aqui, é o próprio mercado que é suposto ser gerador de ordem social; enquanto o Estado tem como tarefa estabilizar por via jurídica a potência do capital — mas, precisamente, o Estado não como soberania, mas como governo. Governo da vida, religião do trabalho, idolatria da ordem — fora dos quais não há senão o caos. A novidade, relativamente ao liberalismo clássico, de ambos os ramos do neoliberalismo — seja o austro-americano de Mises e Hayek, seja o da Escola de Friburgo com Eiken, Rüstow e Röpke — está no facto de trabalharem explicitamente sobre as potencialidades da natureza humana numa dimensão antropológica diferente da simples oposição ao dirigismo estatal. A sua intenção é antes a de condicioná-lo, optimizando as capacidades naturais e vitais do homem.

Que um tal projecto seja contraditório com as próprias premissas de libertar o mercado dos vínculos institucionais é demonstrado pelos problemas insolúveis com que, uma e outra vez, se deparou, inclusive na última crise económica. O Brexit, para lá dos temas mais ideológicos, nasce desta divergência entre os dois liberalismos, o anglo-americano e o alemão. Isto não obsta a que, em última instância, ambos se enquadrem no mesmo regime governamental. O que os une é a mesma tendência biopolítica para governar o estado de natureza, incluindo a natureza humana, em vez de abandoná-lo em prol do estado político, como queria o paradigma hobbesiano. Neste sentido, pode bem dizer-se que entrámos num horizonte pós-leviatânico.

Isto explica também a divergência cada vez mais nítida entre liberalismo e democracia que caracteriza as sociedades ocidentais contemporâneas. Enquanto a democracia permanece ainda ancorada no léxico político da soberania, da representatividade e da lei, o neoliberalismo volta-se, mesmo que de forma contraditória, para o do governo, da vida e das normas. Neste sentido, é mais avançado, do ponto de vista categorial, do que a democracia, precisamente porque assumiu de há muito como seu o horizonte biopolítico que a democracia resiste ainda a reconhecer. A sofrer as consequências desta viragem antropológica e biopolítica está o modelo democrático. A sua incapacidade em reconhecer o terreno sobre o qual se exerce acaba por colocá-lo fora de jogo no confronto com as dinâmicas que são superficialmente reunidas sob a etiqueta de populismo e que, na verdade, não são senão a refracção sobre a política da centralidade adquirida pela dimensão da vida. É esta que transforma radicalmente os procedimentos democráticos num regime a que se pode dar o nome de pós-democracia.

Tudo isto diz mais uma vez respeito à ligação profunda entre poder e saber. Como imaginar, por exemplo, um consenso informado, necessário à expressão democrática do voto, num cenário em que os media estão nas mãos de um pequeno número de empresários voltados para a protecção dos seus próprios interesses? E como podemos orientar-nos por entre os procedimentos democráticos na discussão de problemas complexos, como o das fontes de energia ou dos limiares da vida humana, a que não sabem responder sequer as comissões de especialistas? Pensar que se resolvem problemas deste género a golpes de maioria parlamentar é, simultaneamente, impossível e inadequado, na medida em que colapsaram as distinções, na base das quais a concepção democrática se formou, entre público e privado, artifício e natureza, política e economia. No momento em que o novo estatuto do corpo faz explodir a subjectividade abstracta da pessoa jurídica, torna-se difícil distinguir o que é da esfera pública do que diz respeito à esfera privada, a tecnologia da natureza, a lei da teologia. Nascimento e morte, vida sexual e vida geracional, saúde e doença, tornam-se as fendas em que os diques construídos pela cultura moderna se rompem, dando lugar a uma fenomenologia política radicalmente nova.

"O problema com que hoje nos deparamos — que se define superficialmente em termos de «pós-democracia» ou se exorciza como populismo — não é o dos limites ou defeitos da democracia. Mas, ao invés, o da sua consumação precisamente na figura do seu oposto."

As três categorias constitutivas da democracia — isto é, a representatividade dos eleitores pelos eleitos, a identidade entre governantes e governados e a soberania do povo — adquirem um sentido bem diferente do que tinham dantes. Se a soberania se torna governamentalidade, a representatividade transmuta-se em representação, entendida no sentido teatral ou, melhor, televisivo. O que transforma, por sua vez, o conceito de público, como oposto ao privado, no público de uma representação mediática em permanentemente transmissão, também através da conexão em rede. Um público não apenas dado, mas construído por sondagens e referendos cujas respostas estão já antecipadas nas perguntas. Na sociedade do espectáculo, ou no espectáculo da sociedade, em que vivemos há já algum tempo, todo o dissentimento se tende a tornar consenso e cada consenso simples assentimento, senão mesmo aplauso teleguiado pelos construtores de formatos. A identidade entre governantes e governados — como ponto limite da democracia directa — tornou-se identificação imaginária entre líder e povo, com a consequente perda dos limites entre o simbólico e o real, ambos orientados para um desejo mimético dirigido aos mesmos objectos.

O problema com que hoje nos deparamos — que se define superficialmente em termos de «pós-democracia» ou se exorciza como populismo — não é o dos limites ou defeitos da democracia. Mas, ao invés, o da sua consumação precisamente na figura do seu oposto. Quer isto dizer que devemos limitar-nos a certificar o fim da democracia ou mesmo a promovê-lo? Que devemos anular esta palavra antiga, carregada de história e de destino? Não é o que pretendo dizer. Mas devemos tomar consciência que o nosso horizonte mudou profunda e irreversivelmente. Agora já não está em causa uma simples reforma das suas instituições, mas antes uma viragem sócio-cultural bastante mais profunda de toda a nossa linguagem política. Em vez de contrariar o novo relevo assumido pela vida biológica, na ilusão de restaurar o nosso antigo vocabulário moderno, devemos colocá- lo nós mesmos no centro do agir político — respondendo adequadamente às exigências urgentes que nela têm origem, aos dilemas que suscita, às necessidades que induz em cada vez mais homens e mulheres — dentro dos limites do Ocidente ou nos que pressionam para nele entrar.

Não faria sentido tentar aqui compilar uma lista de prescrições — a que alguns chamam de biopolítica afirmativa. Mas pode afirmar-se algo de genérico. Hoje, a linguagem da esquerda — pelo menos a da esquerda europeia — está absolutamente esgotada, como o prova o fulminante desaparecimento dos seus partidos históricos. Sobre este ponto devemos ser, ao mesmo tempo, radicais e rigorosos — em primeiro lugar connosco próprios. Algo do nosso próprio modo de trabalhar, de nos exprimirmos e de pensar tem de mudar. É necessária uma viragem no nosso léxico político adequada às transformações a que assisassunto timos. A desconstrução do léxico político ocidental era uma exigência para cuja urgência todos nós alertámos e que, de maneira diferente, todos tentámos levar a cabo. Agora esta obra foi concluída — pela realidade, antes mesmo de por nós próprios. Hoje, a linguagem hegemónica da tradição moderna, com todos os seus erros e horrores, com todos os seus imperialismos e colonialismos, está completamente desfeita. Em vez de continuar a desconstruir aquilo que já foi abundantemente desconstruído, trata-se de tentar construir uma linguagem política nova.

Mas isto terá de ser feito dentro do horizonte que, de qualquer modo, nos rodeia — o definido pela centralidade irreversível da vida individual e colectiva. É dentro deste horizonte que será reconstruída uma nova subjectividade política e também um novo princípio, aberto e relacional, de identidade. Porque as diferenças têm relevância e sentido, são pensadas em conjunto com as identidades, não em alternativa a estas. Só as identidades, reconhecíveis enquanto tais, podem diferir entre si. Naturalmente, nem todas as situações são iguais. Nem todo o mundo tem os mesmos problemas. A América Latina vive uma época bem diferente da nossa. Tal como o Norte de África e o Sudeste Asiático. O mundo está agora dividido em áreas geográficas e geopolíticas cuja multiplicidade é defendida por uma perspectiva multipolar. Neste sentido, e precisamente para definir a sua diferença, estas sentem uma necessidade vital de construir a sua identidade.

Naturalmente, entre estes grandes espaços é preciso construir um novo equilíbrio relativamente àquele imposto pela globalização que une dividindo entre os que sucumbem e os que se salvam. Isto significa deslocar uma quantidade enorme de recursos vitais — económicos, médicos, ecológicos — do Ocidente para o sul global. Falar de direitos humano só deste modo deixará de soar como derrisório no confronto com as feridas abertas de velhos e novos colonialismos e com as distâncias insustentáveis entre países obesos e afamados. Hoje, a Europa deve assumir as suas responsabilidades históricas e representar um papel decisivo — não apenas no que respeita ao dever de acolhimento dos refugiados de guerra, mas também no apoio a políticas de desenvolvimento dos países mais atingidos pela guerra, fome e doenças. Mas, para poder fazê-lo, deve primeiro existir enquanto sujeito político — adquirir uma subjectividade política que, de momento, não tem de todo. O seu défice de subjectividade política é um problema não apenas para os seus países, mas para o mundo inteiro. A batalha pela Europa tem hoje um significado global. Ela tem uma necessidade urgente de se redefinir em termos abertos, mas politicamente realistas. O tempo da dissolução ficou para trás. É um drama que a Europa conheceu e conhece ainda — não certamente um objectivo a ter, como quer uma retórica do declínio cada vez mais incoerente e fastidiosa. Trata-se de reconstruir uma Europa mais justa, mais equilibrada, mais generosa, porque consciente de si — de um passado carregado de erros e violências, mas também de uma extraordinária riqueza. Para pô-la de novo em movimento, e ao mesmo tempo transformá-la, é preciso aproveitar a sua presente, e aparentemente letal, crise como a última oportunidade, e tarefa, que temos defronte.

*Tradução de André Dias